O TESTAMENTO (I)
Terminados os ofícios fúnebres dedicados aos
infortunados descendentes do duque di Bicci di M., os despojos
mortais das crianças foram inumados no mausoléu da família, na delicada capela
fronteiriça à casa senhorial, na qual dias antes fora depositado o corpo de Dom
Giovanni. Lúcia, acusada vilmente por Girólamo, que se fazia acompanhar do
falso testemunho de Assunta, teve negada pela Igreja “terra sagrada” ao seu
corpo, que não mereceu exéquias de qualquer natureza, sendo sepultada na
floresta, como animal batido em refrega selvagem.
As autoridades policiais fizeram ligeira
investigação e, como faltasse um móbil para outras suspeitas, o “caso” foi
encerrado dentro das disposições legais e as sombras fantasmagóricas da
tragédia caíram pesadamente sobre o palácio, onde antes abundavam a alegria e a
fartura, a arte e a beleza, quando nos dias da Senhora duquesa Ângela.
Girólamo, por autorização da Justiça de Siena,
despediu os servos, permitindo somente a alguns que se fixassem no local, nos
mesmos terrenos da propriedade do seu tio e pai adoptivo,
enquanto se tomavam as providências para abertura do testamento, em data a ser
fixada, logo diminuísse o impacto do infortúnio que enlutara toda a região.
Fâmulos e servos foram dispensados, ficando, apenas, alguns zeladores para guarda
e conservação da casa, amanho do solo e protecção aos animais…
Fingindo um abatimento profundo e recusando
alimentos, em ardilosa atitude, estudada para escapar a quaisquer suspeitas, o
moço malsinado concertou com Assunta os planos para o futuro.
– Acredito conveniente – arengou, logo pôde
encontrar-se com a sórdida companheira de crimes – que nos separemos por algum
tempo e que te dirijas à Capital (*), de modo a evitar desconfianças quanto aos
acontecimentos últimos do Palácio di Bicci.
Procurando demonstrar um amor e afecto que
estava longe de sentir, envolveu a jovem irresponsável com braços de lânguida
sensualidade e, persuadindo-a, serpente que hipnotiza a pomba invigilante para
a devorar depois, continuou:
– Não ignoras o imenso amor que me devora a
alma por ti. Sabes da chama que me queima e requeima, somente diminuindo de
intensidade quando em comunhão contigo. Anelo a bênção do matrimónio, a fim de
regularizar a nossa incómoda situação, quando, passado algum tempo e o esquecimento tudo tiver envolvido, retornares à nossa casa, na condição de senhora.
– Temo, Girólamo! Pressinto que nunca poderei
ser feliz a teu lado, por mais que o cobice. Devorada pela paixão, não titubeei
em ser-te fiel até ao crime. Por ti faria muito mais. Esta loucura, que me cega
e que me conduz à destruição em passos de corcel veloz, me domina cada dia, e
temo. Não me enganas: somos da mesma têmpera e feitos do mesmo material. Eu te
amo, embora não creia no teu afecto. Pressinto que te queres apartar de mim e que,
no resultado final da escolha, ficarei à margem. Seleccionarás uma dessas
mulheres que são adorno social, para compartir as homenagens e glórias contigo,
embora me busques às escapadas, para o leito da animalidade. Não te atrevas,
porém, a trair-me. Sabes que nós, os etruscos, especialmente os nascidos em
Chiusi, somos violentos e apaixonados; recorda que os nossos ascendentes, que
antes dominaram estas terras, defenderam-na até à total extinção da raça. Já te
disse muitas vezes que não sou daquelas que cedem ou que se conformam com a
derrota. Arrastaste-me ao crime e tens agora o teu destino ao meu ligado…
Repentinamente, desapareceram do rosto da jovem
os sinais da ternura e da afectividade, transformando-se a face, visivelmente
conturbada. Os olhos se dilataram e, afastando-se do amante com gesto brusco,
gargalhou, transtornada, falando com os dentes rilhados:
– Qualquer traição da tua parte será cobrada
com o ácido da vindita. Denunciar-te-ei às autoridades, narrando toda a
infâmia, desde os seus primeiros planos; direi a forma como me seduziste,
arrastando-me contigo à perene desdita, mesmo que, com a denúncia da tua
pessoa, eu pague o suplício a teu lado. Nunca te cederei a outra, não esqueças!
Muito pálido, o moço, acobardado ante a
acusação que temia e esperava, avançou e esbofeteou a jovem, enquanto lhe
gritava:
– Não me repitas mais esta acusação; nunca
mais! Desgraçados já o somos desde a hora do nosso conúbio para o homicídio e a
desonra. A memória da minha tia me persegue e um surdo ódio ainda me extravasa
do coração quando recordo o duque, e sinto algo, como se a sua
sombra hedionda me seguisse os passos. As artimanhas do remorso já tomam forma
na minha memória e procuro apagá-las… Tu, também, te levantas para me incriminar,
sabendo que tudo foi feito para nossa felicidade, porque te amo e desejo a paz
para nós? Antes, a nossa união seria impossível… Agora, quando tudo se
regularize e eu passe a ostentar o poder, quem me censurará a escolha? Não
sabes que o dinheiro e a posição tudo conseguem no mundo? Cala e ouve!
A encenação desmedida produzida por Girólamo
impressionou favoravelmente a companheira inexperiente.
Ele a fitou, e enquanto os seus olhos brilhavam –
ninguém poderia saber se de volúpia, aumentada pela ardência do atrito, se de
paixão de homem desregrado, ou de medo da ameaça –, imprimiu a fogo as palavras
proferidas pela moça, no adito da memória, para estar sempre vigilante,
constatando que ela o faria, assim se sentisse ludibriada na posse devastadora
da carne.
Girólamo, conquanto jovem, desde cedo acostumara-se às
astúcias do crime, Espírito endividado em muitas existências, trazia consigo as
sementes da violência e da alucinação cobarde, conhecendo os meandros sórdidos
da consciência muitas vezes ultrajada e, interiormente, se acreditava capaz de
qualquer tentame nos arraiais da delinquência. Por isso se identificara
facilmente com Assunta que, a seu lado, repetia experiência insana, tentando
regularizar débitos pretéritos, que complicava ainda mais pela invigilância
actual, enrodilhando-se em cipós de cruel aflição, para futuro próximo.
É claro que desde a elaboração do plano do
homicídio múltiplo ele cuidara, também de tomar uma medida para ser executada
oportunamente, de modo a libertar-se da única testemunha da sua crueza
criminosa. Agora, no entanto, era necessário silenciar-lhe a voz
temporariamente, mediante o afastamento dos sítios de Siena, para evitar
complicações. Aproveitava-se, logicamente da justificativa de despedir os
fâmulos e serviçais para, assim, prosseguir aguardando os resultados da leitura
do testamento.
Após a demorada reflexão, durante a qual fixava
a jovem dominada pelo seu encanto maléfico, propôs:
– Demandarás à Capital e lá te quedarás por
algum tempo. Sei que tens família entre os florentinos e tomarás precauções
extremas, evitando aventuras ou excessos e cultivando o recato, pois em breve
serás a esposa de um Cherubini… Irei visitar-te sempre que o possa fazer,
sem que a minha ausência venha a levantar suspeição aqui. Encontrar-nos-emos e,
felizes, traçaremos planos para o nosso futuro. Serás minha desde hoje e
ninguém mais te possuirá. Evita os teus amos, caso necessites de servir alguém,
e esquece tudo quanto aconteceu no Palácio di Bicci. Irei preparar a
mentalidade dos meus amigos e de algumas famílias locais, logo entre na posse
dos bens, para que todos te recebem fidalgamente. O tronco da família donde
procedes dar-te-á entrada fácil na nossa sociedade agrícola, tão corrupta
quanto a citadina, bem o sei…
E tomando a jovem, com a violência da paixão
desregrada, nublou-lhe a mente, dominando-lhe o corpo e a alma…
Assunta despediu-se dos últimos servos, arrumou os
pertences e partiu numa sege especial
a expensas de Girólamo. Afastou-se do amante com lágrimas, e este, quando viu a
carruagem desaparecer entre os cedros que bordavam a estrada, respirou fundo e
sorriu em misterioso júbilo, como se tudo estivesse a transcorrer conforme
planeado.
/...
(*) Florença.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898,
tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)
Sem comentários:
Enviar um comentário