quinta-feira, 17 de abril de 2014

Giovanna ~

II

Era, sobretudo por ocasião das viagens, muito curtas para o seu gosto, que Maurice fazia à morada paterna e durante as excursões que se seguiam, que o seu pensamento, estimulado pela poesia da natureza, se elevava para Deus num impulso rápido e seguro. Ele gostava então de perambular nos desfiladeiros selvagens dos montes, de percorrer os lugares apartados onde ressoavam o murmúrio perpétuo das torrentes e das cascatas, as florestas de pinheiros, de faias, de lariços que cobrem com as suas sombrias cúpulas os declives dos Alpes.

O sopro dos ventos, esfregando a galharia, lançando na profundeza dos bosques as suas notas queixosas e harmoniosas, semelhantes à acção de um órgão invisível, o murmúrio das águas esguichantes, o canto dos passarinhos, até o barulho longínquo do machado batendo os troncos sonoros, todas essas vozes da solidão embalam o seu espírito, lhe falando uma linguagem de paz. Sobre os cumes banhados de luz, sob as abóbadas verdejantes, a sua prece subia para Deus de uma forma mais pura e ardente que nos templos invadidos pela multidão. No seio dos bosques cheirosos, retiros sombrios e escondidos o convidavam ao repouso. E os milhares de ruídos desta natureza alpestre formavam para ele uma melodia deliciosa na qual se inebriava a ponto de esquecer as horas e de deixar passar o momento de regressar.

Ele precisou, todavia, de se desarraigar dessas festas dos olhos e do coração e retomar o curso dos estudos interrompidos. Maurice passou nos seus exames com sucesso. Hesitando em seguida entre as diversas carreiras que se lhe abriam, a convite de seu pai, fez Direito, recebeu o título de advogado e começou a exercer a profissão no fórum de Milão. A sua eloquência ousada, exercitada, a sua viva imaginação, e o estudo aprofundados das causas a ele confiadas, o fizeram logo se distinguir no mundo dos tribunais; um brilhante porvir sorria à sua ambição se tivesse querido curvar a sua consciência às subtilezas da trapaça e da política, fazendo-se um satélite dos poderosos. Mas esta alma elevada e altiva não podia se rebaixar a uma tal função. As intrigas, as torpezas dos tribunais e dos salões a enchiam de amargura. O espectáculo de um mundo ocioso, corrompido, ostentando com estrépito a sua riqueza e os seus títulos, a cupidez, e o egoísmo, tomando de assalto a sociedade e a dominando; a probidade cambaleante; a especulação desenfreada humilhando o trabalho regenerador; todas essas úlceras de nossa época de decadência moral se mostravam na sua hediondez aos olhos do jovem e lhe levaram a desprezar a vida, a se desligar mais e mais das coisas terrestres. Na taça dos prazeres, tendo querido temperar os seus lábios, ele não havia encontrado senão fel; o amor tarifado, a orgia brutal, o jogo estupefaciente, foram para ele outros tantos monstros que o fizeram recuar de horror.

Com tais gostos, uma disposição natural à meditação, o amor pela solidão, viu desatar-se pouco a pouco todas as suas relações. Aqueles que primeiramente o haviam acolhido, repelidos por essa rigidez, por essa misantropia que se exalava em termos amargos, pela ausência da benevolência tão necessária ao sábio, se afastaram de Maurice e o deixaram a seus sonhos. A vida se desfez em torno dele. Um desgosto profundo apoderou-se do jovem advogado. Ele recusava as causas maléficas ou duvidosas que lhe eram oferecidas e viu assim reduzir-se o número dos seus clientes. As suas brilhantes faculdades permaneceram sem emprego.

Um morno abatimento o invadia, quando de Domaso lhe chegou a notícia de que o seu pai, gravemente doente, pedia a sua presença perto dele. Maurice partiu imediatamente.

O exilado, devorado pela nostalgia, por esse amor à terra natal, sentia uma necessidade da pátria que nada podia substituir, lutava em vão contra um mal sem remédio. Logo morreu entre os braços de seu filho. Esta morte estendeu uma sombra ainda mais espessa sobre a fronte de Maurice; a sua tristeza, a sua melancolia naturais aumentaram. Renunciou ao fórum e instalou-se na pequena casa solitária que lhe havia legado o defunto. O seu tempo era repartido entre as leituras e as excursões. Frequentemente, desde a manhã, pegava no seu fuzil e, sob o pretexto de caçar, percorria a região em todos os sentidos, indo à aventura, descuidado dos caminhos. A caça podia impunemente passar perto dele. Mergulhado em intermináveis desvarios, não pensava muito em persegui-la. Sentava-se por vezes sobre qualquer ponto rochoso dominando o lago, para observar o movimento dos barcos deslizando sob o esforço dos remadores, as águias descrevendo círculos imensos no céu, as lentas gradações da luz durante as horas do entardecer e, assim, apenas quando a noite começava a estender o seu véu sobre a terra, é que ele pensava em voltar à sua morada.

Foi durante um desses cursos que, surpreendido pela tempestade, ele se refugiou entre os Menoni e aí encontrou Giovanna. Desde esse dia, a sua vida mudou.

A visão desta moça o reaqueceu subitamente. Um alegre raio de sol penetra a obscuridade de sua alma; uma voz desconhecida canta ao seu coração. Primeiro não se dá conta do sentimento novo que nasce nele. Uma força magnética o levava para a mocinha e ele a obedecia instintivamente. Quando ela estava lá, diante dele, de tudo esquecia, observando-a, escutando-a. O timbre de sua voz, ritmado, despertava no seu ser ecos de uma doçura infinita. Via nela mais que uma moça da terra, mais que uma criatura humana, como que uma aparição passageira, reflexo misterioso de um outro mundo, um tesouro de beleza, de pureza, de caridade, ao qual Deus emprestava uma forma sensível a fim de que, ao vê-la, os homens pudessem compreender as perfeições celestes e a isso aspirar. A presença de Giovanna o arrancava à sua misantropia. Fazia surgir nele uma onda de pensamentos benfazejos, generosos, um ardente desejo de ser bom e de consolar. O seu exemplo o convidava ao bem; sentia a vida, a inutilidade de sua vida e compreendia enfim que tinha melhor a fazer aqui em baixo do que fugir dos homens e se fechar numa indiferença egoísta. Interessava-se pelas dores dos outros; pensava mais frequentemente nos pequenos, nos deserdados desse mundo, em todos os que estão oprimidos pela adversidade; procurava avidamente os meios de lhes ser útil.

Durante as suas conversas, ainda que se falassem pouco, trocavam milhares de pensamentos. A alma tem meios de se exprimir, de se comunicar com o exterior, que a ciência humana não pode definir, nem analisar. Uma atmosfera fluídica, em correlação íntima com o seu estado moral, envolve todos os seres e, seguindo a sua natureza, simpática ou contrária, se atraem, se repelem, se expandem ou se fecham, e é assim que se explicam as impressões, que a simples vista de pessoas desconhecidas nos fazem experimentar.

Os dias se escoam. Graças ao socorro de Joana, graças aos cuidados do médico de Gravedona, ao qual Maurice pagava as visitas, Marta tinha recuperado a sua saúde. No dia que pode sair, uma agradável surpresa a esperava lá fora. O jardim, invadido há pouco tempo pelas ervas e silvas emaranhadas, estava renovado, limpo e gracioso. O outono tinha suspendido nas árvores guirlandas de ouro e de esmeralda. Pereiras, figueiras, abricoteiros, dobravam sob o peso dos seus frutos. Longos cachos de uvas vermelhas pendiam entre os ramos das amoreiras; opulentos legumes cobriam os canteiros. Um hábil jardineiro, enviado por Maurice havia podado as árvores, cuidado da vinha, operado esta transformação. Tinha feito desse recanto desolado um maravilhoso pomar. O inverno podia vir. A vida da pobre família estava assegurada.

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Léon Denis, Giovanna_1880, II 3º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Retrato, pequena pintura que especialistas de arte italiana atribuem a Rafael Sanzio)

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