domingo, 26 de abril de 2015

~~~Párias em Redenção~~~

ALUCINAÇÃO E CRIME (III)

A noite avançava lavada e varrida pelas chuvas e ventos, que desabavam abundantes, e o moço revira-se impaciente no leito, desassossegado. A avançadas horas, deixou-se abater por torpor dominante e, assaltado por esquisito pesadelo, sentiu-se amarrado ao leito, experimentando os sentidos psíquicos exaltados. Foi dominado pela sensação desusada de que, embora caído pesadamente sobre a cama, podia locomover-se no quarto em brumas espessas, entre as quais, direcção estóica e hierática, como sempre o fora. Agitando-se penosamente e desejando evadir-se do desagradável e insólito fenómeno que o avassalava, compreendeu-se vencido ante aquela que lhe fora mãe espiritual dedicada e cujo amor ele estava prestes a desrespeitar, por meio de hediondo crime. A entidade acercou-se dele e, traduzindo inconfundível melancolia na voz, marcada por acento de doída angustia, inquiriu:

– Que pretendes, Girólamo? Assim retribuis, através do crime nefário que premeditas, o calor da afeição pura e da dedicação que recebeste deste lar? Substituíste por ácido o sangue que pulsa nas tuas veias para, enlouquecido, te comprometeres por penosos séculos de infeliz peregrinação ressarcidora? Susta o golpe, antes que o golpe te vença, sem que consigas aniquilar-te a ti mesmo. Ninguém tem o direito de erguer a mão, que se torna sacrílega quando investe contra a vida de outrem. Mesmo diante do revel, a nós não nos pertence o direito de destruir, e sim Àquele que o produz, e que se utiliza de recursos que nos escapam, para equilibrar tudo, no padrão da Sua Sabedoria. Estaca, e modifica a intenção! Ignoras que a vida não cessa e que nós outros, os que antecipamos na jornada do túmulo, vivemos?!

Desfigurado pela visita inusitada, o moço, em febre, arguiu, desafiadoramente:

– Deliro, oh! Deus. Enlouqueço! Ninguém volta da morte. Você está morta, titia! Deixe-me em paz, antes que me estourem os miolos avassalados por demónios perversos. Não pode ser você. Deve ser algum enviado das geenas, para aniquilar-me.

– Não, filho, sou eu mesma, quem retorna. É a voz da minha alma que te fala hoje, como fizera ontem, despertando as mínimas expressões de consciência, de dignidade, na tua razão, obnubilada pela ambição ignóbil que te vence. Morri, mas não fiquei destruída. Não encontrei o céu de repouso ou o inferno de desdita. Deparei-me com a vida estuante, colocada pela Excelsa Misericórdia Divina ao alcance dos que Lhe respeitam as leis. A vida aqui é a razão da vida daí. Ressurgimos do portal de cinzas da sepultura com as asas de anjos ou os pesados grilhões atros, resultantes das nossas atitudes na Terra, que nos alçam a regiões de paz inefável ou nos conduzem a abismos de dores demoradamente remissíveis, até a consciência ferida no seu mais fundo sentir experimente a necessidade de tudo recomeçar e refazer… Somos os construtores da nossa ventura como também do nosso infortúnio. Por isso, reprime o passo e detém-te, antes que seja tarde demais.

– Agora já é tarde demais! O ódio que me arde na alma destruir-me-á antes que eu possa recuar. Tenho que cumprir esse destino…

– O destino nos pertence. A cada instante estamos a elaborá-lo, modificando-o ou estabelecendo-o através do que pensamos, do que dizemos, do que fazemos. Cada um consegue o que cultiva, quanto acontece ao agricultor que recolhe a resposta da terra através do grão que lhe atira na cova. Susta o vil pensamento e reflecte. Por que te voltas contra a inocência de Lúcia e a pureza das crianças? Que te fizeram, revel? O ódio que lhes devotas são as farpas da inveja e do despautério do teu espírito ingrato. Volta-te para Deus e escuta a insuperável mensagem de amor do Seu Filho Jesus. Escolhe: agora, ou será tarde demais, realmente. Esquece a sandice e não serás esquecido pela Justiça Celeste. Este é o momento da tua redenção: pára! Ignoras as realidades da vida: do ontem e do amanhã…

– Não posso, não posso. É muito tarde para mim. Tudo está pronto. Não posso, nem desejo recuar…

– Eu lamento, por ti e por outrem que não está em condições de perguntar-te e de amar-te. Na minha imensa, incomparável dor, eu te perdoo e choro por ti e por alguém mais. No entanto, ouve-me, Girólamo, é tempo. Foge, viaja, sai desta casa, evade-te ainda hoje, buscando renovação noutros sítios e retorna depois. Serás sempre bem recebido. Terás o de que necessitas, o que ambicionas, porém, por outros meios. Vai em busca da paz, enquanto luze a oportunidade, pelo amor de Deus eu te rogo, meu filho!

Tresloucado, espírito em alucinação, o moço gritou:

– Nunca! Agora irei até ao fim, até à minha total desgraça ou ventura. Não pararei!

– Atingirás, sim, a desgraça. Deus tenha piedade de ti! Eu te perdoo, filho. Perdoe-nos Senhor a todos nós!

A emissária espiritual levou a nívea mão ao peito levemente ofegante e lágrimas silenciosas, longas, lhe escorreram pela face venerada. Um olhar de indizível dor foi endereçado ao moço, conduzido pela teimosa incoerência de raciocínios e, embora distendendo, logo após, os braços para recolhê-lo outra vez no seio sofrido, Girólamo, como se libertasse do magnetismo que o retinha preso, atirou-se na direcção do corpo que se debatia em desespero no leito e despertou gritando, de olhar esgazeado, suado, aturdido…

Ergueu-se de um salto, apoiou-se à janela, abriu-a e aspirou o ar húmido e frio da noite para recobrar a lucidez e coordenar as ideias assaltadas pela quase demência.

Transcorridos alguns minutos, aumentando a luz no quarto, entregou-se aos sombrios pensamentos já habituais, enquanto ruminava com a desconcertante visão, que parecia persegui-lo, embora desperto. Sentia-se assistido pela tia; conquanto não a pudesse ver naquele instante, percebia-se por ela visitado. Deixou repentinamente a alcova, desceu ao patamar da parte térrea, abriu a porta de entrada, procurando, sem saber exatamente o quê, meios de reencontrar-se. A chuva torrencial, porém, prosseguia. Em derredor da herdade, os rios transbordavam, as estradas estavam quase intransponíveis…

Em inquisição crescente, aguardou a madrugada e o dia brumoso raiou. O cansaço venceu-o com a chegada da manhã, quando, então, se recolheu por algumas horas, em pesado e tormentoso sono.

Levantou-se tarde e não compareceu à refeição matinal.

Amainada a tormenta, deambulou a esmo pela terra encharcada e ao retornar, com a alma em frangalhos, foi recebido pela vigilante Assunta, que o aguardava ansiosamente.

Higienizando-se tomou caldo quente e reparador, que a serva lhe trouxe. Amolentado de carácter, deixou-se arrastar pelas paixões absorventes e cuidou, com a consócia, do crime em delineamento, sobre todos os detalhes da tragédia que logo mais seria consumada. Buscou repousar, enquanto Assunta, que guardara o soporífico que ele lhe entregara, desceu à cozinha.

Naquela noite, Assunta oferecera-se a Lúcia para cuidar do repasto das crianças, prontificando-se a ajudá-las a se recolherem ao leito, informando que também lhe traria a refeição, contanto que descansasse das últimas e longas fadigas.

Embora pressentindo a borrasca que a ameaçava, Lúcia, exaurida pelo cansaço, aceitou a oferenda da mulher pusilânime e se quedou em leve recreio com os pequenos órfãos.

Após servir a refeição frugal, Assunta trouxe imensa bandeja de prata com chávenas e bule de chá fumegante, bolinhos de milho, leite e açúcar. Antes, porém, adicionara forte quantidade de pó sonífero, que se misturara ao chá, e, sorridente, serviu às vítimas em potencial, que ignorando a trama cruel, se deixaram conduzir inermes pela má e injusta adversária gratuita. Transcorridos poucos minutos, e não podendo vencer a moleza e o sono que de todos se apossou, recolheram-se aos leitos, vestidos conforme se encontravam.

A astuta comparsa de Girólamo trocou os trajes das crianças, que ressonavam sob o peso do produto forte, e as depôs nas respetivas camas. Lúcia, porém, foi arrastada, como se encontrava, para o lado do cataló da menina Grazziella, ali ficando adormecida, enquanto a relutância que oferecera ao invencível mal-estar. Isto feito, Assunta cerrou a porta, deu ciência a Girólamo de toda a ocorrência e demandou, por sua vez, o próprio dormitório.

A noite, embora ameaçadora, não se encontrava sacudida pelas chuvas nem pelos ventos da véspera. Uma lua fria e triste espiava entre nuvens carregadas. O relâmpago aparecia de longe em longe e a voz do trovão chegava cansada e rouca aos cenários dos próximos e tristes acontecimentos.

Horas avançadas, Girólamo caminhava pela alcova, agitado, em trajes de dormir.

O punhal afiado brilhava aos reflexos do luar que por vezes penetrava no quarto, colocado sobre delidada arca de cânfora trabalhada.

/...


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” – LIVRO PRIMEIRO, 2. ALUCINAÇÃO E CRIME (3 de 4), 6º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt_1898, pintura de Edgard Maxence)

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Crónica de Natal ~

| Para todos Natal de Paz, Esperança e boa vontade ~

Hoje fui dar o habitual passeio a pé até à igreja de Santa Luzia. Descobri-me, entrei no adro e, do patamar da igreja que estava, como é hábito, de portas fechadas, pus-me de pé olhando para o sol já frio de uma tarde nebulosa.

Não estava por ali ninguém, mas falei com imensa gente. Mandei recados e fiz pedidos, daqueles que – se não forem atendidos por falta de mérito meu – sei que vão ser escutados. Deixei que os minutos passassem tranquilamente sem medo de que a esperança das palavras perdesse a frescura e a juventude. Ao lado há uma pequena colectividade recreativa e alguém ao som da música de um rádio preparava qualquer coisa. Oxalá fosse uma festa de Natal.

É um óptimo prenúncio e um bom pretexto para fazer uma crónica de Natal.

Preparei por isso uma prenda ecológica que tenho oferecido com gosto, repetidas vezes, ao meu percurso predilecto de passeios a pé. Do cemitério da Lousã à igreja de Santa Luzia e regresso, saio munido de dois sacos de plástico. Lá mais para diante vou olhando para as bermas e para os terrenos mais próximos e começo a contar as latas para refrigerantes de alumínio vazias, metendo-as para dentro dos sacos. Coloco sempre dois sacos no bolso e, se tenho à mão, pelo menos um que seja grande. Garrafas de cerveja, plástico e todo o tipo de embalagens intrusas na paisagem campestre, para dentro do saco!...

É hábito arrepender-me de não ter metido mais outro saco de plástico dos grandes no bolso. Nunca consigo recolher toda a multidão de contentores de vários tamanhos e coisas intragáveis para a terra mãe das árvores, dos milheirais e dos pássaros.

Hoje por exemplo, armado em detective descobri um crime objectivamente pessoal e intransmissível. Num pequeno terreno lavrado havia – eu seja ceguinho – quase trinta latas de cerveja vazias, e a grande maioria de uma só marca. Os homens que por ali tinham andado cavaram o que puderam, mas traziam muita sede!... A ideia de fertilizarem a terra com latas de alumínio deve ter-lhes parecido luminosa.

O resto é ao longo do percurso. Há muito senhor automobilista e passageiros que hidratando-se na viagem, atiram com a embalagem pela janela. Muito prático. Enfeita o solo de refulgências de cor vária. É o esplendor publicitário, o rebrilhar do vidro e das cores eléctricas do design a subtraírem à terra a sua gravidade milenar. Fica tudo mais alegre, mais natalício.

Natal faz, no meu caso, lembrar o presépio, cenário que dizem ter sido inventado por Francesco Giovanni di Pietro Bernardone mais de doze séculos depois do nascimento de Jesus, o nazareno.

A história é uma das coisas mais complicadas do mundo e quem se ponha a ler coisas sobre isso vai encontrar tanto nome e tanta data que logo fica duvidoso ter sido esse tal Francesco que se quis pobre, um tal de Assissi, o que verdadeiramente inventou o rústico e terno cenário a que faço alusão.

Não faz mal que tenha sido assim ou de outra maneira.

E, naquela assembleia variada e subtil para quem falo no adro da igreja de Santa Luzia (sem autorização eclesiástica) ninguém fica triste, nem se zanga, nem me vêm fazer queixas daquele senhor espampanante de ouro e pedras preciosas que celebra as missas solenes do Natal do Vaticano, e que se passeia agarrado a um báculo de ouro que – vendido só a peso - já matava a fome a milhares de crianças de África e, daqui a nada, do próprio Portugal europeu e descobridor.

Em minha casa Natal é presépio, com vaca e burrinho, e que Deus nos abençoe a todos.

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Costa BritesCrónica de Natal, de 13 de Dezembro de 2012, publicada na sua coluna “Interioridades” que sai no quinzenário “Trevim”, da Lousã.
(imagem de contextualização: Mosaico de Maria Ludgera Haberstroh ilustrando o Cântico das Criaturas, na Liebfrauenkirche, Innenhof)

domingo, 5 de abril de 2015

o Homem e a Sociedade numa nova Civilização ~ do Materialismo histórico a uma Dialéctica do espírito ~

Capítulo III

Marx e Kardec

Karl Marx e Allan Kardec encarnam, nos tempos actuais, as duas grandes inquietudes do pensamento: o fenómeno social e o fenómeno espiritual. Marx traçou uma imagem do homem em desacordo com a realidade espiritual. Entretanto, no campo social, expressou verdades que, postas em prática, dariam solução à mais renhida luta de classes que, actualmente, no seu conjunto, chamamos capitalismo e comunismo.

Marx viu o homem como um composto físico-químico, isto é, como um organismo material, governado e conduzido pelos modos de produção. Kardec, pelo contrário, compreendeu o homem como um espírito encarnado num corpo físico, para demonstrar a sua evolução e a sua realidade espiritual. Mas o homem de Marx e o homem de Kardec, iguais entre si quanto ao aspecto material e diferentes na sua realidade espiritual, constituem agora uma pessoa humana ou entidade existencial, com novos direitos e iguais deveres, diante dos progressos da sociedade moderna.

Nessa pessoa existencial e humana, onde cabem tanto o homem marxista como o homem kardecista, devemos buscar a verdadeira filosofia Social. Nela se encontram os elementos indispensáveis para estabelecermos uma relação entre o problema social e o problema espiritual. Entretanto, Marx nos mostrou um homem melhor que o homem velho dependente do regime capitalista. O homem de Marx é um ser liberto da exploração económica, mas sem perspectivas metafísicas. As suas dimensões espirituais estão sujeitas ao terrestre, o que vale dizer que desaparecem com o corpo. Disso resulta ser o homem de Marx um Ser incapaz de satisfazer o anseio de imortalidade que o Espírito leva no seu íntimo.

Marx, com efeito, legou-nos um homem sem espírito. Não obstante, exigiu-lhe mais do que podia dar. Esqueceu-se de que um homem chamado a efectuar a transformação do mundo, em todos os seus aspectos, não deveria morrer, como sustenta a desoladora teoria do materialismo histórico, sobre a qual fundamentou todo o seu sistema social. Como se verá, o homem de Marx morre para sempre, depois de sacrificar-se pela instituição de um mundo melhor. É um tipo de homem que não tem vinculações palingenésicas com o processo histórico: nasce e morre sem saber qual o sentido do drama do planeta.

Apesar do erro no tocante ao Ser do homem, Marx teve acertos extraordinários ao julgar o regime capitalista e com ele a “exploração do homem pelo homem”. O seu génio demonstrou à inteligência humana que o sistema de propriedade privada está obrigado a transformar-se em sistema de propriedade colectiva. Fez ver à humanidade que o socialismo, ou regime de propriedade colectiva, corresponde a um novo sentido da vida, e assim o admite a doutrina social espírita, considerando-o como um avanço para o verdadeiro advento do cristianismo. Porque no dia em que a sociedade cristã for uma realidade, ela estará assente sobre as bases da propriedade colectiva. Vejamos o que diz o Evangelho: “Em verdade vos digo que um rico — ensinava Jesus a seus discípulos, — dificilmente entrará no Reino dos Céus. em verdade vos digo que é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha que um rico entrar no Reino de Deus.” (Mateus XIX, 23-24).

homem velho, que geralmente está representado no rico de que falava o Nazareno, é o que resiste à evolução do sistema social, e deverá ler e meditar profundamente este ensinamento do Divino Mestre. Porque são os ricos e poderosos, mesmo sendo cristãos, os menos concordes com a essência revolucionária do cristianismo. Recordemos o seguinte ensinamento evangélico: “Certa vez, um jovem rico perguntou a Jesus o que deveria fazer para conquistar a vida eterna, e o Mestre lhe respondeu: Se quiseres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me. Ouvindo o jovem estas palavras, retirou-se tristemente, porque tinha muitos haveres”. (Mateus XIX, 21-22).

Esta a razão pela qual o cristianismo nunca poderá ser a doutrina ou a religião dos ricos, potentados, latifundiários e poderosos. O cristianismo, tal como o interpreta a sociologia espírita, é uma ideia que jamais se acomodará com os interesses das classes poderosas, nem com a exploração dos humildes e o luxo desmedido dos endinheirados.

O cristianismo possui em si mesmo tudo o que Marx atribuiu (por culpa dos próprios cristãos) ao socialismo de tipo materialista. No dia em que o cristianismo se dedicar totalmente à organização social do mundo, a própria revolução comunista, tão temida na actualidade, aparecerá como um acontecimento insignificante e sem transcendência.

A comunhão de bens ou propriedade colectiva, antes do socialismo, pertenceu ao cristianismo, como sistema social. Nos Actos dos Apóstolos lê-se o seguinte: “E todos os que acreditavam estavam juntos; e tinham todas as coisas em comum (11-44). E não havia entre eles nenhum necessitado, porque todos os que possuíam herdades e casas vendiam-nas e depunham o valor aos pés dos apóstolos, para ser distribuído a cada um, segundo as suas necessidades.” (IV-34-35).

Esta doutrina do cristianismo primitivo mostra-nos que a ideia de propriedade colectiva, principal instrumento do socialismo moderno, já era praticada pelas primeiras comunidades cristãs. Portanto, a cristandade deverá renovar a presente estrutura social, aplicando o ideal económico ensinado por Jesus e os seus apóstolos, e evitando assim a implantação de um conceito materialista do homem e da sociedade.

Marx esboçou um indivíduo sem vinculações com o espiritual e o eterno. Acreditou que o Espírito constituía um embaraço para o advento de uma sociedade sem classes, porque tanto o filósofo como o religioso aplacavam as reivindicações dos oprimidos, falando-lhes de uma felicidade ultraterrena. Deste modo, o poderoso se livrava das reclamações de servos e servidores, hoje trabalhadores e obreiros em geral.

O autor de O Capital, conhecedor deste jogo, desliga-se do Espírito e atém-se unicamente à realidade objectiva das coisas. Concebe por isso um homem material, cujo destino termina com a sua morte física. Sente repulsa pelo espiritual e metafísico, porquanto a oligarquia e a opressão de todos os tempos têm submetido os homens, prometendo-lhes recompensas no além.

Daí o homem marxista estar desvinculado de todo conceito espiritual e religioso. Marx acreditava que a verdade jamais escraviza o homem, mas o eleva e melhora nas condições da vida social. Viu, entretanto, que a verdade espiritual praticada por cristãos, clérigos, sociólogos e filósofos, até meados do século 19, era uma verdade espiritual que exaltava os poderosos e lhes submetia os humildes e deserdados, isto é, a todos os que seguiam a Jesus. O cristianismo eclesiástico, que não é o cristianismo do Espírito de Verdade, hoje proclamado pela Terceira Revelação, prestou-se a esse jogo aviltante, que consistia em sufocar toda ideia de rebeldia entre os explorados. E Marx, por essa razão, negou aquela verdade espiritual, chegando à conclusão de que a única realidade se acha no mundo físico e na vida material do homem. Terminou sustentando que a verdade sempre libertará os indivíduos, e que toda a ideia religiosa, que tratasse de subjugá-los com promessas ultraterrenas, representaria uma falsa verdade ou um argumento das forças reaccionárias, para impedir a justiça social e a democracia.

Hoje, é reconhecida a razão de Marx, no que respeita ao socialismo, mas quanto à interpretação materialista do homem e da história, como se vem comprovando, Marx permanece num plano de absoluto equívoco. É este o motivo que dá argumentos aos misoneístas para combaterem Marx, não tanto com o fim de refutar a sua ideologia materialista, mas para defender o regime capitalista, onde os seus instintos possessivos possam continuar a obra de avareza e de egoísmo.

Se Marx nos legou uma falsa imagem do homem, foi devido ao procedimento moral, que já assinalamos, dos que se chamaram espiritualistas e cristãos, e que em vez de estarem com a mensagem de Cristo, e consequentemente com os pobres, despojados e explorados, estiveram com os poderosos e os afortunados. No nosso tempo, continua ainda este jogo de religiosos, espiritualistas e cristãos, que se protegem sob o poder estatal para defender os seus interesses de classe afortunada. Esta atitude dos poderosos frente aos humildes destrói, a cada momento, na vida dos povos, a ideia de Deus e do Espírito, a ponto de serem consideradas inexistentes, e, repetindo o que dizia Marx, continua-se a considerá-las como instrumentos mentais para aplacar os anseios de justiça.

Mas se o homem marxista é um erro no seu aspecto espiritual, e uma verdade na sua face social, o homem kardecista é uma verdade integral: o homem de Kardec é verdadeiro tanto no espiritual como no social. Estes mundos, na concepção espírita, não se excluem entre si, segundo afirma a mentalidade religioso-materialista. Para Kardec, esses dois mundos estão representados por dois elementos: o material e o espiritual, que deverão unir-se para revelar uma única realidade: a da vida universal.

Kardec nos assinala que esses elementos, o material e o espiritual, constituem as duas realidades através das quais deverá passar o Espírito do homem. Essa concepção confirma-nos que a justiça social e a justiça espiritual deverão desenvolver-se de forma paralela, já que tanto o processo visível como o invisível do homem e da história contribuem para o processo que conduz ao amor e à fraternidade sociais. Isso mostra-nos que o mundo material e o mundo espiritual se relacionam mutuamente, e que o desenvolvimento histórico se efectua mediante essas relações materiais e espirituais, ao lado do desenvolvimento da forma e da vida.

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Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo III MARX E KARDEC, 1 de 2, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea (1936) Salvador Dali)