domingo, 30 de março de 2014

Se mais não houvesse em nós que matéria ~

A VIDA É IMORTAL |

O estudo do Universo conduz-nos ao estudo da alma, à investigação do princípio que nos anima e dirige os actos.

Já o dissemos: a inteligência não pode provir da matéria. A Fisiologia ensina-nos que as diferentes partes do corpo humano renovam-se num lapso de tempo que não vai além de alguns meses. Sob a acção de duas grandes correntes vitais, produz-se em nós uma troca perpétua de moléculas. Aquelas que desaparecem do organismo são substituídas, uma a uma, por outras, provenientes da alimentação. Desde as substâncias moles do cérebro até às partes mais duras da estrutura óssea, tudo no nosso ser físico está submetido a continuas mutações. O corpo dissolve-se e, numerosas vezes durante a vida, reforma-se. Entretanto, apesar dessas transformações constantes, através das modificações do corpo material, ficamos sempre a mesma pessoa. A matéria do cérebro pode renovar-se, mas o pensamento é sempre idêntico a si mesmo e com ele subsiste a memória, a recordação de um passado de que não participou o corpo actual. Há, pois, em nós um princípio distinto da matéria, uma força indivisível que persiste e se mantém entre essas perpétuas substituições.

Sabemos que, por si mesma, não pode a matéria organizar-se e produzir a vida. Desprovida de unidade, ela desagrega-se e divide-se ao infinito. Em nós, ao contrário, todas as faculdades, todas as potências intelectuais e morais se agrupam numa unidade central que as abraça, liga e esclarece, e esta unidade é a consciência, a personalidade, o Eu, ou, por outra, a Alma.

A alma é o princípio da vida, a causa da sensação; é a força invisível, indissolúvel que rege o nosso organismo e mantém o acordo entre todas as partes do nosso ser. (i) Nada de comum têm as faculdades da alma com a matéria. A inteligência, a razão, o discernimento, a vontade, não poderiam ser confundidos com o sangue das nossas veias ou com a carne do nosso corpo. O mesmo sucede com a consciência, esse privilégio que temos para medir os nossos actos, para discernir o bem do mal. Essa linguagem íntima, que se dirige a todo o homem, ao mais humilde ou ao mais elevado, essa voz cujos murmúrios podem perturbar o estrondo das maiores glórias nada tem de material.

(i) Isto por meio de um fluido vital que lhe serve de veículo para a transmissão das suas ordens aos órgãos. Voltaremos mais adiante a esse terceiro elemento chamado “perispírito”, que sobrevive à morte e que acompanha a alma nas suas peregrinações.

Correntes contrárias agitam-se em nós. Os apetites, os desejos ardentes chocam-se de encontro à razão e ao sentimento do dever. Ora, se mais não fôssemos do que matéria, não conheceríamos essas lutas, esses combates; e entregar-nos-íamos, sem mágoa, sem remorso, às nossas tendências naturais. Mas, ao contrário, a nossa vontade está em conflito frequente com os nossos instintos. Por meio dela podemos escapar às influências da matéria, domá-la, transformá-la em instrumento dócil. Não se têm visto homens nascidos nas mais precárias condições vencerem todos os obstáculos, a pobreza, as enfermidades, os defeitos e chegarem à primeira classe pelos seus esforços enérgicos e perseverantes? Não se vê a superioridade da alma sobre o corpo afirmar-se, de maneira ainda mais positiva, no espectáculo dos grandes sacrifícios e das dedicações históricas? Ninguém ignora como os mártires do dever, da verdade revelada prematuramente, como todos aqueles que, pelo bem da Humanidade, têm sido perseguidos, supliciados, levados ao patíbulopuderam, no meio das torturas, às portas da morte, dominar a matéria e, em nome de uma grande causa, impor silêncio aos gritos da carne dilacerada!

Se mais não houvesse em nós que matéria, não veríamos, quando o corpo está mergulhado no sono, o Espírito continuar a viver e a agir sem auxílio algum dos nossos cinco sentidos, e assim mostrar que uma actividade incessante é a condição própria da sua natureza. A lucidez magnética, a visão à distância sem o socorro dos olhos, a previsão de factos, a penetração do pensamento são outras tantas provas evidentes da existência da alma.

Assim, pois, fraco ou poderoso, ignorante ou esclarecido, somos um Espírito; regemos este corpo que mais não é, sob nossa direcção, do que um servidor, um simples instrumento. Esse Espírito que somos é livre e perfectível, por conseguinte, responsável. Pode, à vontade, melhorar-se, transformar-se e inclinar-se para o bem.

Confuso em uns, luminoso em outros, um ideal esclarece o caminho. Quanto mais elevado é esse ideal, tanto mais úteis e gloriosas são as obras que inspira. Feliz a alma que, na sua marcha, é sustentada por um nobre entusiasmo: amor da verdade e da Justiça, amor da pátria e da Humanidade! A sua ascensão será rápida, a sua passagem por este mundo deixará traços profundos, sulcos de onde colherá uma messe bendita.

Estabelecida a existência da alma, o problema da imortalidade impõe-se desde logo. É essa uma questão da maior importância, porque a imortalidade é a única sanção que se oferece à lei moral, a única concepção que satisfaz as nossas ideias de Justiça e responde às mais altas esperanças da Humanidade.

Se como entidade espiritual nos mantemos e persistimos através da perpétua renovação das moléculas e transformação do nosso corpo material, a desassociação e o desaparecimento final também não poderiam atingir-nos na nossa existência.

Vimos que coisa alguma se aniquila no Universo. Quando a Química nos ensina que nenhum átomo se perde, quando a Física nos demonstra que nenhuma força se dissipa, como acreditar que esta unidade prodigiosa em que se resumem todas as potências intelectuais, que este eu consciente, em que a vida se desprende das cadeias da fatalidade, possa dissolver-se e aniquilar-se? Não só a lógica e a moral, mas também os próprios factos – como estabeleceremos adiante –, factos de ordem sensível, simultaneamente fisiológicos e psíquicos, tudo concorre, mostrando a persistência do ser consciente depois da morte, para nos provar que além do túmulo a alma se encontra qual ela própria se fez pelos seus actos e trabalhos, no curso da existência terrestre.

Se a morte fosse a última palavra de todas as coisas, se os nossos destinos se limitassem a esta vida fugitiva, teríamos aspirações para um estado melhor, de que nada, na Terra, nada do que é matéria pode dar-nos a ideia? Teríamos essa sede de conhecer, de saber, que coisa alguma pode saciar? Se tudo cessasse no túmulo, por quê essas necessidades, esses sonhos, essas tendências inexplicáveis? Esse grito poderoso do ser humano, que retumba através dos séculos, essas esperanças infinitas, esses impulsos irresistíveis para o progresso e para a luz mais não seriam, pois, que atributos de uma sombra passageira, de uma agregação de moléculas apenas formadas e logo esvaídas? Que será então a vida terrestre, tão curta que, mesmo na sua maior duração, não nos permite atingir os limites da Ciência; tão cheia de impotência, de amargor, de desilusão, que nela nada nos satisfaz inteiramente; onde, depois de acreditar termos conseguido o objecto dos nossos desejos insaciáveis, nos deixamos arrastar para um alvo, sempre cada vez mais longínquo, mais inacessível? A persistência que temos em perseguir, apesar das decepções, um ideal que não é deste mundo, uma felicidade que nos foge sempre, é uma indicação firme de que há mais alguma coisa além da vida presente. A Natureza não poderia dar ao ser aspirações e esperanças irrealizáveis. As necessidades infinitas da alma reclamam forçosamente uma vida sem limites.

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LÉON DENIS, Depois da Morte, Parte Segunda – Os Grandes Problemas – A Vida Imortal.
(imagem de ilustração: A fiandeira, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

quinta-feira, 27 de março de 2014

~~~Párias em Redenção~~~

ALUCINAÇÃO E CRIME ~

O ofício fúnebre, terminado o longo velório, tem início na manhã cinzenta, quebrada por violentas descargas da tempestade que estruge, intérmina. Plangem sinos de finados e, por momentos, as atenções se concentram na figura do Bispo, paramentado, que dá início ao réquiem. Diante do altar improvisado, a figura do Crucificado, em prata e ouro, imóvel, pregada em madeira preciosa da região, brilha ante o fulgor dos círios acesos em abundância. O coro, vindo especialmente da Catedral de Siena, entoa um cantochão. Incenso, mirra e nardo embalsamam o ambiente, de modo tocante.

No meio as exéquias, o Bispo pronuncia o sermão laudatório da personalidade do extinto, lamentando não lhe ter podido aplicar a extrema-unção, no termo da jornada carnal. Exora, todavia, socorro ao Senhor da Vida e da Morte, enquanto lhe encomenda o corpo, seguindo os tradicionais rituais da Igreja Romana. O sacrifício da missa de corpo presente prossegue. As vozes se alteiam ou murmuram, cantando. Soluços discretos irrompem dos sentimentos do povo humilde das redondezas, que ali se aglutina para render as últimas homenagens ao seu benfeitor. Nuvens de fumo se levantam, perfumadas, agitadas por turíbulos prateados e com brasas vivas.

A pequena distância, oculta discretamente e enlutada, Lúcia, de joelhos, soluça, dominada por fortes emoções. Repassam pelo seu pensamento todos os lances da sua vida no palácio que a acolheu. Os seus pais entregaram-na pequena à família da Senhora duquesa, a fim de que fosse preparada para dama de companhia. Ali recebera todo o carinho, cultivara os dotes do sentimento e as suas mãos se exercitaram na arte dos bordados e tecelagens, em que se fizera mestra. Os gobelins por ela tecidos ao lado da Senhora Ângela enriqueciam diversas peças do imponente lar.

À lembrança da benfeitora, porém, teve a impressão de que se lhe dilatavam as pupilas e estranhos sentimentos lhe assomaram ao espírito inquieto. Latejaram-lhe as artérias nas têmporas, suor glacial inundou-a e frequente tremor se lhe apossou das carnes. Teve a sensação de que ia morrer. Um vágado inesperado fê-la cair sobre as lajes de pedra. Servidores apressados conduziram-na, inconsciente, ao quarto de dormir, colocando-a sobre o leito fofo e macio. Odores fortes foram aplicados às narinas; resinas perfumadas foram friccionadas nos pulsos e na testa… Ofegante, de peito descompassado, continuou vencida pelos choques nervosos que a sacudiam. Chamado o médico, este aplicou, a muito custo, a ingestão de medicamento calmante, solicitando a todos que a deixassem assistida apenas por uma das suas amigas-camareiras, de modo a que pudesse repousar…

Entrementes, ao experimentar a cabeça atordoada, e quando perdia o equilíbrio das próprias forças, sentiu-se flutuar no ar, fora do corpo, divagando, numa visão entre névoas claras, a veneranda figura da duquesa, que lhe alongava as mãos generosas, albergando-a no seio maternal. A forma diáfana recordava as telas clássicas da pintura renascentista, em que matronas de luz faziam evocar a Senhora de Nazaré, Mãe do Sublime Crucificado. As lágrimas brotaram-lhe abundantes e, vencida pela felicidade do reencontro inesperado, naquela esfera desconhecida, teve a impressão de que se libertara do pesado fardo da carne, demandando às gloriosas regiões celestes. Desejou falar, dizer todas as inquietudes e os anseios que lhe rebentavam no coração sensível, a saudade imensa e destruidora, os últimos acontecimentos e os presságios que a martirizavam… Não pôde fazê-lo. A expressão de quase angelitude da senhora terminou por apaziguar-lhe as tempestades interiores. O sorriso triste que lhe ornava a face e a inefável luz que se derramava de toda ela, envolta em auréola resplendente, tocaram o espírito da servidora fiel.

– Confia, minha filha, – murmurou a visão espiritual, quase sorridente – e não desfaleças! Levanta o espírito abatido e ergue-te acima das vicissitudes do caminho. Lutar é sofrer, e ninguém conseguirá felicidade sem o largo património das lágrimas e renúncias…

“Todos nascemos e morremos para renascer, rectificando numa existência as imperfeições noutra contraídas. O curso incessante das vidas forma o rio da santificação que desagua no oceano da Eternidade.

“Pesados cúmulos se associam hoje sobre o tecto do nosso lar, exigindo-nos inomináveis agonias e demorados sofrimentos. É, todavia, necessário que nos submetamos aos desígnios divinos. Nenhum de nós está esquecido das Leis Excelsas. Embora nos encontremos aparentemente abandonados, fracos de forças, desempenhando árduas tarefas que nos exigem imensa colheita de dor, Espíritos angelicais e benfeitores, em nome do Soberano Pai, nos acompanham e ajudam. Não te desesperes nem te desgovernes emocionalmente.

“Velhas dívidas do passado remoto, que recuam ao século XIII, nos atam indelevelmente uns aos outros, exigindo regaste. Não nos reencontramos por caprichos do Destino. O Destino, conforme todos apregoam, não existe. Ele seria a negação de Deus, das leis de mérito e débito. O que consideramos Destino é o resultado de muitas actividades que culminam num momento, para nós inesperado, mas que, para os arquitectos da Vida, está adrede programado. Amores, adversários, felicidade e desdita são peças da rede da vida imperecível, atando e desatando as suas teias incessantemente, até ao instante da libertação definitiva de todo o sofrer. E o repetir de amargas experiências são oportunidades de que desfrutamos para nos alçarmos às regiões da ventura, que não se podem definir nem descrever por enquanto, por limitação da linguagem humana e por impossibilidades de entendimento da humana capacidade.

“Ainda não tive a ventura de acolher nos meus braços saudosos o companheiro, por enquanto em processo de libertação. Amarrado a injustificável angústia, que a nossa separação física momentaneamente causou, ele vinculou-se fortemente ao corpo transitório, esquecendo-se das paisagens fulgurantes da Imortalidade, de que nos falam as valiosas lições do Evangelho e que a Religião, embora velando-as com imagens pesadas e pouco reais, nos apresenta, indicando rumos.

“A morte, por isso mesmo, não é o fim. E a vida, que dela se desenlaça, não migra para os ajustes imediatos sob a assistência severa do Senhor, que nos recebe para punir ou premiar. Cada um morre como viveu e viverá conforme foi recebido pela morte. Imprescindível, pois, viver de modo a poder enfrentar a vida que a todos nos aguarda, quando a cortina de sombras se levanta, deixando aparecer a madrugada da Imortalidade.”

Uma pausa refrescante silenciou a mensageira espiritual.

Lúcia, deslumbrada, continuou de olhar cintlilante, fixo na face de luz e ouro da Senhora di Bicci di M. O orvalho das lágrimas nos seus olhos pareciam brilhantes finos, engastados nos cílios negros e longos. Após o silêncio expressivo, o semblante da Senhora duquesa nublou-se rapidamente, e ela falou, como se antecipasse no tempo e no espaço os acontecimentos de dor e luto que logo mais adviriam, convocando a moça ao testemunho...

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VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” – LIVRO PRIMEIRO, 2. ALUCINAÇÃO E CRIME (1 de 4), 4º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

sábado, 22 de março de 2014

o Homem e a Sociedade numa nova Civilização ~ do Materialismo histórico a uma Dialéctica do espírito ~

A INVESTIGAÇÃO ONTOLÓGICA NA PARAPSICOLOGIA

3) O Existencialismo Perante a Parapsicologia

O existencialismo, ou filosofia da existência, encarna, neste período da evolução, o estado espiritual com que vive o homem, frente ao seu próprio ser e existir. Para o existencialismo, o indivíduo existente só representa um momento do Ser, cuja meta final é a morte e o nada eternos. (i) Este estado de consciência, com efeito, não poderá ser refutado pelos antigos processos teológicos e metafísicos. Somente uma nova realidade espiritual do Ser, originada de uma autêntica experiência parapsicológica, poderá introduzir na filosofia existencial a ideia do Espírito. Não devemos esquecer o que H. H. Price escreveu: “Devemos ter a coragem de estabelecer novamente a questão da estrutura da personalidade humana e das suas relações com o Universo, criando um novo quadro conceitual, que possa ajustar-se aos factos novos. Na minha opinião, compete aos filósofos esta tarefa.” (ii)
Não nos esqueçamos de que o Espírito é ainda uma irrealidade para as correntes mais avançadas do pensamento. Entre elas, como sabemos, encontra-se o materialismo histórico e dialéctico, base ideológica da concepção marxista da sociedade. Lembremo-nos de que o Espírito foi factor de superstições e de promessas de além túmulo, com as quais se justificaram cruéis injustiças sociais. Além disso, sua concepção jamais correspondeu, na formulação teológica, de forma satisfatória, à desnorteante angústia do homem. Por sua vez, a filosofia referiu-se sempre ao Espírito, mas sem dar provas de sua realidade objectiva. Obrigou-se a aceitá-lo dogmaticamente, por imposição de mentores religiosos, que nunca levaram em conta o sentir colectivo do mundo, base fundamental da civilização e de todo o progresso social.

Esta concepção do Espírito foi a razão ideológica do existencialismo, cuja pujança filosófica nenhuma filosofia e nenhuma teologia conseguirão deter, enquanto não se demonstrar a existência real do Ser espiritual. Acreditamos que o existencialismo só deixará a sua posição niilista quando se provar que a mente sobrepuja as circunvoluções cerebrais, e quando essa mente se mostrar como uma consequência da real existência do Espírito, cuja objectivação só poderá obter-se pela investigação fenoménica da parapsicologia.

O laboratório parapsicológico deverá representar, portanto, uma forma de concretização científica da filosofia espírita. Se é certo que dele não poderá sair uma definição dogmática sobre a realidade espiritual do homem, isso não impede que a escola espírita vá confirmando a sua ideologia doutrinária, por meio da parapsicologia. Seria faltar à verdade deixarmos de reconhecer que devemos o advento da investigação psíquica, da metapsíquica e da parapsicologia ao resultado dos esforços realizados pela escola espírita no campo experimental, quando ela, sozinha, enfrentava as insustentáveis hipóteses sobre demónios, larvas, cascões astrais e fraudes. Daí apresentar-se a filosofia espírita, com sobejas razões, perante a exaurida humanidade, como campeã da vida e do Espírito. Ela fará o homem sentir a realidade do seu Ser espiritual, por meio da ciência e da religião. Ela descerrará os véus do além e iluminará com os seus fachos a marcha solene da história.

Com o seu génio mediúnico, a filosofia espírita fez realidade e presença no que todas as religiões têm intuído subjectivamente: a alma imortal. Conseguiu estabelecer um dramático diálogo entre o mundo visível e o invisível, que os teólogos consideram sempre como irrealizável. O método científico, aplicado à pesquisa espiritual, vai dando à filosofia espírita a razão que lhe pertence. Daí que a parapsicologia, ao demonstrar a realidade psíquica do homem, não poderá desfazer a concepção espírita do Ser, se é que realmente quer refrear o existencialismo ateu e o conceito materialista da vida.

O existencialismo não poderá ser ultrapassado só por meio de factos, mas também mediante sólidas reflexões ontológicas acerca do homem. Não nos esqueçamos de que Jean-Paul Sartre disse: “As situações históricas variam: o homem pode nascer escravo numa sociedade vaga, ou senhor feudal, ou proletário. que não varia é a necessidade, para ele, de estar ali, no meio dos outros, e de ali, como eles, ser mortal.” Cabe à parapsicologia ensaiar, mediante o seu rico fenomenismo extrassensorial, um Humanismo do Espírito, com o fim de indicar ao Ser de onde provém, o que faz no mundo e para onde se dirige.

Segundo a filosofia existencialista, a razão metafísica não é suficiente para negar o sentido niilista do homem e do mundo. O ser humano, não obstante a exigência teológica, destina-se à morte eterna. Demonstrar o contrário seria negar a primazia que o existencialismo confere à existência sobre a essência. Como, porém, poderia realizar-se isto? Só mediante uma materialização da essência, que se poderá obter pela objectivação do Ser espiritual do indivíduo. E esta materialização da essência é tarefa da parapsicologia, que, uma vez cumprida, demonstrará cabalmente que o Espírito é uma realidade e pode objectivar-se.

Será realmente assombroso constatar os efeitos espirituais que a parapsicologia produzirá no existencialismo. A existência material será superada pela espiritualidade da essência; ela transformará a sua imagem finita, para mostrar-se resultante do Ser infinito. Porque, como o reconhecerá a filosofia do futuro, só o método parapsicológico poderá conceder à metafísica os reais elementos com que construir uma verdadeira teoria do homem.

Estas reflexões nos levam a pensar que devemos juntar à Fenomenologia de Husserl uma “segunda fenomenologia”, já que ela abrange somente uma face do ser fenomenológico, o qual necessita de transcender para um existir extratemporal. Ao contrário, uma fenomenologia parapsicológica do Ser não se limita às estruturas físicas, mas as supera, por meio de um ser intencional. A fenomenologia existencial detém-se na parte morta do Ser. Não obstante a intuição essencial que experimenta, não consegue perceber a realidade do fenómeno, para dele se libertar. Daí se conclui que a parapsicologia, à luz da filosofia espírita, é uma espécie de maiêutica socrática, que dá origem a uma nova realidade psicológica.

A objectividade de um verdadeiro facto parapsicológico terá a propriedade de convencer a matemáticos, cientistas, artistas, filósofos e religiosos. Consequentemente a parapsicologia será a objectivação daquilo que se julgava morto para sempre: o ideal e o espírito, os quais ressurgem graças à influência que os fenómenos psíquicos e metapsíquicos exercem sobre o pensamento humano e a marcha do conhecimento. Ela é capaz de produzir factos que podem interessar a toda a humanidade, já que esses factos representam uma superação geral do conhecimento e do habitual. Além disso, ela está organizando métodos novos, para a investigação daquilo que sempre foi considerado como não experimental: a busca do Espírito.

Se a realidade espiritual clássica se mostra impotente para se opor à negação de Deus e do Espírito, existe uma teologia experimental, da qual falou o grande biólogo espanhol Jaime Ferrán, no seu prólogo ao Tratado de Metapsíquica, de Charles Richet, verdadeiro libelo contra o existencialismo ateu. Trata-se nada menos do que da metapsíquica objectiva, cujos fenómenos e materialização estão revolucionando o pensamento filosófico. Ela será de grande proveito para a existência humana e animal, agora que o existencialismo indica ao homem, como o seu único futuro, a morte e o nada. Embora seja certo que várias escolas espiritualistas se levantaram contra o existencialismo, e com elas – que paradoxo – a própria doutrina marxista, não obstante a sua concepção materialista, a verdade é que o niilismo espiritual se difunde de maneira alarmante, ao lado da filosofia do existencialismo.

Miguel de Unamuno não via, no fenómeno metapsíquico, nenhuma prova a favor da imortalidade. Não obstante, ao referir-se à realidade da vida de além-túmulo, chegou a escrever: “E a esta mesma necessidade, verdadeira necessidade de formarmos uma ideia concreta do que pode ser essa outra vida, responde em grande parte a indestrutível vitalidade de doutrinas como as do espiritismo, da metempsicose, da transmigração das almas através dos astros, e outras análogas, doutrinas que, quantas vezes declaradas vencidas e mortas, renascem noutras formas mais ou menos novas. É grande loucura querer eliminá-las, em vez de buscar-lhes a substância permanente.” (iii)

Se a ciência psicológica está se beneficiando com as contribuições da investigação psíquica, da metapsíquica e da parapsicologia, isto se deve ao persistente trabalho do espiritismo científico, que, desde os seus primórdios, conseguiu atrair a atenção dos homens de ciência, interessando por sua vez a filosofia e a religião.

O conhecimento psicológico do homem encontra-se numa fase a que poderíamos chamar de revolucionária. As teorias do paralelismo psicofisiológico vão sendo abandonadas, ao considerar-se o Ser como um Eu ou uma Mente, conceito este negado pelo materialismo e pelo existencialismo ateu.

A escola espírita, no campo do conhecimento, está preparando um novo sentido espiritual, mas agora apoiado num neorrealismo decorrente da demonstração positiva da existência da alma. Assim, o próprio cristianismo, menosprezado pelos niilistas e por certos espiritualistas orientais, se reafirmará sobre bases verdadeiramente espirituais. A filosofia espírita promoveu uma nova interpretação da antropologia, que permitirá à própria teosofia apresentar-se ante o espírito dos tempos actuais com as suas grandes intuições místicas e cósmicas.

O carácter positivo da ciência mediúnica e metapsíquica confirmará finalmente as hipóteses de muitas correntes idealistas. A intuição palingenésica da teosofia, por exemplo, encontrará no realismo do fenómeno parapsicológico e metapsíquico a mais completa confirmação, ao lado de muitas teorias da metafísica oriental e ocidental.

Unamuno considerava as manifestações místicas e vivenciais da agonia terrena, antes de mais nada, como uma consequência da angústia religiosa. Era ele um tipo de existencialista cristão, semelhante a Soren Kierkegaard. Este achava que toda a sabedoria espiritual provinha da própria angústia do Ser. Não obstante, a metapsíquica objectiva é a única força positiva que poderá contraditar e paralisar os planos filosóficos do existencialismo. Estejamos certos de que só um fenómeno objectivo, como o ectoplásmico, se fosse tomado na devida conta, poderia mudar a mentalidade dos tempos modernos e de todas as épocas. Porque, se a objectividade do facto metafísico chegasse a comover a inteligência contemporânea, o existencialismo perderia todo o seu valor, do ponto de vista lógico e filosófico.

Para o pensamento materialista, a filosofia idealista nada representa no mundo do conhecimento. Ela está incluída entre os sistemas que serviram de base aos dogmas, mediante os quais foi possível submeter os povos económica e socialmente. Entretanto, para a filosofia espírita, o idealismo é uma realidade inegável, dependente do mundo espiritual. Pelo processo chamado ESP, isto é, pela percepção extrassensorial, poderíamos captar essa realidade, através do inconsciente. Esse processo chamado ESP (iv) nos permitiria apreender outro plano do Espírito, ainda distante, no qual o homem não penetrou, mas que ele pressente, parapsicologicamente, como uma realidade.

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(i) O autor se refere, como adiante se verá, ao existencialismo de Sartre, dominante na actualidade. (Nota de J.H. Pires).
(ii) Revista de Parapsicologia, n° 1 – Buenos Aires, 1955.
(iii) Unamuno, Do Sentimento Trágico da Vida.
(iv) ESP – termo empregado na parapsicologia no sentido de percepção extrassensorial. A sigla corresponde à expressão inglesa extra sensory perception.




Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo I A INVESTIGAÇÃO ONTOLÓGICA NA PARAPSICOLOGIA, 2º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador Dali)

domingo, 16 de março de 2014

O Mundo Invisível e a Guerra ~

II – Cenas do Espaço. Visões Reais da Guerra e da Epopeia

|Janeiro de 1915|

Eles se encontram ali, pairando sobre a enorme frente de batalha que vai das praias nevoentas aos picos dos Vosges, até às planícies da Alsácia. Estão ali os espíritos de todos quantos, no decorrer dos séculos e em todos os sectores, principalmente no militar, contribuíram para abrilhantar a França, para construir a sua glória imortal. Eles apoiam, arrastam e inspiram os nossos soldados e os seus comandantes.

Faz quatro meses que os combatentes, semi-enterrados, ocultos nos acidentes do chão, cercados de redes de arame, continuam uma guerra de destruição e astúcia onde se apura a paciência e a coragem se esgota lentamente.

Outrora a guerra possuía a sua trágica beleza, a sua grandeza. Lutava-se a peito descoberto, de cabeça erguida e com bandeiras desfraldadas. Hoje existem apenas ciladas, maquinações e covardias.

Em toda a parte, nos trabalhos da paz como nos da guerra, os alemães desnaturaram, amesquinharam e aviltaram tudo quanto foi nobre. A traição, a perfídia e a falsidade são os seus princípios rotineiros.

Os génios do mal, os espíritos inferiores de homicídio e de rapina dos tempos medievais estão entre eles, reencarnados nas suas fileiras ou invisíveis, participando dos seus combates.

Se eles triunfassem, a Europa ficaria escravizada, os fracos esmagados e os vencidos espoliados. Seria um retorno da humanidade aos tempos bárbaros.

Os nobres espíritos que zelam pelos nossos exércitos conheceram lutas mais nobres, mais generosas, e por isso surpreendem-se com essas tácticas e se afligem com esses procedimentos. Há ocasiões em que, vendo infrutíferos tantos esforços, sentem-se invadir pela hesitação e pela inquietude, perguntando, angustiados, qual será o fim dessa terrível luta.

Quanto sangue e lágrimas! Quantos jovens heróis sucumbidos! Quantos despojos humanos jazem sobre a terra! O nosso país verá aniquilar-se toda a sua força, toda a sua vitalidade?

Aí então aparece, do alto do espaço infinito, um novo espírito, e ao vê-lo todos se agitam e se comovem: é uma mulher, e uma auréola lhe cinge a fronte; o entusiasmo e a fé lhe animam o rosto.

Assim que ela aparece, um tremor perpassa por essas legiões de invisíveis. E um nome passa de boca em boca: Joana d’Arc!

É a filha de Deus, a virgem das lutas!

Ela vem revigorar as energias adormecidas, a coragem abalada. Desde o início da luta ela se mantinha afastada, entre as suas irmãs celestes, num grupo de seres graciosos e encantadores, seres angélicos, cujo comando Deus lhe confiou após o martírio.

A sua missão consiste em aplacar os sofrimentos humanos, diminuir as dores morais, pairando sobre as almas que suportam as suas provas.

A hora, porém, soou. Ao ter ciência dos males que devastam a pátria, essa França tão querida pela qual sacrificou a sua existência, o coração da Virgem Lorena se sentiu turbado, apossando-se dela o desejo ardente de nos socorrer, e então ela cede a esse desejo.

Na hora da partida, as suas irmãs, companheiras do espaço, inclinam-se ante aquela que veneram, dizendo:

“Faremos preces pelo triunfo de vossas armas, filha amada de Deus”.

Assim, pois, Joana acode e em seu derredor se congregam, prestativos, os espíritos heróicos, protectores da França, para saudá-la e acompanhá-la.

Na sua simplicidade, ela lhes diz:

Como nos séculos passados, senti a irresistível vontade de me juntar aos que estão lutando pela salvação da pátria. Aceitam-me em suas fileiras?”

Todos, num só entusiasmo, exclamaram:

“Ponha-se à nossa frente e marcharemos sob as suas ordens!”

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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, II – Cenas do Espaço, Visões Reais da Guerra e da Epopeia, 1 de 3, 3º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

sexta-feira, 14 de março de 2014

pensamento espírita argentino ~

CAPÍTULO I

Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história ~

Que somos? (II)

Os fenómenos do Espiritismo, hoje chamados metapsíquicos, (i) são tão antigos quanto o homem. No Oriente e especialmente nos países hindus são conhecidos desde os tempos mais remotos. Luís Jacolliot acredita que, pelos menos, datam de há mais de dez mil anos, e no seu interessante livro O Espiritismo na Índia descreve fenómenos de levitação de corpos pesados, sem contacto, apenas pela exteriorização da força psicomotriz do médium, de telepatia, bilocação, desdobramento, ectoplasmia, premonição, etc., observados por ele mesmo, tão surpreendentes como os estudados nos países ocidentais.

A sinagoga, a assembleia de feiticeiros, fundiram-se nas sombras do passado com o seu esoterismo e o seu mistério fatídico e aterrador; mas as exigências da alma criaram em seu lugar os centros de estudos psíquicos e de evocações espiritistas, iluminados com a cintilação da luz eléctrica, quando não, com os raios obscuros, empregados nos institutos da moderna metapsíquica. A pitonisa grega, a sibila romana, o faquir oriental e o mago das antigas lendas têm hoje um similar no médium (no adivinho, no clarividente, no psicómetra, no sensitivo, etc.), transmissor ou receptor psíquico, telescópio humano por quem a ciência vê o invisível e penetra no impenetrável.

demónio de Sócrates, a diva de Plotino, a ninfa de Numa, deixaram de ser personagens mitológicos para converter-se, à luz do Espiritismo, em génios protectores ou em espíritos vinculados à vida de certos homens, por afectos ou outras diversas razões, capazes, em certos casos, de ser vistos e ainda fotografados, como a Katie King de William Crookes, a Estela de Livermore, a Yolanda de Elisabeth d'Espérance, o Joey de Alexandre Aksakof e o Vicente do Dr. Imoda.

Os oráculos perderam o seu sabor de mistério e manifestam-se hoje na clarividência psicocronométrica (ou pragmática, segundo Richet) e se expressam às vezes em idiomas desconhecidos pelos bruxos da moderna feitiçaria.

O velador actual substituiu a trípoda (ii) da antiguidade, e as consultas já não obedecem a um entretenimento passageiro, mas ao desejo de instruir-se e de descobrir a causa inteligente que os move; os seus movimentos giratórios são tão conscientes e voluntários como os dos trípodas de Delfos e não necessitam, como aqueles, das rodas invisíveis forjadas por Vulcano, segundo afirma Homero no canto 16 da Ilíada. Se a trípoda tem em Homero um defensor, o velador tem um apóstolo em Victor Hugo.

Ante os factos surpreendentes do Espiritismo, não faltarão cépticos que dirão com um certo sabor de ironia, usando o conhecido paradoxo: “Será verdade tanta mentira?” Ao que os homens estudiosos e reflexivos contestarão, tendo ante os seus olhos a visão dos factos: “Será mentira tanta verdade? ...”

Desde os séculos mais antigos, os mortos têm chamado a atenção dos vivos e já era hora de a ciência dar-se por advertida. Por absurdos ou inverosímeis que pareçam, os fenómenos espíritas não deixam, no entanto, de ser certos e naturais como toda a outra manifestação da Natureza e do Espírito que a anima.

Por outro lado, a crença na imortalidade da alma, na sua encarnação e evolução progressiva, que encontra nos fenómenos espíritas o seu fundamento positivo, tem outra fonte não menos fecunda de informação que data dos tempos mais remotos: Krishna, o filósofo legendário na Índia, pregou-a há muitos anos nas margens do Ganges. Dizia ele:

“A sorte da alma depois da morte constitui o mistério dos renascimentos. Como a profundidade dos céus abre-se aos raios das estrelas, a profundidade da vida ilumina o esplendor desta verdade.”

E esta verdade impõe-se no nosso século de radiofonia, de radioactividade, de inventos e descobrimentos prodigiosos e também de refinado materialismo religioso e burguês, de guerras e conflitos de pugilismo e jazz-band. São os sinais dos tempos que correm: o paradoxo de uma civilização em decadência, a crise de todo um sistema social, a luta da luz e das trevas, do espírito por dominar a matéria, da alma imortal vencendo o conceito materialista do nada.

Espiritismo vem a ser, pois, o resplendor desta verdade, a ciência do espírito e de tudo que com ele se relaciona. Estudando o Espiritismo, alcançam-se muitos mistérios, resolvem-se muitos problemas da vida, ampliam-se os horizontes do conhecimento humano e explicam-se as anomalias da sociedade e a razão de muitos ódios e afectos, cujo véu se descerra à medida que se penetra no passado do espírito, na subconsciência metapsíquica, em cujas saliências se arquiva a história contínua das existências passadas e das diferentes personalidades vividas. Mas o Espiritismo não vem adormecer as consciências, oferecendo ao mundo o ópio de uma nova religião dogmática e conservadora como são todas as religiões; não vem matar os impulsos revolucionários, generosos e emancipadores que se dirigem à melhora da vida das pessoas e dos povos; é por sua própria essência revolucionário, no elevado conceito da palavra, seja na ciência e na filosofia, como na moral e na sociologia.

A curiosidade é uma propensão natural da alma humana, força propulsora, invencível, que a move a investigar os princípios e origens, a elevar-se dos efeitos às causas, do conhecido ao desconhecido, sempre em busca de novos conhecimentos para saciar a infinita sede de saber. Esta propensão para descobrir o desconhecido é universal: encontra-se no homem primitivo como no moderno, no sábio como no ignorante; não tem idade nem sexo. A criança que nos aborrece com as suas perguntas, que rompe os seus brinquedos para conhecer o segredo de seu mecanismo oculto, não é menos curiosa do que o filósofo que procura desentranhar a verdade das coisas, nem do que o homem de ciência que deseja conhecê-las experimentalmente por princípios certos e demonstráveis.

A humanidade não progride cientificamente senão pela curiosidade; as conquistas do pensamento e da ciência, em geral, devem-se mais a ela do que à necessidade, não obstante o ditado vulgar de que esta é a mãe de todos os inventos e descobrimentos.

Devido a esta tendência, o homem chegou, com a evolução, a ocupar um lugar proeminente no nosso planeta, conseguindo dominar muitas forças da natureza e penetrar nos segredos que esta reserva à sua coragem e ao seu talento. Mas se a curiosidade científica levou o homem à altura considerável em que hoje se encontra, a um misto de orgulho e assombro, não se deve tanto às conquistas do mundo exterior, como ao conhecimento do homem sobre si mesmo, o que, por muito imperfeito que ainda seja, constitui a sua mais valiosa conquista, a glória maior de sua ciência.

O verdadeiro valor científico e filosófico consiste, mais do que em outras disciplinas científicas, no estudo do sujeito do conhecimento, isto é, da alma humana, relegada durante muito tempo ao esquecimento, por uma excludente ciência cosmológica, que a tudo estudava excepto o homem na sua natureza psíquica, espiritual.

Coube a Sócrates a glória de ser o primeiro a abordar o estudo do ser humano, considerando-o na sua espiritualidade, como também na sua imortalidade. Esse grande filósofo, a quem um oráculo havia proclamado o mais sábio dos homens de sua época, tendo lido na fachada do templo de Delfos a já mencionada sentença Gnothy seauton (Conhece-te a ti mesmo), que serviu de base à sua filosofia, fez dela o ponto de partida do conhecimento.

Até ao século 17, a ciência da alma achava-se compreendida nas ciências filosóficas e o seu estudo não foi considerado senão como um preâmbulo da moral, da lógica e da metafísica. Até o nome de psicologia foi pela primeira vez introduzido na linguagem filosófica pelo filósofo moralista Goclénio de Marburgo, que o adaptou como título de uma obra sobre a perfeição moral. Mas esse conhecimento do homem, fundado numa psicologia puramente racional, não pôde ser de grande valor, por estar baseado em observações imprecisas, quando não, em meras especulações, tão infecundas como alheias ao método experimental.

/…
(i) A partir da década de 1930 os fenómenos do Espiritismo passaram a ser chamados de paranormais.
(ii)  Pequena mesa, de três pés, diante da qual a pitonisa fazia o oráculo. (N.T.)




Manuel S. PorteiroEspiritismo Dialéctico, CAPÍTULO I Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história – Que somos? (II) 2º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Personajes, Pintura de Josefina Robirosa)

terça-feira, 11 de março de 2014

Corpo fluídico | agénere ou aparição tangível ~

Capítulo PrimeiroAgénere ou Aparição Tangível |

O estudo dos seres fluídicos, tangíveis, denominados por Allan Kardec de agéneres "para indicar que a sua origem não é o resultado de uma geração" é de grande importância para a compreensão do corpo fluídico pretendido para Jesus. Vale, pois, abordar a questão, senão como um estudo profundo, pelo menos como meio para se chegar a uma conclusão razoável sobre as possibilidades de Jesus ter tido um corpo fluídico ao invés de um corpo carnal.

Allan Kardec teve as suas vistas voltadas para o assunto inúmeras vezes. Ao longo do tempo em que dirigiu a Revista Espírita, pôde estudá-lo partindo de factos reais que lhe chegavam ao conhecimento e de experiências vividas por ele próprio. Em fevereiro de 1859, em artigo que leva o título AGÉNERES, diz o Codificador: "Partimos de um facto patente – o aparecimento de mãos tangíveis – para chegar a uma suposição que lhe é consequência lógica. Entretanto não a teríamos aventado se a história do menino de Bayonne não nos tivesse aberto o caminho, mostrando-nos a possibilidade". A história do menino de Bayonne não chega a ser um caso perfeito de agénere. Ela resume as experiências vividas por uma menina em contacto com o próprio irmão desencarnado. Porém, se não constituía um caso perfeito de agénere, servia, pelo menos, para provocar o estudo do assunto e foi o que aconteceu.

"Interrogado a respeito, – afirma Kardec – um Espírito superior respondeu que efectivamente podemos encontrar seres de tal natureza, sem que o suspeitemos; acrescentou que isso é raro, mas que se vê.

"Como para nos entendermos necessitamos de um nome para cada coisa, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas os chama agéneres, para indicar que a sua origem não é o resultado de uma geração."

Os dois casos a seguir, relatados por Kardec na "Revista Espírita", fornecem um bom exemplo de agéneres perfeitos, principalmente o segundo. Vamos a eles.


1.° CASO

"A 14 de janeiro último, o senhor Lecomte, cultivador na comuna de Brix, departamento de Volognes, foi visitado por um indivíduo que se dizia um de seus antigos camaradas, com o qual tinha trabalhado no porto de Cherburgo, e cuja morte remonta há dois anos e meio. A aparição tinha por fim pedir a Lecomte que mandasse rezar uma missa. No dia 15 a aparição se renovou. Menos espantado, Lecomte efectivamente reconheceu o antigo camarada. Mas, ainda perturbado, não soube o que responder. O mesmo aconteceu a 17 e 18 de janeiro. Só no dia 19 Lecomte lhe disse: já que desejas uma missa, onde queres que seja rezada? E irás assistir? – Eu desejo respondeu o Espírito – que a missa seja dita na capela de São Salvador, em oito dias. E eu ali estarei. E acrescentou: Há muito tempo que eu não te via e era muito longe para vir ver-te. Dito isto, retirou-se, apertando-lhe a mão.

"O senhor Lecomte não faltou à promessa. No dia 27 a missa foi dita na capela de São Salvador, e ele viu o seu antigo camarada, ajoelhado nos degraus do altar, junto ao padre oficiante. Ninguém mais o tinha visto, embora tivesse perguntado ao padre e aos assistentes se não o viram.

"Desde então, Lecomte não mais foi visitado e retomou sua habitual tranquilidade."

Sobre o caso, Kardec faz a seguinte observação: "Conforme esse relato, cuja autenticidade é garantida por pessoa fidedigna, não se trata de simples visão, mas de uma aparição tangível, pois que o defunto amigo de Lecomte lhe havia apertado a mão. Os incrédulos dirão que foi uma alucinação. Mas, até ao presente, ainda esperamos de sua parte uma explicação clara, lógica e verdadeiramente científica dos estranhos fenómenos que designam por esse nome, com o único fim, segundo nos parece, de recusarem qualquer solução".


2.° CASO

"O facto que segue, ocorrido recentemente em Paris, parece pertencer a esta categoria.

"Uma pobre mulher estava na Igreja de São Roque e pedia a Deus que a auxiliasse na sua aflição. À saída, na Rua Santo Honorato, encontra um senhor que a aborda e lhe diz:

"– Minha boa senhora, ficaria contente se arranjasse trabalho?

"– Ah! meu bom senhor, responde ela, peço a Deus que me faça este favor, porque estou muito necessitada.

"– Então vá à rua tal, número tanto. Procure a senhora T ... e ela lhe dará trabalho.

"Dito isto, continuou o seu caminho. A pobre mulher foi sem demora ao endereço indicado.

"A senhora procurada lhe disse:

"– Com efeito, tenho um trabalho para mandar fazer. Mas como não o disse a ninguém, não sei como pôde a senhora vir procurar-me.

"Então a pobre necessitada, avistando um retrato na parede, respondeu:

"– Senhora, foi esse cavalheiro quem me mandou.

"– Este cavalheiro? retrucou espantada a senhora. Mas é impossível! Este é o retrato de meu filho, falecido há três anos.

"– Não sei como pode ser isto; mas eu vos asseguro que foi esse senhor que eu encontrei ao sair da igreja, onde tinha ido pedir auxílio a Deus. Ele me abordou e foi ele mesmo quem me mandou."

Kardec entende que este caso é um exemplo patente do agénere perfeito. E diz: "De acordo com o que acabamos de ver, nada existe de surpreendente que o Espírito do filho daquela senhora, a fim de prestar um serviço à pobre mulher, cuja prece por certo ouvira, lhe tenha aparecido sob forma corpórea, para lhe indicar o endereço da própria mãe. Em que se transformou depois? Sem dúvida no que era antes: um Espírito, a menos que tivesse achado oportuno mostrar-se a outras pessoas sob a mesma aparência, continuando o seu passeio. Aquela mulher teria, assim, encontrado um agénere com o qual conversara".

Verifica-se, desde já, o seguinte: o agénere é – sempre – a aparição de um Espírito com aspectos de tangibilidade. Pode ser tocado e, até, passar por uma pessoa normal, encarnada.

Allan Kardec, ainda na "Revista Espírita" de Fevereiro de 1859, no início, portanto, dos estudos sobre o assunto, chega à seguinte conclusão: " ... agénere propriamente dito não revela a sua natureza e aos nossos olhos não passa de um homem comum; a sua aparição corpórea pode ter longa duração, conforme a necessidade, a fim de estabelecer relações sociais com um ou vários indivíduos".

Não satisfeito, porém, com esses dados alcançados, Kardec busca melhores informações junto do Espírito de São Luís. Vejamos como se deu o diálogo, publicado na mesma Revista, tomando as suas partes mais importantes, apenas.

O Codificador trazia, vivas, as impressões da aparição do menino de Bayonne à sua irmã. Por isto, pergunta ao Espírito:

"– Que aconteceria se se apresentasse a um desconhecido?

"– Tê-lo-iam tomado por uma criança comum. Dir-vos-ei, entretanto, uma coisa: por vezes, existem na Terra Espíritos que revestiram essa aparência e são tomados como homens.

"– Tais seres pertencem à categoria dos Espíritos superiores ou inferiores?

"– Podem pertencer a uma ou outra. São casos raros, de que há exemplo na Bíblia.

"– Raros ou não, basta a sua possibilidade para que mereçam atenção. Que aconteceria se, tomando um tal ser por um homem comum, lhe fizessem um ferimento mortal? Seria morto?

"– Desapareceria subitamente, como o jovem de Londres (alusão a um caso anterior, publicado em 1858).

"– Se um tal ser se nos apresentasse, teríamos um meio de o reconhecer?

"– Não – a não ser pelo desaparecimento inesperado. ( ... )

"– Qual o objectivo que pode levar certos Espíritos a tomar esse estado corporal, o mal ou o bem?

"– Muitas vezes, o mal; os bons Espíritos têm a seu favor a inspiração: agem sobre a alma e pelo coração. Sabeis que as manifestações físicas são produzidas por Espíritos inferiores; e elas são numerosas. Entretanto, como disse, os bons Espíritos também podem tomar essa aparência corporal, com um fim útil. Falei em tese.

"– Se tivéssemos entre nós um ser semelhante, seria um bem ou um mal?

Seria antes um mal. Aliás, não é possível adquirir grandes conhecimentos com esses seres. Não vos podemos dizer muita coisa. Tais factos são excessivamente raros e jamais têm um carácter de permanência. Principalmente essas aparições corpóreas instantâneas, como a de Bayonne."

Algumas afirmações de São Luís podem ser destacadas. A primeira delas, quando diz que "existem na Terra Espíritos que revestiram essa aparência e são tomados como homens". Isso poderia deixar entrever a coexistência entre desencarnados, em corpos fluídicos, e encarnados, os primeiros "tomados como homens" pelas dificuldades de serem reconhecidos como sendo agéneres. Uma resposta dada, logo a seguir, porém, fornece dados contrários a essa conclusão. É que, perguntado sobre o que aconteceria se o agénere fosse ferido mortalmente, São Luís diz que ele desapareceria de súbito. Isso importa em afirmar que o agénere é um ser incapacitado a suportar certas vicissitudes da vida física, o que, por sua vez, leva a concluir pela durabilidade exígua de seu corpo. E é precisamente isso que São Luís afirma ao final do seu diálogo: "tais factos são excessivamente raros e jamais têm um carácter de permanência". Essa colocação, muito clara, desfaz a possível dúvida anterior. Quer dizer, a aparição de um agénere constitui um facto raro e rápido. Embora o diálogo acima transcrito não forneça maiores explicações sobre as causas da raridade e rapidez de tais aparições, seria interessante conhecê-las. Procuraremos descobri-las mais adiante.

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Wilson GarciaO Corpo Fluídico, Capítulo Primeiro – AGÉNERE OU APARIÇÃO TANGÍVEL (1 de 2) 1º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Pintura de Josefina Robirosa)

sábado, 8 de março de 2014

Inquietações Primaveris ~

Conceito actual da Morte ~

O pó de múmia desapareceu no seu próprio desprestígio. A sua ineficácia curativa correspondia à ineficácia das múmias para eternizar os corpos perecíveis. A Cultura do Renascimento floresceu e desenvolveu-se na Terra. Em vão a Igreja condenou as pesquisas, combateu-as, amaldiçoou-as. Galileu teve de se defender perante os tribunais da Inquisição, Giordano Bruno foi queimado na fogueira criminosa e herética por sustentar que a Terra girava em torno do Sol. Descartes, o filósofo espadachim que não engoliu a falsa paciência dos padres do Colégio de La Fleche, teve de fugir para a Suécia e, num golpe de esgrima, recolocar o problema copérnico do heliocentrismo: “A Terra é fixa na sua atmosfera – escreveu – que gira em torno do Sol”. Os paquidermes da Ciência Divina não perceberam o golpe. A família de Espinosa teve de fugir de Portugal para a Holanda. A sua mãe levava-o no ventre e Portugal perdeu a única chance de ter um filósofo de verdade. Espinosa nasceu na Holanda e esmagou com a sua Ética a pobreza mental dos clérigos. Francis Bacon sofreu perseguições mas não cedeu. Nasceu o movimento de resistência lógica em todo o mundo e a Ciência humana arquivou na Terra a suposta e infusa Ciência Divina. Gritaram os retrógrados que o ateísmo dominava o mundo. Mas os resistentes não cediam e ganhavam todas as batalhas nas emboscadas da inteligência. Expulso da Sinagoga, guardiã esclerosada da Bíblia judaica, Espinosa traça os delineamentos da matemática filosófica, esfarelando nos seus dedos a calúnia do ateísmo para a nova cultura. Fez do conceito de Deus o fundamento do pensamento. Estruturou o panteísmo em termos esmagadores. Chamaram-no “ébrio de Deus”. Kant correu em socorro de Rousseau com a sua crítica da razão. Voltaire feria com o sorriso da sua ironia mortal a fera encurralada do Vaticano e a chamava corajosamente: “L’infeme”. Com um pé na cova e outro na terra firme, como dizia de si mesmo, manejava com perícia as suas armas terríveis. Não temia a morte, pois já se considerava, por sua saúde periclitante, um semimorto. Nada se podia fazer contra ele, senão suportá-lo. O Século XVIII consolidara o prestígio da Ciência. Os clérigos, batidos em todos os sectores, lutavam para restabelecer o prestígio divino que eles mesmos haviam destruído. O Evolucionismo de Spencer opunha-se brilhantemente à concepção estática do mundo. Darwin pesquisava o problema das origens do homem em termos puramente materiais, mas Wallace doseava o seu materialismo com a verdade espiritual. O Século XIX sofria então a invasão dos mortos, na América e na Europa. Os fantasmas contrabalançavam, com as suas aparições, o desequilíbrio materialista da nova cultura, baseada na heresia das pesquisas científicasFoi então que Denizard Rivail, discípulo de Pestalozzi, continuador do mestre, professor universitário, filósofo, sacudiu os novos tempos com a publicação de O Livro dos Espíritos, proclamando o restabelecimento da verdade espiritual contra o vandalismo teológico. Um homem solitário, dotado de profundo saber e lógica inabalável, despertava contra si todas as forças organizadas do novo mundo cultural. E sozinho enfrentava as iras da Igreja, da Ciência e da Filosofia. Kant, que testemunhara os fenómenos de vidência do sábio sueco Swedenborg, não arredava pé da sua posição científica, afirmando que a Ciência só era possível no plano sensorial, onde funciona a dialéctica. Era impedido ao homem penetrar nos problemas metafísicos. Mas Kardec respondia com os factos, sob uma avalanche de contradições sofísticas, despejadas sobre ele de todos os quadrantes da nova cultura. Lutou e sofreu sozinho, solitário na sua certeza. Ensinava sem cessar que os fenómenos mediúnicos eram factos, coisas palpáveis e não abstracções imaginárias. O sábio inglês William Crookes, chamado a combatê-lo, entrou na arena das pesquisas psíquicas por três anos e confirmou a realidade da descoberta kardeciana. Fredrich Zöllner fez o mesmo na Alemanha e conseguiu resultados positivos. Ochorowicz confirmou a realidade dos fenómenos em Varsóvia. O Século XIX, como diria mais tarde Léon Denis, tinha a missão de restabelecer cientificamente a concepção espiritual do homem. O movimento neo-espiritualista empolgou a Inglaterra e os Estados Unidos. Lombroso levantava-se irado, na Itália, contra essa ressurreição ameaçadora das antigas superstições. O Prof. Chiaia, de Milão, o desafiou para assistir a experiências com a famosa médium Eusápia PaladinoLombroso aceitou o desafio e teve a ventura de receber nos braços a sua própria mãe num fenómeno de materialização. Charles Richet, na França, funda a Metapsíquica. Era o maior fisiologista do século, prémio Nobel, director da Faculdade de Medicina de Paris. Kardec, o solitário, já não estava mais só. Numerosos cientistas e intelectuais o apoiavam. Conan Doyle, médico e escritor de renome, tornara-se ardoroso propagador do Espiritismo. Victor Hugo pronunciou-se a favor da nova doutrina. Estava cumprida a missão do Século XIX e Léon Denis fazia conferências em toda a Europa sobre a Missão do Século XX. Clérigos e teólogos sensibilizaram-se com os acontecimentos e surgiu numa igreja de Paris um sacerdote corajoso, Meningem, professor da Sorbone, que pregava a favor do Espiritismo e escreveu um livro a respeito: O Cristianismo do Cristo e o dos seus Vigários. Foi expulso da Igreja.

Em 1935 Richet falecia em Paris, entregando aos seus discípulos a obra Monumental do Tratado de Metapsíquica. Geley e Osty deram prosseguimento à sua obra, no Instituto Internacional de Metapsíquica, em Paris. Mas a imprensa mundial trombeteou que a metapsíquica morrera e havia sido enterrada com Richet. Não sabia que, cinco anos antes, em 1930, Rhine e McDougall haviam reiniciado as pesquisas metapsíquicas na Universidade de Duke, com a denominação de Parapsicologia.

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José Herculano Pires, Educação para a Morte – Conceito actual da Morte 1 de 3, 3º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

quinta-feira, 6 de março de 2014

Deus na Natureza ~

Introdução (III)

Nesta nossa época de observação e experimentação, os materialistas procuram apoiar-se em trabalhos científicos e pretendem deduzir da ciência positiva o seu sistema.

Os espiritualistas, em geral, acreditam, ao contrário, poderem pairar acima da esfera experimental e chegar aos píncaros da razão pura. Em nosso ver, o espiritualismo para triunfar deve medir-se com o adversário no mesmo terreno e com as mesmas armas. Ele não perderá nada do seu carácter, condescendendo em baixar à arena, e nada terá a recear nesse confronto com a ciência experimental.

As lutas empenhadas e os erros a combater estão longe de se tornarem perigosos para a causa da verdade. Com o exigirem um exame mais rigoroso das questões versadas, essas lutas nos ensejam a preparação de uma vitória mais completa.

A Ciência não é materialista, nem pode servir ao erro. Como e por que, pois, haveriam de temê-la o espiritualismo e a verdadeira religião? Duas verdades não se podem opor a uma terceira.

Se Deus existe, a sua existência não poderia ser suspeita nem combatida pela Ciência.

Para nós, temos a convicção íntima de que, muito pelo contrário, no estabelecimento de conhecimentos exactos sobre a construção do Universo, sobre a vida e o pensamento, propicia-se actualmente o único método eficiente ao aclaramento do problema. Só assim poderemos saber se devemos admitir a soberania da matéria universal ou se importa reconhecer uma inteligência organizadora, um plano e um destino imanentes.

Tal, pelo menos, a forma por que o debate se nos apresenta e impõe à mente, neste nosso trabalho.

Esperamos que esta tentativa de versar a existência de Deus pelo método experimental aproveite ao progresso de nossa época, por estar de acordo com as suas tendências características.

Ficaremos satisfeitos se a leitura deste livro deixar cair uma fagulha luminosa nos espíritos indecisos. Mais ainda, se depois de haver meditado fundo estes nossos estudos, alguma fronte se levantar consciente de sua legítima dignidade.

Se, regra geral, os ideólogos franceses não têm aplicado o método científico aos problemas da filosofia natural, em compensação alguns sábios trataram o assunto do ponto de vista das relações gerais manifestadas no mundo e que lhe constituem a unidade viva. Com prazer assinalamos, entre as obras deste género, os diversos trabalhos do Sr. A. Langel, aqui mesmo utilizados várias vezes.

Problemas da Natureza e problemas da vida não conduzem eles, efectivamente, ao máximo problema? Examinar as forças activas no organismo universal não será o mesmo que examinar as diversas modalidades da força essencial e original?

As investigações que focalizam o estudo da Natureza podem aproveitar à Filosofia com maior segurança, às vezes, do que os tratados ou os ditirambos especialmente consagrados à Metafísica. Os próprios escritos dos senhores Moleschott e Buchner nos ofereceram elementos de refutação.

A circulação da vida, qual a expõe o primeiro, mostra na vida uma força independente e transmissível, dirigindo os átomos, mediante leis determinadas e conforme o tipo das espécies. O exame da Força e da Matéria estabelece, por outro lado, a soberania da Força e a inércia da Matéria.

Sendo a Força e a extensão os primeiros princípios do conhecimento, e sendo a Filosofia a ciência dos princípios, poderia esta obra ser considerada antes como um estudo filosófico, se não houvéssemos resolvido limitar-nos a uma discussão puramente científica. Este, efectivamente, o seu fim precípuo e que, por bem dizer, oferece mais atractivos, mau grado à aridez aparente do trabalho.

Pensamos que o único meio eficaz de combater o negativismo contemporâneo é voltar contra ele o materialismo científico e utilizar as suas próprias armas para derrotá-lo.

Esse discrime compete antes à Ciência que à Filosofia.

A Ideologia, a Metafísica, a Teologia, mesmo a Psicologia, dele se afastaram quanto possível.

Nós não razoamos com palavras, mas com factos.

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Camille Flammarion, Deus na Natureza – Introdução 3 de 4, 3º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

segunda-feira, 3 de março de 2014

Diálogos de Kardec ~

A MINHA MISSÃO

(Em casa do Sr. C...; médium: Srta. Aline C.)

|12 de junho de 1856|

Kardec em resposta ao Espírito de Verdade (depois de ter recebido a incumbência da Codificação da Doutrina dos Espíritos)

Eu — Espírito de Verdade, agradeço os teus sábios conselhos. Aceito tudo, sem restrição e sem ideia preconcebida. Senhor! pois que te dignaste lançar os olhos sobre mim para cumprimento dos teus desígnios, faça-se a tua vontade!

Está nas tuas mãos a minha vida; dispõe do teu servo. Reconheço a minha fraqueza diante de tão grande tarefa; a minha boa vontade não desfalecerá, as forças, porém, talvez me traiam. Supre à minha deficiência; dá-me as forças físicas e morais que me forem necessárias. Ampara-me nos momentos difíceis e, com o teu auxílio e dos teus celestes mensageiros, tudo envidarei para corresponder aos teus desígnios.

Nota de Kardec — Escrevo esta nota a 1º de janeiro de 1867, dez anos e meio depois que me foi dada a comunicação acima e atesto que ela se realizou em todos os pontos, pois experimentei todas as vicissitudes que me foram preditas. Andei em luta com o ódio de inimigos encarniçados, com a injúria, a calúnia, a inveja e o ciúme; libelos infames se publicaram contra mim; as minhas melhores instruções foram falseadas; traíram-me aqueles em quem eu mais confiança depositava, pagaram-me com a ingratidão aqueles a quem prestei serviços. A Sociedade de Paris se constituiu foco de contínuas intrigas urdidas contra mim por aqueles mesmos que se declaravam a meu favor e que, de boa fisionomia na minha presença, pelas costas me golpeavam. Disseram que os que se me conservavam fiéis estavam à minha solda e que eu lhes pagava com o dinheiro que ganhava do Espiritismo. Nunca mais me foi dado saber o que é o repouso; mais de uma vez sucumbi ao excesso de trabalho, tive abalada a saúde e comprometida a existência.

Graças, porém, à protecção e assistência dos bons Espíritos que incessantemente me deram manifestas provas de solicitude, tenho a ventura de reconhecer que nunca senti o menor desfalecimento ou desânimo e que prossegui, sempre com o mesmo ardor, no desempenho da minha tarefa, sem me preocupar com a maldade de que era objecto. Segundo a comunicação do Espírito de Verdade, eu tinha de contar com tudo isso e tudo se verificou. Mas, também, a par dessas vicissitudes, que de satisfações experimentei, vendo a obra crescer de maneira tão prodigiosa! Com que compensações deliciosas foram pagas as minhas tribulações! Que de bênçãos e de provas de real simpatia recebi da parte de muitos aflitos a quem a Doutrina consolou! Este resultado não mo anunciou o Espírito de Verdade que, sem dúvida intencionalmente, apenas me mostrara as dificuldades do caminho. Qual não seria, pois, a minha ingratidão, se me queixasse!

Se dissesse que há uma compensação entre o bem e o mal, não estaria com a verdade, porquanto o bem, refiro-me às satisfações morais, sobrelevam de muito o mal. Quando me sobrevinha uma decepção, uma contrariedade qualquer, eu me elevava pelo pensamento acima da Humanidade e me colocava antecipadamente na região dos Espíritos e desse ponto culminante, donde divisava o da minha chegada, as misérias da vida deslizavam por sobre mim sem me atingirem. Tão habitual se me tornara esse modo de proceder, que os gritos dos maus jamais me perturbaram.

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, A minha Primeira Iniciação no Espiritismo, A MINHA MISSÃO, 2º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)