Capítulo III
Marx e Kardec
Karl Marx e
Allan Kardec encarnam,
nos tempos actuais, as duas grandes inquietudes do pensamento: o fenómeno
social e o fenómeno espiritual. Marx traçou uma imagem do homem em desacordo
com a realidade espiritual. Entretanto, no campo social, expressou verdades
que, postas em prática, dariam solução à mais renhida luta de classes que,
actualmente, no seu conjunto, chamamos capitalismo e comunismo.
Marx viu o homem como um composto físico-químico, isto é,
como um organismo material, governado e conduzido pelos modos de produção. Kardec, pelo contrário,
compreendeu o homem como um espírito encarnado num corpo físico, para
demonstrar a sua evolução e a sua realidade espiritual. Mas o homem de Marx e o
homem de Kardec, iguais entre si quanto ao aspecto material e diferentes na sua
realidade espiritual, constituem agora uma pessoa humana ou entidade
existencial, com novos direitos e iguais deveres, diante dos progressos da
sociedade moderna.
Nessa pessoa existencial e humana, onde cabem tanto o homem
marxista como o homem kardecista, devemos buscar a verdadeira filosofia Social.
Nela se encontram os elementos indispensáveis para estabelecermos uma relação
entre o problema social e o problema espiritual. Entretanto, Marx nos mostrou
um homem melhor que o homem velho dependente do
regime capitalista. O homem de Marx é um ser liberto da exploração
económica, mas sem perspectivas metafísicas. As suas dimensões espirituais
estão sujeitas ao terrestre, o que vale dizer que desaparecem com o corpo.
Disso resulta ser o homem de Marx um Ser incapaz de satisfazer
o anseio de imortalidade que o Espírito leva no seu íntimo.
Marx, com efeito, legou-nos um homem sem espírito. Não
obstante, exigiu-lhe mais do que podia dar. Esqueceu-se de que um homem chamado
a efectuar a transformação do mundo, em todos os seus aspectos, não
deveria morrer, como sustenta a desoladora teoria do materialismo
histórico, sobre a qual fundamentou todo o seu sistema social. Como se verá, o
homem de Marx morre para sempre, depois de sacrificar-se pela instituição de um
mundo melhor. É um tipo de homem que não tem vinculações palingenésicas
com o processo histórico: nasce e morre sem saber qual o sentido do
drama do planeta.
Apesar do erro no tocante ao Ser do homem,
Marx teve acertos extraordinários ao julgar o regime capitalista e com ele a
“exploração do homem pelo homem”. O seu génio demonstrou à
inteligência humana que o sistema de propriedade privada está obrigado a
transformar-se em sistema de propriedade colectiva. Fez ver à
humanidade que o socialismo, ou regime de propriedade colectiva, corresponde a
um novo sentido da vida, e assim o admite a doutrina social espírita, considerando-o
como um avanço para o verdadeiro advento do cristianismo. Porque
no dia em que a sociedade cristã for uma realidade, ela estará assente sobre as
bases da propriedade colectiva. Vejamos o que diz o Evangelho: “Em verdade
vos digo que um rico — ensinava Jesus a seus discípulos, — dificilmente entrará
no Reino dos Céus. E em verdade vos digo que é mais
fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha que um rico entrar
no Reino de Deus.” (Mateus XIX, 23-24).
O homem velho, que geralmente está
representado no rico de que falava o Nazareno, é o que resiste à
evolução do sistema social, e deverá ler e meditar profundamente este
ensinamento do Divino Mestre. Porque são os ricos e poderosos, mesmo sendo
cristãos, os menos concordes com a essência revolucionária do cristianismo. Recordemos
o seguinte ensinamento evangélico: “Certa vez, um jovem rico perguntou a Jesus
o que deveria fazer para conquistar a vida eterna, e o Mestre lhe respondeu: Se
quiseres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá-o aos pobres, e
terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me. Ouvindo o jovem
estas palavras, retirou-se tristemente, porque tinha muitos
haveres”. (Mateus XIX, 21-22).
Esta a razão pela qual o cristianismo nunca poderá ser a
doutrina ou a religião dos ricos, potentados, latifundiários e poderosos. O
cristianismo, tal como o interpreta a sociologia espírita, é uma ideia
que jamais se acomodará com os interesses das classes poderosas, nem com a
exploração dos humildes e o luxo desmedido dos endinheirados.
O cristianismo possui em si mesmo tudo o que Marx atribuiu
(por culpa dos próprios cristãos) ao socialismo de tipo materialista. No dia em
que o cristianismo se dedicar totalmente à organização social do mundo, a
própria revolução comunista, tão temida na actualidade, aparecerá como um
acontecimento insignificante e sem transcendência.
A comunhão de bens ou propriedade colectiva, antes do
socialismo, pertenceu ao cristianismo, como sistema social. Nos Actos
dos Apóstolos lê-se o seguinte: “E todos os que acreditavam estavam
juntos; e tinham todas as coisas em comum (11-44). E não havia
entre eles nenhum necessitado, porque todos os que possuíam
herdades e casas vendiam-nas e depunham o valor aos pés dos
apóstolos, para ser distribuído a cada um, segundo as suas
necessidades.” (IV-34-35).
Esta doutrina do cristianismo primitivo mostra-nos que a
ideia de propriedade colectiva, principal instrumento do socialismo moderno, já
era praticada pelas primeiras comunidades cristãs. Portanto, a
cristandade deverá renovar a presente estrutura social, aplicando o ideal
económico ensinado por Jesus e os seus apóstolos, e evitando assim a
implantação de um conceito materialista do homem e da sociedade.
Marx esboçou um indivíduo sem vinculações com o espiritual e
o eterno. Acreditou que o Espírito constituía um embaraço para o
advento de uma sociedade sem classes, porque tanto o filósofo como o
religioso aplacavam as reivindicações dos oprimidos, falando-lhes de uma
felicidade ultraterrena. Deste modo, o poderoso se livrava das reclamações de
servos e servidores, hoje trabalhadores e obreiros em geral.
O autor de O Capital, conhecedor deste
jogo, desliga-se do Espírito e atém-se unicamente à realidade objectiva
das coisas. Concebe por isso um homem material, cujo destino termina
com a sua morte física. Sente repulsa pelo espiritual e metafísico, porquanto a
oligarquia e a opressão de todos os tempos têm submetido os homens,
prometendo-lhes recompensas no além.
Daí o homem marxista estar desvinculado de todo conceito
espiritual e religioso. Marx acreditava que a verdade jamais escraviza o homem,
mas o eleva e melhora nas condições da vida social. Viu, entretanto, que a
verdade espiritual praticada por cristãos, clérigos,
sociólogos e filósofos, até meados do século 19, era uma verdade
espiritual que exaltava os poderosos e lhes submetia os humildes e deserdados,
isto é, a todos os que seguiam a Jesus. O cristianismo eclesiástico, que
não é o cristianismo do Espírito de Verdade, hoje proclamado pela
Terceira Revelação, prestou-se a esse jogo aviltante, que consistia em
sufocar toda ideia de rebeldia entre os explorados. E Marx, por essa razão,
negou aquela verdade espiritual, chegando à conclusão de que a única realidade
se acha no mundo físico e na vida material do homem. Terminou sustentando que a
verdade sempre libertará os indivíduos, e que toda a ideia religiosa, que
tratasse de subjugá-los com promessas ultraterrenas, representaria uma falsa
verdade ou um argumento das forças reaccionárias, para impedir a justiça social
e a democracia.
Hoje, é reconhecida a razão de Marx, no que respeita ao
socialismo, mas quanto à interpretação materialista do homem e da história,
como se vem comprovando, Marx permanece num plano de absoluto equívoco. É este
o motivo que dá argumentos aos misoneístas para
combaterem Marx, não tanto com o fim de refutar a sua ideologia materialista,
mas para defender o regime capitalista, onde os seus instintos possessivos
possam continuar a obra de avareza e de egoísmo.
Se Marx nos legou uma falsa imagem do homem, foi devido ao
procedimento moral, que já assinalamos, dos que se chamaram
espiritualistas e cristãos, e que em vez de estarem com a mensagem de
Cristo, e consequentemente com os pobres, despojados e explorados, estiveram
com os poderosos e os afortunados. No nosso tempo, continua ainda este jogo de
religiosos, espiritualistas e cristãos, que se protegem sob o poder estatal
para defender os seus interesses de classe afortunada. Esta atitude dos
poderosos frente aos humildes destrói, a cada momento, na vida dos povos, a
ideia de Deus e do Espírito, a ponto de serem consideradas inexistentes, e,
repetindo o que dizia Marx, continua-se a considerá-las como instrumentos
mentais para aplacar os anseios de justiça.
Mas se o homem marxista é um erro no seu aspecto espiritual,
e uma verdade na sua face social, o homem kardecista é uma verdade integral: o
homem de Kardec é verdadeiro tanto no espiritual como no social. Estes
mundos, na concepção espírita, não se excluem entre si, segundo afirma a
mentalidade religioso-materialista. Para Kardec, esses dois mundos estão
representados por dois elementos: o material e o espiritual, que
deverão unir-se para revelar uma única realidade: a da vida universal.
Kardec nos assinala que esses elementos, o material e o
espiritual, constituem as duas realidades através das quais deverá passar o
Espírito do homem. Essa concepção confirma-nos que a justiça social e a
justiça espiritual deverão desenvolver-se de forma paralela, já que tanto o
processo visível como o invisível do homem e da história contribuem para o
processo que conduz ao amor e à fraternidade sociais. Isso mostra-nos que o
mundo material e o mundo espiritual se relacionam mutuamente, e que o
desenvolvimento histórico se efectua mediante essas relações materiais e
espirituais, ao lado do desenvolvimento da forma e da vida.
/...
Humberto Mariotti, O
Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, 1ª PARTE O NÚMENO
ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo III MARX E KARDEC, 1 de
2, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad
paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea (1936) Salvador Dali)
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