II
Era, sobretudo por ocasião das viagens, muito curtas para o
seu gosto, que Maurice fazia à morada paterna e durante as
excursões que se seguiam, que o seu pensamento, estimulado pela poesia da
natureza, se elevava para Deus num impulso rápido e seguro. Ele gostava então
de perambular nos desfiladeiros selvagens dos montes, de percorrer os lugares
apartados onde ressoavam o murmúrio perpétuo das torrentes e das cascatas, as
florestas de pinheiros, de faias, de lariços que cobrem com as suas sombrias
cúpulas os declives dos Alpes.
O sopro dos ventos, esfregando a galharia, lançando na
profundeza dos bosques as suas notas queixosas e harmoniosas, semelhantes à
acção de um órgão invisível, o murmúrio das águas esguichantes, o canto dos
passarinhos, até o barulho longínquo do machado batendo os troncos sonoros,
todas essas vozes da solidão embalam o seu espírito, lhe falando uma linguagem
de paz. Sobre os cumes banhados de luz, sob as abóbadas verdejantes, a sua
prece subia para Deus de uma forma mais pura e ardente que nos templos invadidos
pela multidão. No seio dos bosques cheirosos, retiros sombrios e escondidos o
convidavam ao repouso. E os milhares de ruídos desta natureza alpestre formavam para ele
uma melodia deliciosa na qual se inebriava a ponto de esquecer as horas e de
deixar passar o momento de regressar.
Ele precisou, todavia, de se desarraigar dessas festas dos
olhos e do coração e retomar o curso dos estudos interrompidos. Maurice passou
nos seus exames com sucesso. Hesitando em seguida entre as diversas carreiras
que se lhe abriam, a convite de seu pai, fez Direito, recebeu o título de
advogado e começou a exercer a profissão no fórum de Milão. A sua eloquência
ousada, exercitada, a sua viva imaginação, e o estudo aprofundados das causas a
ele confiadas, o fizeram logo se distinguir no mundo dos tribunais; um
brilhante porvir sorria à sua ambição se tivesse querido curvar a sua
consciência às subtilezas da trapaça e da política, fazendo-se um satélite dos
poderosos. Mas esta alma elevada e altiva não podia se rebaixar a uma tal
função. As intrigas, as torpezas dos tribunais e dos salões a enchiam de
amargura. O espectáculo de um mundo ocioso, corrompido, ostentando com
estrépito a sua riqueza e os seus títulos, a cupidez, e o egoísmo, tomando de
assalto a sociedade e a dominando; a probidade cambaleante; a especulação
desenfreada humilhando o trabalho regenerador; todas essas úlceras de nossa
época de decadência moral se mostravam na sua hediondez aos olhos do jovem e
lhe levaram a desprezar a vida, a se desligar mais e mais das coisas
terrestres. Na taça dos prazeres, tendo querido temperar os seus lábios, ele
não havia encontrado senão fel; o amor tarifado, a orgia brutal, o jogo
estupefaciente, foram para ele outros tantos monstros que o fizeram recuar de
horror.
Com tais gostos, uma disposição natural à meditação, o amor
pela solidão, viu desatar-se pouco a pouco todas as suas relações. Aqueles que
primeiramente o haviam acolhido, repelidos por essa rigidez, por essa
misantropia que se exalava em termos amargos, pela ausência da benevolência tão
necessária ao sábio, se afastaram de Maurice e o deixaram a seus sonhos. A vida
se desfez em torno dele. Um desgosto profundo apoderou-se do jovem advogado.
Ele recusava as causas maléficas ou duvidosas que lhe eram oferecidas e viu
assim reduzir-se o número dos seus clientes. As suas brilhantes faculdades
permaneceram sem emprego.
Um morno abatimento o invadia, quando de Domaso lhe chegou a
notícia de que o seu pai, gravemente doente, pedia a sua presença perto dele.
Maurice partiu imediatamente.
O exilado, devorado pela nostalgia, por esse amor à terra
natal, sentia uma necessidade da pátria que nada podia substituir, lutava em
vão contra um mal sem remédio. Logo morreu entre os braços de seu filho. Esta
morte estendeu uma sombra ainda mais espessa sobre a fronte de Maurice; a sua
tristeza, a sua melancolia naturais aumentaram. Renunciou ao fórum e
instalou-se na pequena casa solitária que lhe havia legado o defunto. O seu
tempo era repartido entre as leituras e as excursões. Frequentemente, desde a
manhã, pegava no seu fuzil e, sob o
pretexto de caçar, percorria a região em todos os sentidos, indo à aventura,
descuidado dos caminhos. A caça podia impunemente passar perto dele. Mergulhado
em intermináveis desvarios, não pensava muito em persegui-la. Sentava-se por
vezes sobre qualquer ponto rochoso dominando o lago, para observar o movimento
dos barcos deslizando sob o esforço dos remadores, as águias descrevendo
círculos imensos no céu, as lentas gradações da luz durante as horas do
entardecer e, assim, apenas quando a noite começava a estender o seu véu sobre
a terra, é que ele pensava em voltar à sua morada.
Foi durante um desses cursos que, surpreendido pela
tempestade, ele se refugiou entre os Menoni e aí encontrou Giovanna.
Desde esse dia, a sua vida mudou.
A visão desta moça o reaqueceu subitamente. Um alegre raio
de sol penetra a obscuridade de sua alma; uma voz desconhecida canta ao seu
coração. Primeiro não se dá conta do sentimento novo que nasce nele. Uma força
magnética o levava para a mocinha e ele a obedecia instintivamente. Quando ela
estava lá, diante dele, de tudo esquecia, observando-a, escutando-a. O timbre
de sua voz, ritmado, despertava no seu ser ecos de uma doçura infinita. Via
nela mais que uma moça da terra, mais que uma criatura humana, como que uma
aparição passageira, reflexo misterioso de um outro mundo, um tesouro de
beleza, de pureza, de caridade, ao qual Deus emprestava uma forma sensível a
fim de que, ao vê-la, os homens pudessem compreender as perfeições celestes e a
isso aspirar. A presença de Giovanna o arrancava à sua misantropia. Fazia
surgir nele uma onda de pensamentos benfazejos, generosos, um ardente desejo de
ser bom e de consolar. O seu exemplo o convidava ao bem; sentia a vida, a
inutilidade de sua vida e compreendia enfim que tinha melhor a fazer aqui em
baixo do que fugir dos homens e se fechar numa indiferença egoísta.
Interessava-se pelas dores dos outros; pensava mais frequentemente nos
pequenos, nos deserdados desse mundo, em todos os que estão oprimidos pela
adversidade; procurava avidamente os meios de lhes ser útil.
Durante as suas conversas, ainda que se falassem pouco,
trocavam milhares de pensamentos. A alma tem meios de se exprimir, de se
comunicar com o exterior, que a ciência humana não pode definir, nem analisar.
Uma atmosfera fluídica, em correlação íntima com o seu estado moral, envolve
todos os seres e, seguindo a sua natureza, simpática ou contrária, se atraem,
se repelem, se expandem ou se fecham, e é assim que se explicam as impressões,
que a simples vista de pessoas desconhecidas nos fazem experimentar.
Os dias se escoam. Graças ao socorro de Joana, graças aos
cuidados do médico de Gravedona, ao qual Maurice pagava as visitas, Marta tinha
recuperado a sua saúde. No dia que pode sair, uma agradável surpresa a esperava
lá fora. O jardim, invadido há pouco tempo pelas ervas e silvas emaranhadas,
estava renovado, limpo e gracioso. O outono tinha suspendido nas
árvores guirlandas de ouro e de esmeralda. Pereiras, figueiras,
abricoteiros, dobravam sob o peso dos seus frutos. Longos cachos de uvas
vermelhas pendiam entre os ramos das amoreiras; opulentos legumes cobriam os
canteiros. Um hábil jardineiro, enviado por Maurice havia podado as árvores,
cuidado da vinha, operado esta transformação. Tinha feito desse recanto
desolado um maravilhoso pomar. O inverno podia vir. A vida da pobre família
estava assegurada.
/...
Léon Denis, Giovanna_1880, II 3º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Retrato, pequena
pintura que especialistas de arte italiana atribuem a Rafael Sanzio)
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