domingo, 20 de dezembro de 2015

~ explicações em proporção com os conhecimentos ao tempo ~


A história da origem de quase todos os povos antigos confunde-se com a da sua religião: é por isso que os seus primeiros livros foram livros religiosos; e, como todas as religiões que se ligam ao princípio das coisas, que é também o da humanidade, deram sobre a formação e organização do Universo explicações em proporção com o estado dos conhecimentos do tempo e dos seus fundadores. Daí resultou que os primeiros livros sagrados fossem ao mesmo tempo os primeiros livros de ciência, assim como foram durante muito tempo o único código das leis civis.

Nos tempos primitivos, sendo os meios de observação necessariamente muito imperfeitos, as primeiras teorias sobre o sistema do mundo deviam estar manchadas de erros grosseiros; mas se esses meios tivessem sido completos tal como o são hoje, os homens não teriam sabido servir-se deles; não podiam ser aliás mais do que o produto do desenvolvimento da inteligência e do conhecimento sucessivo das leis da natureza. À medida que o homem foi evoluindo no conhecimento dessas leis, penetrou nos mistérios da Criação e corrigiu as ideias que fazia sobre as coisas.

O homem foi impotente para resolver o problema da Criação até ao momento em que a chave lhe foi dada pela ciência. Foi preciso que a astronomia lhe abrisse as portas do espaço infinito e lhe permitisse mergulhar nele o seu olhar; que pela força do cálculo, pudesse determinar com rigorosa precisão o movimento, a posição, o volume, a natureza e o papel dos corpos celestes; que a física lhe revelasse as leis da gravidade, do calor, da luz e da electricidade; que a química lhe ensinasse as transformações da matéria e a mineralogia os materiais que formam a crosta do globo; que a geologia lhe ensinasse a ler nas camadas terrestres a formação gradual desse mesmo globo. A botânica, a zoologia, a paleontologia, a antropologia, iriam iniciá-lo na filiação e na sucessão dos seres organizados; com a arqueologia, foi-lhe possível seguir os traços da humanidade através dos tempos; todas as ciências, numa palavra, completando-se umas às outras, iriam dar o seu contributo indispensável ao conhecimento da História do mundo; na sua falta, o homem só tinha por guia as suas primeiras hipóteses.

Também, antes de o homem estar na posse destes elementos de apreciação, todos os comentadores da Génese, cuja razão embatia em impossibilidades materiais, giravam num mesmo círculo sem dele poderem sair; só o puderam fazer quando a ciência abriu o caminho, cavando uma brecha no edifício das crenças, e então tudo mudou de aspecto; uma vez encontrado o fio condutor, as dificuldades foram completamente reduzidas; em vez de uma Génese imaginária, obtivemos uma Génese positiva e, de certo modo, experimental; o campo do Universo estendeu-se ao infinito; viu-se a Terra e os astros a formarem-se gradualmente segundo as leis eternas e imutáveis que testemunham bem melhor a grandeza e a sabedoria de Deus que uma criação miraculosa saída subitamente do nada, como uma alteração à vista graças a uma ideia súbita da Divindade após uma eternidade de inacção.

Uma vez que é impossível conceber a Génese sem os dados fornecidos pela ciência, podemos dizer na verdade que: a ciência é chamada a formar a verdadeira Génese segundo as leis da natureza.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo IV, PAPEL DA CIÊNCIA NA GÉNESE 1, 2 e 3, tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida
(imagem de contextualização: A Criação de Adão, detalhe do tecto da Capela Sistina, por Michelangelo)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Corpo fluídico | agénere ou aparição tangível ~


Capítulo Segundo

KARDEC E O CORPO FLUÍDICO (II)

"Quando tratarmos destas questões fá-lo-emos decididamente. Mas é que então teremos recolhido documentos bastante numerosos nos ensinos dados de todos os lados pelos Espíritos, a fim de poder falar afirmativamente e ter a certeza de estar de acordo com a maioria. É assim que temos feito, todas as vezes que se trata de formular um princípio capital. Dissemo-lo cem vezes, para nós a opinião de um Espírito, seja qual for o nome que traga, tem apenas o valor de uma opinião individual. O nosso critério está na concordância universal, corroborada por uma rigorosa lógica, para as coisas que não podemos controlar com os próprios olhos. De que nos serviria dar prematuramente uma doutrina como uma verdade absoluta se, mais tarde, devesse ser combatida pela generalidade dos Espíritas?

"Dissemos que o livro do Sr. Roustaing não se afasta dos princípios do Livro dos Espíritos e do dos Médiuns. As nossas observações são feitas sobre a aplicação desses mesmos princípios à interpretação de certos factos. É assim, por exemplo, que dá a Cristo, em vez de um corpo carnal, um corpo fluídico concretizado, com todas as aparências da materialidade é de facto um agénere. Aos olhos dos homens que não tivessem então podido compreender a sua natureza espiritual, deve ter passado em aparência, expressão incessantemente repetida no curso de toda a obra, para todas as vicissitudes da humanidade. Assim, seria explicado o mistério de seu nascimento: Maria teria tido apenas as aparências da gravidez. Posto como premissa e pedra angular, este ponto é a base em que se apoia para a explicação de todos os factos extraordinários ou miraculosos da vida de Jesus.

"Nisso nada há de materialmente impossível para quem quer que conheça as propriedades do envoltório perispiritual. Sem nos pronunciarmos pró ou contra essa teoria, diremos que ela é, pelo menos, hipotética, e que se um dia fosse reconhecida errada, na falta de base todo o edifício desabaria. Esperemos, pois, os numerosos comentários que ela não deixará de provocar da parte dos Espíritos, e que contribuirão para elucidar a questão. Sem a prejulgar, diremos que já foram feitas objecções sérias a essa teoria e que, na nossa opinião, os factos podem perfeitamente ser explicados sem sair das condições da humanidade corporal.

"Estas observações, subordinadas à sanção do futuro, em nada diminuem a importância da obra que, ao lado de coisas duvidosas, do nosso ponto de vista, encerra outras incontestavelmente boas e verdadeiras, e será consultada com frutos pelos Espíritas sérios.

"Se o fundo de um livro é o principal, a forma não é para desdenhar e contribui com algo para o seu sucesso. Achamos que certas partes são desenvolvidas muito extensamente, sem proveito para a clareza. A nosso ver, limitando-se ao estritamente necessário, a obra poderia ter sido reduzida a dois, ou mesmo a um só volume e teria ganho em popularidade."

Essa a análise de "Os Quatro Evangelhos" feita por Allan Kardec. Equilibrada e lógica, afirma que a obra tem "o mérito de não estar, em nenhum ponto, em contradição com a doutrina ensinada pelo Livro dos Espíritos dos Médiuns". Essa afirmativa, para ser compreendida, precisa da complementação que ele mesmo fornece no quarto parágrafo: "As nossas observações são feitas sobre a aplicação desses mesmos princípios à interpretação de certos factos" e mais a primeira frase do quinto parágrafo, que diz: "Nisso nada há de materialmente impossível para quem quer que conheça as propriedades do envoltório perispiritual", referindo-se directamente ao corpo fluídico. Assim, ao atribuir a Jesus um corpo agénere, "Os Quatro Evangelhos" não ferem os princípios estabelecidos na codificação, porque a existência do agénere é um facto situado dentro das leis naturais. Isso, no entanto, não significa que Kardec concorde com o Cristo agénere. Mostra, apenas, a imparcialidade com que trata a questão. A prova disto está no facto de afirmar que a obra não contradiz a Doutrina Espírita e, mais à frente, esclarecer a razão da inexistência da contradição. A sua tendência inicial, porém, é não aceitar o corpo fluídico: "os factos podem perfeitamente ser explicados sem sair das condições da humanidade corporal". Entretanto, deixa no futuro a responsabilidade de aprovar ou desaprovar: "quando tratarmos destas questões fá-lo-emos decididamente".

O Codificador mostra as diferenças entre o seu "Evangelho segundo o Espiritismo" e os "Quatro Evangelhos" de Roustaing, ao dizer que preferiu a parte moral dos ensinos de Cristo, porque contém lições que "jamais foram assunto para controvérsias religiosas", o que não aconteceu com Roustaing, que "julgou dever seguir um outro caminho". E o critica: "Em vez de proceder por gradação, quis atingir o fim de um salto". Para ele, Roustaing e os Espíritos que ditaram a obra poderiam estar enganados com relação ao corpo de Jesus, pois agiam de forma precipitada ao defini-lo como um agénere perfeito e - excepcionalmente - de longa duração, sem atentar para o facto da comprovação pela universalidade dos ensinos. Já Kardec preferia se manter "consequente com o nosso princípio, que consiste em regular a nossa marcha pelo desenvolvimento da opinião" e deixar "ao tempo o trabalho de as sancionar ou as contraditar", as teorias roustainguistas do corpo fluídico de Jesus, da falsa concepção por Maria, etc. Estas teorias na obra roustainguista formam "a base em que se apoia para a explicação de todos os factos extraordinários ou miraculosos da vida de Jesus" e se fossem consideradas erradas, "em falta de base todo o edifício desabaria".

Kardec não se importa, em absoluto, com o nome deste ou daquele Espírito que assina "Os Quatro Evangelhos",porque "a opinião de um Espírito, seja qual for o nome que traga, tem apenas o valor de uma opinião individual", uma vez que o critério que sempre foi de Kardec "está na concordância universal, corroborada por uma rigorosa lógica". Vai além, dizendo que já haviam sido feitas "objecções sérias a essa teoria" do corpo de Jesus.

Por fim, Kardec condena a estrutura do livro, afirmando que "certas partes são desenvolvidas muito extensamente, sem proveito para a clareza". Roustaing deveria ter-se preocupado com este aspecto, "que não é para desdenhar e contribui com algo para o sucesso", porque "limitando-se ao estritamente necessário a obra poderia ter sido reduzida a dois ou mesmo a um só volume e teria ganho em popularidade".

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Wilson GarciaO Corpo Fluídico, Capítulo Segundo – KARDEC E O CORPO FLUÍDICO 2 de 5, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Sem título, pintura de Josefina Robirosa)