domingo, 16 de abril de 2017

~~~Párias em Redenção~~~

O TESTAMENTO (I)

Terminados os ofícios fúnebres dedicados aos infortunados descendentes do duque di Bicci di M., os despojos mortais das crianças foram inumados no mausoléu da família, na delicada capela fronteiriça à casa senhorial, na qual dias antes fora depositado o corpo de Dom Giovanni. Lúcia, acusada vilmente por Girólamo, que se fazia acompanhar do falso testemunho de Assunta, teve negada pela Igreja “terra sagrada” ao seu corpo, que não mereceu exéquias de qualquer natureza, sendo sepultada na floresta, como animal batido em refrega selvagem.

As autoridades policiais fizeram ligeira investigação e, como faltasse um móbil para outras suspeitas, o “caso” foi encerrado dentro das disposições legais e as sombras fantasmagóricas da tragédia caíram pesadamente sobre o palácio, onde antes abundavam a alegria e a fartura, a arte e a beleza, quando nos dias da Senhora duquesa Ângela.

Girólamo, por autorização da Justiça de Siena, despediu os servos, permitindo somente a alguns que se fixassem no local, nos mesmos terrenos da propriedade do seu tio e pai adoptivo, enquanto se tomavam as providências para abertura do testamento, em data a ser fixada, logo diminuísse o impacto do infortúnio que enlutara toda a região. Fâmulos e servos foram dispensados, ficando, apenas, alguns zeladores para guarda e conservação da casa, amanho do solo e protecção aos animais…

Fingindo um abatimento profundo e recusando alimentos, em ardilosa atitude, estudada para escapar a quaisquer suspeitas, o moço malsinado concertou com Assunta os planos para o futuro.

– Acredito conveniente – arengou, logo pôde encontrar-se com a sórdida companheira de crimes – que nos separemos por algum tempo e que te dirijas à Capital (*), de modo a evitar desconfianças quanto aos acontecimentos últimos do Palácio di Bicci.

Procurando demonstrar um amor e afecto que estava longe de sentir, envolveu a jovem irresponsável com braços de lânguida sensualidade e, persuadindo-a, serpente que hipnotiza a pomba invigilante para a devorar depois, continuou:

– Não ignoras o imenso amor que me devora a alma por ti. Sabes da chama que me queima e requeima, somente diminuindo de intensidade quando em comunhão contigo. Anelo a bênção do matrimónio, a fim de regularizar a nossa incómoda situação, quando, passado algum tempo e o esquecimento tudo tiver envolvido, retornares à nossa casa, na condição de senhora.

 – Temo, Girólamo! Pressinto que nunca poderei ser feliz a teu lado, por mais que o cobice. Devorada pela paixão, não titubeei em ser-te fiel até ao crime. Por ti faria muito mais. Esta loucura, que me cega e que me conduz à destruição em passos de corcel veloz, me domina cada dia, e temo. Não me enganas: somos da mesma têmpera e feitos do mesmo material. Eu te amo, embora não creia no teu afecto. Pressinto que te queres apartar de mim e que, no resultado final da escolha, ficarei à margem. Seleccionarás uma dessas mulheres que são adorno social, para compartir as homenagens e glórias contigo, embora me busques às escapadas, para o leito da animalidade. Não te atrevas, porém, a trair-me. Sabes que nós, os etruscos, especialmente os nascidos em Chiusi, somos violentos e apaixonados; recorda que os nossos ascendentes, que antes dominaram estas terras, defenderam-na até à total extinção da raça. Já te disse muitas vezes que não sou daquelas que cedem ou que se conformam com a derrota. Arrastaste-me ao crime e tens agora o teu destino ao meu ligado…

Repentinamente, desapareceram do rosto da jovem os sinais da ternura e da afectividade, transformando-se a face, visivelmente conturbada. Os olhos se dilataram e, afastando-se do amante com gesto brusco, gargalhou, transtornada, falando com os dentes rilhados:

– Qualquer traição da tua parte será cobrada com o ácido da vindita. Denunciar-te-ei às autoridades, narrando toda a infâmia, desde os seus primeiros planos; direi a forma como me seduziste, arrastando-me contigo à perene desdita, mesmo que, com a denúncia da tua pessoa, eu pague o suplício a teu lado. Nunca te cederei a outra, não esqueças!

Muito pálido, o moço, acobardado ante a acusação que temia e esperava, avançou e esbofeteou a jovem, enquanto lhe gritava:

– Não me repitas mais esta acusação; nunca mais! Desgraçados já o somos desde a hora do nosso conúbio para o homicídio e a desonra. A memória da minha tia me persegue e um surdo ódio ainda me extravasa do coração quando recordo o duque, e sinto algo, como se a sua sombra hedionda me seguisse os passos. As artimanhas do remorso já tomam forma na minha memória e procuro apagá-las… Tu, também, te levantas para me incriminar, sabendo que tudo foi feito para nossa felicidade, porque te amo e desejo a paz para nós? Antes, a nossa união seria impossível… Agora, quando tudo se regularize e eu passe a ostentar o poder, quem me censurará a escolha? Não sabes que o dinheiro e a posição tudo conseguem no mundo? Cala e ouve!

A encenação desmedida produzida por Girólamo impressionou favoravelmente a companheira inexperiente.

Ele a fitou, e enquanto os seus olhos brilhavam – ninguém poderia saber se de volúpia, aumentada pela ardência do atrito, se de paixão de homem desregrado, ou de medo da ameaça –, imprimiu a fogo as palavras proferidas pela moça, no adito da memória, para estar sempre vigilante, constatando que ela o faria, assim se sentisse ludibriada na posse devastadora da carne.

Girólamo, conquanto jovem, desde cedo acostumara-se às astúcias do crime, Espírito endividado em muitas existências, trazia consigo as sementes da violência e da alucinação cobarde, conhecendo os meandros sórdidos da consciência muitas vezes ultrajada e, interiormente, se acreditava capaz de qualquer tentame nos arraiais da delinquência. Por isso se identificara facilmente com Assunta que, a seu lado, repetia experiência insana, tentando regularizar débitos pretéritos, que complicava ainda mais pela invigilância actual, enrodilhando-se em cipós de cruel aflição, para futuro próximo.

É claro que desde a elaboração do plano do homicídio múltiplo ele cuidara, também de tomar uma medida para ser executada oportunamente, de modo a libertar-se da única testemunha da sua crueza criminosa. Agora, no entanto, era necessário silenciar-lhe a voz temporariamente, mediante o afastamento dos sítios de Siena, para evitar complicações. Aproveitava-se, logicamente da justificativa de despedir os fâmulos e serviçais para, assim, prosseguir aguardando os resultados da leitura do testamento.

Após a demorada reflexão, durante a qual fixava a jovem dominada pelo seu encanto maléfico, propôs:

– Demandarás à Capital e lá te quedarás por algum tempo. Sei que tens família entre os florentinos e tomarás precauções extremas, evitando aventuras ou excessos e cultivando o recato, pois em breve serás a esposa de um Cherubini… Irei visitar-te sempre que o possa fazer, sem que a minha ausência venha a levantar suspeição aqui. Encontrar-nos-emos e, felizes, traçaremos planos para o nosso futuro. Serás minha desde hoje e ninguém mais te possuirá. Evita os teus amos, caso necessites de servir alguém, e esquece tudo quanto aconteceu no Palácio di Bicci. Irei preparar a mentalidade dos meus amigos e de algumas famílias locais, logo entre na posse dos bens, para que todos te recebem fidalgamente. O tronco da família donde procedes dar-te-á entrada fácil na nossa sociedade agrícola, tão corrupta quanto a citadina, bem o sei…

E tomando a jovem, com a violência da paixão desregrada, nublou-lhe a mente, dominando-lhe o corpo e a alma…

Assunta despediu-se dos últimos servos, arrumou os pertences e partiu numa sege especial a expensas de Girólamo. Afastou-se do amante com lágrimas, e este, quando viu a carruagem desaparecer entre os cedros que bordavam a estrada, respirou fundo e sorriu em misterioso júbilo, como se tudo estivesse a transcorrer conforme planeado.
/...
(*) Florença.


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 3. O TESTAMENTO (1 de 3), 8º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

domingo, 2 de abril de 2017

do país da luz ~

Dedicatórias:

A minha Mãe

Deixa que eu te dedique o meu trabalho nesta obra.

Quando abandonaste este mundo, eu queria ainda que de ti não ficaria mais do que a saudade no coração dos que te adoravam.

A fé religiosa, que me ensinaste em pequenino, não pode resistir às correntes dominantes no meio em que me encontrei, ao sair de sob a tua vista.

Um dia, porém, permita Deus que se fizesse luz no meu espírito. Fui então forçado a crer na existência da Alma, que negava. O meu primeiro, o meu maior desejo, foi fazer por merecer ver-te e falar-te, uma vez só que fosse, em qualquer época da minha existência, aqui ou lá, onde as tuas virtudes de santa te deram lugar.

Tu sabes, mãe, como Deus tem sido generoso para comigo, na satisfação desse meu desejo.

Agora, que faço a abjuração pública do meu erro, deixa que me acolha à tua protecção. Deixa que a abrir a primeira série destas estranhas comunicações, eu ponha o teu nome, como escudo. Sê tua a minha fiança de que não falto à verdade, que todo o homem honrado deve a si e aos outros.

Todos tiveram mãe, e creio que nenhum espírito bem formado, admitirá que possa enganar quem evoca, como garantia, a memória santa de sua mãe.

Ajuda-me, para que eu continue a merecer a Deus o favor de ter nascido teu filho.

Fernando de Lacerda

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Aos meus pequeninos

Fernando e Laura

Quero ligar os vossos nomes a esta obra. Quero prender-vos assim a ela, como vos tenho presos ao meu coração.

Praza a Deus que ela vos sirva de guia através da vida, a ela, onde encontrareis sempre o melhor conselho e o mais amigo amparo.

Que Deus vos proteja sempre.

Todo vosso

Fernando de Lacerda

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Palavras necessárias

O que vou dizer é a expressão absoluta da verdade.

Nem o meu carácter, nem a minha posição permitem que, em circunstância alguma falte a ela; e muito menos o permitiriam em assunto de tão grande importância, como o deste livro, em que se apresentam nomes respeitados e admirados, alguns dos quais validam afirmações inteiramente contrárias àquelas que fizeram, durante toda a sua vida terrena, aqueles que os usaram.

Se de alguma coisa me é dado ter vaidade, confesso que a sinto em pensar que pessoa alguma das que me conhecem de perto admitirá que seja capaz de tentar, por simples brincadeira sequer, mistificar alguém, mormente indo contender com aqueles que a piedade cristã ensina a respeitar no seu pretendido descanso eterno.

Este livro é composto de produtos de vários géneros, carácter e estilo que foram escritos originalmente em letra variada, alguma até absolutamente dessemelhante da minha, e com todas as características gráficas da letra que as individualidades a que se atribuem tinham quando neste mundo; e são firmados ora por nomes celebrados, ora por criaturas perfeitamente anónimas.

Os nomes celebrados serão autênticos?

Creio que sim.

Circunstâncias especialíssimas de crítica desapaixonada, feita durante anos, por mim próprio, sobre o modo como os produzi, autorizam-me a presumi-los verdadeiros.

Quando porém, não sejam das individualidades que os assinam, o que com toda a certeza não são é produto do meu saber nem da minha inteligência, apesar de serem por mim materialmente produzidos.

Essas produções foram escritas sem o menor esforço intelectual, ou sem a menor fadiga material; sem preparação, sem estudo, sem emendas, obtidas quase todas de noite, estando eu perdido de sono e de fadiga, empregando-se nelas, amiúde termos portugueses e estrangeiros do meu inteiro desconhecimento.

As comunicações vinham quase sempre espontâneas.

A primeira produção de qualquer individualidade, conservava-se para mim na inteira ignorância do autor até à assinatura; e algumas há que se conservam ainda, porque não chegaram a ser assinadas.

Não evocava ninguém, e desconhecia, como desconheço, a obra literária, quase na sua totalidade, de todos os autores que neste livro figuram.

Uma asserção, que corre, de que eu tenho muita leitura é pura fantasia.

Li, enquanto novo, pouco mais que romances de reles literatura rocambolesca francesa; e há muitos anos que a minha vida particular e oficial me não deixa folgas para leituras e estudos literários.

Acresce ainda a circunstância de que a maioria das assinaturas, que autenticam as produções, são reconhecidas como das próprias pessoas a que se atribuem; e todas, ou quase todas, eram do meu inteiro desconhecimento.

Devo dizer que a par das comunicações publicadas, outras vieram de carácter particular, e ainda outras destituídas de qualquer interesse; e que de há muitos anos escrevia coisas que desconhecia, alheias à minha vontade e até ao meu modo de ver e ser, conquanto só há um ano se manifestasse a faculdade de produzir em estilos com diversos modos de dizer, letras desiguais e com assinaturas perfeitamente semelhantes às que tiveram aqueles de quem se diz serem as actuais.

A algumas das comunicações acompanharei com notas, para melhor conhecimento do assunto e do motivo ou do modo porque se produziram.

Creio, firmemente, que são esses escritos manifestações das almas dos ilustres escritores idos.

Não encontro outra hipótese mais aceitável, conquanto muito me pudesse lisonjear a de ser eu o seu autor.

O facto é que estes escritos são originais; e a negar-se a origem que eu lhe atribuo terão que atribuir-se a mim, contra o que, apesar de tudo, protesta a minha incompetência, e protestam todas as pessoas que me conhecem.

Se eu escrevesse assim, que necessidade teria de tão grosseira mistificação, como a de atribuir a essas produções paternidades mortas?

Com a declaração franca e sincera de que me não reconheço autor de tão estranhas peças literárias, devo também dizer, para afastar a hipótese de que por qualquer interesse pecuniário eu pudesse fazer tão condenável mistificação, que o produto líquido desta edição será para obras de beneficência.

Há ainda um ponto que preciso tratar.

Em alguns dos escritos fazem-se afirmações de factos e de teorias, de que não tomo a menor responsabilidade.

Os que foram publicados é porque isso foi instantemente recomendado pelas entidades que os escreveram.

Sentirei que possam magoar alguém. Protesto, porém, pela maneira mais solene, que me não reconheço com a mais leve responsabilidade intelectual e consciente do caso; e se os publico é porque, crendo-me alheio a eles, não posso, honestamente, opor-me à execução da vontade de quem suponho seus autores.

Eles são simplesmente de carácter crítico e genérico; mas nisto, como em tudo, quero acentuar a minha absoluta irresponsabilidade, para não aceitar nenhum quinhão de glória que deles me pudessem caber.

As cartas, vão publicadas pela ordem cronológica da sua obtenção; excepção feita a uma, que tendo sido primitivamente escrita na intenção de não ser publicada, e tão somente como familiar e amistosa reprimenda por uma manifestação de agastamento de me ter visto mal apreciado, entendo dever ser a primeira a publicar-se, para que, depois de lida, toda a gente compreenda que todas as apreciações que a meu respeito e a respeito da obra possam fazer, se encontram previstas e descontadas na minha vontade e na minha firmeza.

Não me desvanecerão louvores como não me entibiarão nem me farão recuar no caminho que enceto, apreciações ou resoluções de nenhuma espécie.

Pela rapidez com que este livro foi impresso e revisto, apresenta várias faltas e incorrecções de revisão, que facilmente serão supridas e corrigidas pela inteligente benevolência do leitor.

As cartas que levam as mesmas datas foram escritas na mesma ocasião, sem o menor intervalo de tempo entre elas.

Permita Deus que essas cartas cumpram o seu dever, que eu acabo de cumprir o meu.

Fernando de Lacerda (Janeiro de 1908)

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O país da luz

País da Luz é todo o espaço além
Desse, que a vista vossa abrange e vê.
É a ideal mansão, em que se crê;
Anseio santo que à nossa alma vem.

É a azulada praia, onde ninguém
Aporta, ao viajar, quando descrê.
Sonhada região, que se antevê,
Onde reside a Paz, o Amor, o Bem.

É perene caudal de claridade,
Onde o doce Jesus, todo bondade,
Sorrindo, nos acolhe, os irmãos seus.

É o esperado céu do humano ser,
Para onde vem, depois de aí morrer,
Todo aquele que bem servir a Deus.


João de Deus (Janeiro 1908)

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E. De Queiroz

Meu caro Fernando.

Com pouco te preocupas.

Bastou que alguém te pusesse em dúvida a existência real da minha individualidade para que te sentisses fraquejar.

Que te deve importar a opinião dos outros, quando ela é destituída de base séria que lhe mantenha o peso?

Que te importa o que os outros pensam?
   
Cada um pensa como quer, como sabe, como lhe deixam ou lhe convém.
   
Nunca tive a pretensão de estabelecer regras ao pensamento humano, que é a coisa mais livre do universo.


Esse quid misterioso que os lunáticos já quiseram classificar de segregação cerebral, é a maior força, a energia mais veloz, a luz mais intensa que Deus pôs no Universo.

Elabora-se instantaneamente no cérebro, instantaneamente pode percorrer o espaço infinito, sem barreiras, sem traves sem liames; estabelecendo ligações, afinidades, correspondências, solidariedades; apreciando, criticando, amando, detestando; escapando-se aos esbirros, aos inquisidores de todas as épocas, de todas as religiões, de todas as ciências, de todas as seitas, de todas as maldades, de todas as ignorâncias, de todas as críticas, como a luz do sol escapa ao seu enclausuramento em um receptáculo opaco, hermeticamente fechado.

Se nem Deus lhe põe obstáculos, como lhos havíamos de criar nós?

Pensam que não sou Eça?

Eça ou não, sou quem como tal tem escrito o que como de Eça possuis.

Se não sou Eça, quem sou?

Perdes facilmente a serenidade, amigo!

Pois queres discussão e não queres ser discutido?

Pois queres vir lançar um repto à velha sociedade, à velha ciência, ao ateísmo, à ignorância, à pretensão, e não queres que te discutam?

Pois queres entrar no cofre no mundo com cartas, tuas ou de outrem, de uma singular contextura, revelando bem estranhas e singulares formas de pensar e de dizer, e não queres que esses que vais despertar da sua sonolência e atacar no seu conservantismo ou na sua filáucia te respondam com dúvidas, repelões, com vaias ou com insultos?

Conheces algum inovador, pacífico instrumento da revolução científica, ou revolucionário pioneiro do progresso humano, que não tenha passado ante os seus coevos, por louco, visionário, mistificador ou charlatão?

Que encontras em ti que te fizesse esperar sair da regra geral?

És um ingénuo!

Se assim fosse, ou se assim for, a tua, a nossa obra, redundará em pura perda, em extraordinário fracasso.

O sucesso será agitar a opinião em volta do assunto; será levar o espanto ante aqueles que de boa ou má fé, negaram a hipótese, para os compelir à busca de uma explicação para o facto insólito.

Todo o trabalhado que tente transformar os velhos preconceitos, modificar as velhas fórmulas, reformar obsoletas doutrinas, radicar progressivas ideias, destruir anacrónicas hierarquias, renovar e impulsionar as estáticas ciências consagradas, tem sido repelido e monteado.

Se não fosse a perseguição o que seria da religião cristãSe não fosse a intolerância o que seria da ciência modernaSe não fosse o insulto, a zombaria o que seria actualmente o espiritismo?

Conheces alguma ideia notável, algum grande facto progressivo da humanidade, que não tenha tido esse baptismo?

Sabes de algum homem que tenha excedido a craveira normal da vulgaridade humana, que não tenha sido apodado de visionário, de louco, de sonhador?

E quem tem feito evolucionar o mundo, arrancando-o ao conservantismo pé de boi, sisudo, ajuizado, metódico e egoísta, senão essas belas criaturas incompreendidas apodadas, escarnecidas; providenciais guardas avançadas do progresso, vanguarda luminosa do sentimento, do engenho, da arte e da perfeição?

Ora tu, que não tens pretensões, que te não supões medroso a coisa alguma, que és o primeiro, numa grande manifestação de inusitada honestidade, a enjeitares a paternidade do que escreves, bom ou mau, acertado ou incongruente, os letrados ou os iletrados, os consagrados ou os anónimos, do liliputiano meio em que te encontras, te critiquem e te alcunhem?

Não sejas criança, que tens brancas na cara!

Ninguém te pode acusar de plagiário, nem de defraudar, porque o que escreves é original.

Dizem que é teu?

Pouco apreço manifestarás por nós e pelos escritos, se te ofenderes por isso.

Ou o que apresentas é digno de nós ou não.

Se é, deves envaidecer-te de te emparceirarem com alguns dos melhores nomes de algumas gerações literárias; se não é, é justo que te zurzam por vires à feira com mercadoria de baixa qualidade querendo etiquete-la com rótulos das marcas mais acreditadas (excepção à minha, como é de estilo dizer-te).

Estás convencido de que é nosso ou quem se nos equivalha?

Deixa que os outros pensem como quiserem.

Terás que fazer de D. Quixote se te propões a desfazer os agravos e as sem-razões que a teu e a nosso respeito terás que sofrer.

Qual foi de nós que aí, na terra, passou incólume das mordedelas dos zoilos e zangãos?

Nenhum, creio eu.

Se tens a epiderme assim sensível não vás mais além.

Desiste.

Dos fracos e dos tímidos não reza a história.

Chama-te alguém doido?

Quem te impede de lho chamares também?

Ri-se alguém de ti?

Por que te não ris deles?

O direito é igual; a autoridade é que é diversa; e creio que em tua consciência não haverá dúvidas sobre quem possua essa autoridade, nascida do estudo, nascida dos factos, nascida da própria ciência, quer no campo especulativo, quer no campo experimental.

Nem todos trabalham para o dia em que trabalham.

Se és da massa anónima e ensossa dos acomodatícios ou dos medrosos, desiste. Desiste, ou não dês ouvidos.

Se te não sentes com envergadura para a luta, pára, que ainda estás a tempo.

Agora se te sentes bastante provido de paciência, de fé, de constância, de coragem e de vontade, avança, sem olhares para a rectaguarda nem para os lados, sem atenderes, sem ouvires, sem curares; porque se ao chegares ao fim tiveres cépticos, maldizentes e trocistas no teu rasto, também terás dedicações e ternuras, como não haverá maiores, mais sinceras, mais desinteressadas nem mais belas aí e aqui.

E demais, meu amigo, rira bien

Medita no que deixo dito.

Recorda-te de que a paciência é a mais poderosa força para conseguir, e a tolerância a maior autoridade para conservar.

Como ainda és sensível à vaidade!

Como, apesar do grau do espírito que te anima a carcassa miseranda, ainda pertences à terra, à terra da banalidade, da conservação, da vaidade, do melindre, do formalismo!

A terra há-de ser sempre a terra!

Junte-se à terra mais limpa o líquido mais precioso e só fará lama que suja e apodrece!
                                                                                                                                                  
E. De Queiroz


/...



Fernando de LacerdaDo País da Luz, Comunicações mediúnicas obtidas por este médium (i), Dedicatórias, Palavras necessárias, 1º volume, 1º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: A lagoa dos lírios em Giverny | 1907, pintura de Claude Monet)