terça-feira, 29 de julho de 2014

o Homem e a Sociedade numa nova Civilização ~ do Materialismo histórico a uma Dialéctica do espírito ~

Capítulo II
O Marxismo e o Espírito

O marxismo, como gerador de um sentir materialista do homem e da vida, vem sendo combatido por teóricos religiosos pertencentes a várias confissões eclesiásticas, que procuram mostrar os seus erros a respeito da realidade humana e espiritual. Todo esse trabalho poderá ser louvável para os que necessitam de um conceito espiritual com que enfrentar as contingências sociais; mas, quando analisado com certa atenção, percebe-se que a sua finalidade é apenas uma defesa sectária.

Dizem-nos que no marxismo se elabora um partidarismo da filosofiae que o filósofo deve amoldar a sua mentalidade aos interesses do partido. Mas, se bem considerarmos, vemos que ocorre o mesmo, quase com as mesmas características, no campo religioso: forja-se um partidarismo eclesiásticocondicionado aos interesses espirituais do partido religioso, pondo-se de lado o sentido real da busca da verdade.

Neste sentido, trava-se a luta entre duas concepções, ambas com o mesmo direito à análise e à discussão. O grau democrático, alcançado pelo desenvolvimento das ideias, permite-nos hoje cotejar o valor das doutrinas e até mesmo dos dogmas religiosos. Consequentemente, já não se trata de atacar partidariamente marxismo nem o materialismo dialéctico; o que agora interessa é saber positivamente onde se encontra a realidade do Espírito; se é que de facto se deseja superar o perigo representado pelo niilismo filosófico.

Actualmente não se trata de atacar sistemas, mas de saber se eles são realmente falsos, e se as ideias que lhes contrapomos são reais e demonstráveis. Neste campo, a luta trava-se entre o Espírito e a Matéria. Para o espiritualismo religioso, é na existência do Espírito que se radica a legitimidade do cristianismo e das verdades escatológicas. Pois se a existência do Espírito fosse uma irrealidade, todo esse sistema religioso seria derrubado, colocando-se em primeiro plano o materialismo e o marxismo. A ideologia marxista afirma que a sua doutrina está fundada nas ciências, e que unicamente uma contraprova científica poderia obrigá-la a mudar de orientação. O espiritualismo religioso apresenta os seus dogmas, fazendo uso da fé, numa posição de absoluta insuficiência para contradizer as posições do critério científico.

Como se sabe, o marxismo funda-se na ciência experimental. Sobre essa base estabeleceu as suas conclusões materialistas, referentes à origem da vida, opondo-se assim tanto ao idealismo como à religião. Mas o que não devemos esquecer é que esta concepção marxista se baseia também na falta de provas positivas acerca do mundo sobrenatural, sobre o qual repousam a ideia de Deus e do Espírito.

Se o marxismo repele a espiritualidade do homem e da história, não o faz por ódio a essa ideia, já que o pensador marxista possui, sem nenhuma dúvida, uma faculdade intelectual tão esclarecida e elevada como a do idealista e religioso. Consideramos que a repulsa do marxismo às ideias religiosas decorre da falta de provas que pudessem apresentar, tanto o idealismo como a Igreja. Por isso, a escola espírita admite que a cessação da contenda entre o espiritualismo e o materialismo se dará com o reconhecimento e a admissão do fenómeno metapsíquico e mediúnico, único fundamento real que obrigará as correntes materialistas a reconhecerem como verdadeira a existência imortal do Espírito.

Mas a Igreja, e com ela o sistema idealista clássico, repelem o conceito espírita da realidade; a primeira, por considerar o espiritismo como uma causa do demónio, e o segundo, por sustentar um critério nebuloso e ambíguo a respeito da espiritualidade do homem. Não obstante, o curso que vão seguindo as questões morais obriga cada vez mais o pensamento filosófico a recorrer à realidade espiritual, apresentada pelo espiritismo, como o último recurso contra o avanço triunfal do conceito materialista da vida.

Como dizíamos, o marxismo repele toda a ideologia espiritualista por considerar que ela submete o homem económica e socialmente, afundando-o na ignorância e na superstição. Por isso, sustenta que o espiritualismo, além de ser uma irrealidade, tem servido para apoiar os regimes reaccionários e conservadores, e, nunca a liberdade e o direito das classes sem recursos.

Se o realismo marxista não for superado por um realismo espiritual que ultrapasse os seus limites, a consciência materialista continuará a impor-se e serão vãos os protestos dos idealistas e religiosos. As realidades espirituais, se de facto existem, deverão ser expostas ao homem moderno com a mesma objectividade que caracteriza os fenómenos físicos e sociais. Defender ideologias abstractas é unicamente falar ou escrever em favor do partido político ou religioso a que se pertence. Se os espiritualistas querem demonstrar a existência de Deus e da imortalidade da alma, deverão abandonar o método dogmático. Agora, são os factos que devem falar em favor da vida espiritual do homem. Entretanto, prefere-se defender o dogma e o partido, esquecendo-se de que o homem está acima dos interesses de seitas e de grupos.

Chegamos, porém, a uma situação em que o ser humano tem grande necessidade de conhecer a verdade acerca da sua natureza teológica. Aspira, mais do que nunca, apegar-se a ela, para sobreviver ao desolador desastre espiritual da espécie. As doutrinas idealistas e religiosas deverão responder-lhe com verdades, e não com dogmas, já que o homem vale mais do que o partido e a igreja. Por isso, a verdade espiritual, assente sobre os factos, é a única que poderá defendê-lo do perigo social que o rodeia.

É necessário considerar que o homem não deve morrer sem que lhe sejam ensinadas as autênticas verdades espirituais; não deverá ausentar-se deste mundo aceitando verdades que, depois da morte, lhe aparecerão como erros, conservados apenas para a defesa de sistemas religiosos e sociais dominantes.

Não obstante, enquanto as instituições civis e religiosas permanecem quietas, o progresso e a evolução fazem girar a roda do mundo, para comovê-lo desde os fundamentos. Enquanto as organizações religiosas aparentam estabilidade e segurança, a revolução espiritual está acontecendo no âmago das almas. E esta revolução subjectiva é a que promoverá a derrocada dessas organizações, que zelam somente pelos seus privilégios e os seus interesses materiais. Acreditamos que o grito angustioso da alma humana, nos tempos actuais, merece o mais fraternal dos auxílios. Consideramos que o homem merece agora o nosso respeito, mais do que em nenhum outro período da história.

Aqueles que dividiram o mundo em classes, sectores e partidos, deveriam abandonar a sua atitude dogmática e recordar que a humanidade está no direito de conhecer a verdade espiritual, ainda que essa verdade possa afectar as instituições religiosas, já incapazes de oferecer provas sobre o destino escatológico do homem.

marxismo é uma rebelião contra os erros de toda ordem; não é somente uma força de carácter político: ele se dirige a todo o sistema espiritual existente, cansado de admitir as suas erradas doutrinas, cujo único fim é manter nas trevas o pensamento humano. Assim, se a Igreja, e com ela o antigo espiritualismo desejam opor-se ao marxismo, deverão fazê-lo por meio dos factos, demonstrando que o metafísico e o sobrenatural existem, que são realidade. Mas, infelizmente, essas instituições carecem do equipamento necessário, com o qual deveriam sobrepor-se ao conceito materialista do marxismo. Continuam opondo-se ao espiritismo, o que prova que não buscam a salvação espiritual do homem, mas unicamente sobreviver, empregando para isso a força que lhe concedem os Estados materialistas.

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Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, 1ª PARTE, O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo II, O MARXISMO E O ESPÍRITO, 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador Dali)

quinta-feira, 24 de julho de 2014

O Mundo Invisível e a Guerra ~

II – Cenas do Espaço. Visões Reais da Guerra e da Epopeia (II)

|Janeiro de 1915|

Acima de nossas linhas, inúmeras assembleias se realizam e aqueles que as compõem são nomes ilustres que, reunidos, resumem toda a glória dos séculos e toda história da França. Ali está Henrique IV junto a Napoleão; Vercingétorix encontra-se com os capitães de Carlos VII, os generais de Luís XIV e os da Revolução: todos os heróis das nossas lutas do passado e os libertadores da pátria.

Ali também vemos vários chefes ingleses, pois toda a inimizade se extinguiu, existindo em todos esses espíritos um só pensamento e um sentimento único.

Todos têm, por Joana, igual respeito e ninguém lhe toma a dianteira, discutindo-se gravemente os meios de ataque e os procedimentos necessários para essa guerra de trincheiras.

Sobre essa assembleia paira o pensamento de Deus e quando o nobre espírito que a preside abre a sessão, invocando o nome do Pai, todos se inclinam respeitosamente.

Se, para muitos, a França se tornou descrente, ímpia e entregue a todas as correntes do materialismo e da sensualidade, pelo menos no meio desse supremo conselho, onde se acham reunidos os seus mentores invisíveis, impera uma fé ardente. Talvez seja por essa razão que diminuem, até certo ponto, as provações e os horríveis castigos que ela mereceu.

As resoluções que nessa assembleia sejam tomadas serão transmitidas, por intuição e inspiração, aos generais que tenham a missão de executá-las. Para esse fim, cada um dos espíritos presentes a esses conselhos escolherá, dentre os nossos comandantes, aqueles cuja natureza psíquica melhor se harmonize com a sua própria e, por meio de uma vontade persistente, os inspirará no sentido do que ficou resolvido.

Sobre os soldados a influência dos espíritos se exercerá de modo diverso: eles terão por mira, principalmente, acrescentar ao ardor e à veemência, que são qualidades naturais da raça, a perseverança e a tenacidade na luta, tão necessárias no momento actual e que, às vezes, nos faltaram.

Por tudo isso se demonstra que as almas dos mortos não são entidades vagas, indefinidas, como alguns acreditam, pois, atingindo as altas camadas da hierarquia espiritual, elas se convertem em poderes notáveis, em centros de actividades e de vida capazes de exercer a sua acção sobre a humanidade terrestre.

Pela sugestão magnética, podem influir sobre aquele que escolheram, fazendo nele germinar a ideia matriz e incitá-lo ao acto decisivo que vai coroar a sua obra.

É dessa forma que os invisíveis se envolvem nos actos dos vivos, para a concretização do bem e o cumprimento da justiça eterna.

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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, II – Cenas do Espaço, Visões Reais da Guerra e da Epopeia (2 de 3) 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

sexta-feira, 18 de julho de 2014

pensamento espírita argentino ~

CAPÍTULO I

Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história

Que somos? (III)

A psicologia racional ou metafísica preocupou-se apenas em determinar a essência da alma, partindo de hipóteses que não estavam abonadas pelos factos, e uma vez estabelecida, hipoteticamente, a sua natureza espiritual, derivou dela os fenómenos psíquicos, sem preocupar-se em estudá-los experimentalmente e conhecer as leis a que estão sujeitos.

Esta falta de solidez em que se apoia o espiritualismo filosófico clássico deu base à psicologia materialista, que, fundamentada em observações incompletas e no preconceito dos seus sábios, formulou a hipótese contrária, reduzindo os fenómenos psíquicos a fenómenos fisiológicos e fazendo da alma uma complexa função do sistema nervoso central. Esse conceito monista da alma foi expresso em diversas formas, mas sempre como resultante do funcionamento do cérebro. Bem conhecido é o aforismo de Carls Vogt:

“O cérebro segrega o pensamento, como o fígado a bílis.”

e este outro, não menos grosseiro e materialista, atribuído por alguns a Taine:

“Entre a inteligência e o cérebro há a mesma relação que entre a bílis e o fígado ou a urina e os rins.”

Luís Büchner, comentando seu émulo Vogt, opõe à sua concepção de alma outra, ainda que não tão grosseira, não menos gratuita:

“O cérebro é o princípio e a fonte, ou melhor, a causa única do espírito e da inteligência.”

Fundamentada nestas e outras afirmações análogas, não provadas, a psicologia materialista se desenvolveu, chegou ao apogeu e logo à decadência, sem satisfazer a curiosidade científica, arrastando na sua queda muitos espíritos propensos ao materialismo, que acreditaram que o homem já se conhecia a si mesmo, um pedaço de matéria organizada, sem princípio espiritual e sem outra finalidade além dos seus apetites materiais, com a ilusão de uma falsa individualidade psíquica, de uma identidade pessoal não menos falsa e de uma espiritualidade tão ilusória como elas. Há que se convir que o materialismo só pôde ser consequente com o seu postulado psicológico enquanto desprovido de toda a espiritualidade e de toda a consideração moral e aceites as consequências fatais da sua doutrina. Pois, para a filosofia socrática e clássico-espiritualista, a psicologia era o fundamento da moral e da metafísica e conhecer-se a si mesmo, como entidade psicológica, equivalia a regular a vida de acordo com um princípio e uma finalidade superiores; não existindo estes e anulada a alma na complexidade funcional do cérebro, o seu único fim lógico é dar-se a toda a classe de satisfações sensuais, desprezando, por alheia e oposta à sua natureza exclusivamente material, toda espiritualidade e toda moralidade fundada em princípios universais.

Não obstante o seu presumido monismo, a psicologia materialista encontrou na própria fisiologia a sua refutação. Pois, como sustentou o ilustre fisiólogo Claude Bernard, a matéria organizada do cérebro não manifesta sensibilidade e inteligência, nem tem mais consciência do pensamento e dos fenómenos que a matéria bruta de uma máquina, de um relógio, por exemplo, tem dos seus movimentos e da hora que indica, ou os caracteres de imprensa e o papel têm das ideias que veiculam. Diz ele:

“Afirmar que o cérebro segrega o pensamento equivale a sustentar que o relógio segrega a hora ou a ideia do tempo.”

Sustentar, com Büchner, que o cérebro é a fonte ou a causa do espírito, ao lado de ser uma hipótese gratuita, seria assentar o absurdo de que o efeito é superior à causa, que o insensível, o inconsciente, o natural não-inteligente, pode engendrar a sensibilidade, a consciência, a inteligência e a espiritualidade; seria assumir a priori um postulado filosófico que a ciência está muito longe de provar.

A curiosidade científica não tem limites e a ciência não se conforma com saber as coisas de modo superficial nem se estanca com uma doutrina apriorística ou dogmática, qualquer que seja a tese que defenda.

Emparedada entre duas hipóteses contrárias, a psicologia buscou o seu verdadeiro centro de gravidade no positivismo, escola mais científica, mas não isenta de preconceitos e circunscrita por horizontes um tanto restritos, limitados à materialidade das coisas, objecto de um conhecimento exclusivamente empírico.

A psicologia positiva, mais propriamente a psicofisiologia, como a chamou Wilhelm Wundt, não pôde subtrair-se à influência do materialismo e, apesar dos seus reiterados protestos contra Vogt e os seus seguidores, acabou por ser manifestamente materialista. Começou por negar a priori ou apoiando-se numa experiência imediata mas insuficiente, a realidade substancial da alma; e dizemos a priori porque ela não teve como objecto de estudo a entidade psicológica ou espiritual através dos seus fenómenos; ao contrário, rechaçou-a antecipadamente por absurda, rendendo-se à realidade funcional e sensível do mecanismo cerebral: não fez mais do que estudar os fenómenos psicofisiológicos em si mesmos e as suas relações de causas e efeitos, a exterioridade da alma, sem penetrar nem descobrir nela a causa essencial, eficiente, dos fenómenos psíquicos, considerando-a como a síntese de estados de consciência, confundindo-a com o conjunto dos seus fenómenos experimentalmente conhecidos e rechaçando, por sobrenaturais e impossíveis, outros, cuja supranormalidade ultrapassa o limite dos seus conceitos, ou seja, todos aqueles fenómenos psíquicos que se realizam sem intervenção de órgãos sensoriais ou fora do alcance do organismo somático e que contrariam as leis ordinárias da psicofisiologia, tais como os fenómenos de exteriorização da sensibilidade e da motilidade, os de telepatia, clarividência, xenoglossia, premonição, etc., que acabam com o aforismo de Locke e Condillac: nihil est in intellectu quod non plus fuerit in sensu(i) convertido em dogma por empíricos e positivistas.

A chamada psicologia positiva ou empírica, ainda que pareça paradoxal, não fez verdadeira psicologia, porquanto, negando a realidade substancial da alma, reduziu os fenómenos psíquicos a meros fenómenos fisiológicos, os quais, por muito subtis ou espirituais que os considere, por mais que psicólogos empíricos protestem contra a escola materialista, sobre a sua origem psíquica, a sua irredutibilidade e o seu paralelismo com os fenómenos fisiológicos (impossíveis de conceberem-se se não emanam de fontes substancialmente distintas), são sempre produzidos pelo organismo material e caem, indefectivelmente, no conceito materialista expresso por Büchner, quando considera que a alma tem por causa única o cérebro. Longe, pois, de ensinar ao ser humano a conhecer-se a si mesmo, a psicologia empírica o desnatura: atribui ao sistema eixo cérebro-espinhal as faculdades e atributos do espírito, o poder dínamo-psíquico de suas funções e de suas determinações.

Não obstante, e fazendo justiça ao seu método experimental, ainda que negando a alma, contribuiu sem querer e sem pensar para o seu maior conhecimento, pois não é possível conhecer a alma senão através das suas manifestações e dos seus fenómenos. Deste modo e com o auxílio de outras ciências afins, estabeleceu a relação entre a alma e o organismo somático: a fisiologia proporcionou-lhe conhecimentos mais ou menos exactos sobre o funcionamento do sistema nervoso e dos órgãos sensoriais e com a histologia conheceu a estrutura íntima do tecido fibroso e celular; a patologia ilustrou-se acerca das perturbações nervosas e cerebrais e da sua influência nas funções psíquicas.

Por meio das vivisseções ou dissecação dos animais vivos e extirpação total ou parcial dos lóbulos cerebrais, chegou a determinar, anatómica e aproximadamente, as localizações cerebrais; com a psicofísica, estabeleceu as relações quantitativas entre as diversas sensações e os seus antecedentes, isto é, determinou o tempo que transcorre entre a impressão recebida e a sensação experimentada; estabeleceu, enfim, de modo experimental, baseando-se na estrutura íntima do sistema nervoso, no seu funcionamento e nos diversos estados psíquicos do indivíduo, as estreitas relações da alma com o seu organismo, ainda que considerando aquela como o conjunto de fenómenos psíquicos. Graças à psicofisiologia e às suas afins, sabemos hoje como as impressões periféricas, produzidas nos órgãos sensoriais por estímulos exteriores, chegam à alma, depois de percorrer as vias nervosas e passar por seus respectivos centros sensoriais receptores e sofrer noutras as necessárias transformações, até converter-se em recepção, e como uma incitação motriz, originada numa célula ou centro motor cerebral, desce ao músculo que deve colocar em movimento através da medula espinal, seguindo o encadeamento dos neurónios que lhe serve de via nervosa descendente.

Mas todo este processo psicofisiológico, desde a excitação até a percepção, reduz-se, em última análise, a movimentos nervosos, a vibrações celulares e isto é tudo quanto, a rigor, nos pode ensinar a psicologia empírica e, por muito que se esforce, não poderá jamais – prescindindo da alma como entidade psicológica, distinta, superior aos seus fenómenos – demonstrar como as excitações se traduzem em sensações, logo, em percepções, em ideias, pensamentos, juízos, raciocínios, determinações, etc., ainda que para isso apele aos centros de transformação e de associação, pois os centros cerebrais, as células que os constituem, isoladas ou associadas, são tão sensíveis à dor ou ao prazer, quando lhes falta o espírito que as anima, como o aparelho radiofónico o é da emotividade ou o pensamento da mensagem que recebe e têm tanta consciência e inteligência da função que desempenham como, no caso citado por Claude Bernard, o relógio tem da hora que marca.

Se falta a unidade psicológica, o eu sensível e perceptor, não há sensação nem percepção possíveis e a chamada consciência psicológica, “coordenação de estados”, ou de “certo número de estados” que postula Ribot, é uma palavra sem fundamento, um nome para expressar algo impreciso, que não constitui unidade, senão multiplicidade ou, quando muito, um conceito vago, que se anula num mar de fenómenos gerados pela inconsciência cerebral. E dizemos que se anula num mar de fenómenos porque, num conceito positivista, a individualidade psicológica não tem existência real, se desvanece no conjunto dos fenómenos psíquicos constantemente renovados; o que, em tal conceito, se chama consciência individual é um processo de estados de consciência ou de consciências coordenadas e sucessivas que dão a ilusão de um indivíduo: o eu é uma abstracção pura ou, como diz J. Patrascoiu, um simples “nome”, sem entidade nem substância espiritual, uma palavra, enfim, análoga às frases “espírito das massas”, “consciência do povo” e outras que encerram conceitos abstractos, heterogéneos, com as quais os políticos e sociólogos sintetizam a psicologia colectiva que, por assim ser, carece de unidade psicológica verdadeira.

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(i) “Nada existe na inteligência que antes não tenha passado pelos sentidos”. (N.T.)



Manuel S. PorteiroEspiritismo Dialéctico, CAPÍTULO I Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história – Que somos? (III), 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Personajes, Pintura de Josefina Robirosa)

domingo, 13 de julho de 2014

Corpo fluídico | agénere ou aparição tangível ~


Capítulo Primeiro
AGÉNERE OU APARIÇÃO TANGÍVEL (II)

Aqui, porém, é preciso esclarecer a aparente contradição entre uma afirmativa anterior de Allan Kardec e outra de São Luiz. Disse Kardec que o agénere "pode ter longa duração, conforme a necessidade... " enquanto São Luiz afirmou que os agéneres "são excessivamente raros e jamais têm um carácter de permanência". O que quer dizer Kardec com longa duração? A resposta parece estar com o próprio Kardec ao dizer que esta longa duração se dá quando o Espírito precisa "estabelecer relações sociais com um ou vários indivíduos". Ou seja, uma aparição que inicialmente duraria alguns minutos poderia durar hora ou mais, "conforme a necessidade". O que não parece correcto seria entender que, por "longa duração", quisesse Kardec dar um carácter de permanência à aparição. As suas colocações posteriores sobre o assunto também encaminham para essa conclusão, uma vez que estão de acordo pleno com o que afirmou São Luiz sobre ser o agénere um facto raro e rápido.

Ainda pelo diálogo transcrito, fica-se sabendo que o agénere perfeito dificilmente pode ser reconhecido como tal, "a não ser pelo desaparecimento inesperado". Dessa forma, ele pode ser confundido com qualquer pessoa encarnada. "Um Espírito cujo corpo fosse inteiramente visível e palpável - diria Kardec - dar-nos-ia a aparência de um ser humano, poderia conversar connosco, sentar-se no nosso lar, como qualquer visita, pois que o tomaríamos como um de nossos semelhantes."

Outra afirmativa - e surpreendente - feita por São Luiz é a de que os Espíritos que geralmente tomam a aparência de encarnados são das classes inferiores e o seu objectivo é quase sempre o mal. Toma como exemplo o facto de que as manifestações físicas são produzidas por Espíritos inferiores. Falando em tese, porém, diz que, havendo um fim útil, os bons Espíritos também podem tomar aparência corporal. Isso explicaria os milhares de casos de "assombração" que as gentes, principalmente do interior, conhecem e contam.

Em O Livro dos Médiuns, na questão número 24, Kardec pergunta e os Espíritos respondem: "Os Espíritos que aparecem não podem ser agarrados e são inacessíveis ao tacto? - Não podem ser agarrados como em sonho, no seu estado normal; entretanto podem produzir impressão ao acto e deixar traços da sua presença e mesmo, em certos casos, tornarem-se momentaneamente tangíveis, o que prova que entre eles e vocês há uma matéria".

Mas é em A Génese que o Codificador trata do assunto com profundidade, principalmente em dois capítulos: o XIV, "Os Fluidos", e o XV, "Os milagres do Evangelho"; no primeiro, aborda a questão mais pelo seu aspecto técnico e, no segundo, estuda-a sob a viabilidade de Jesus ter tido um corpo fluídico. Ficaremos no presente capítulo com "Os Fluidos", deixando para outra oportunidade a questão do corpo de Jesus.

A compreensão dos agéneres assenta em três pontos básicos: o Espírito como agente, o perispírito como intermediário e os fluídos como matéria necessária à aparição e a sua tangibilidade. Estudando esses dois últimos perispírito e fluidos - Kardec dá a medida exacta dos agéneres. Eis como o mestre vê a questão:

"O perispírito é invisível para nós no seu estado normal; porém, como é formado de matéria etérea, o Espírito pode, em certos casos, lhe fazer receber, por um acto de sua vontade, uma modificação molecular que o torna momentaneamente visível. É assim que se produzem as aparições, as quais, como também outros fenómenos, não estão fora das leis da natureza. Esse fenómeno não é mais extraordinário que o do vapor, o qual é invisível quando é muito rarefeito, e torna-se visível quando é condensado.

"Segundo o grau de condensação do fluido perispirital - prossegue Kardec -, a aparição é algumas vezes vaga e vaporosa; outras vezes é mais nitidamente definida; e outras, enfim, tem todas as aparências da matéria tangível; pode mesmo chegar à tangibilidade real, ao ponto em que se pode duvidar da natureza do ser que temos diante de nós.

"As aparições vaporosas são frequentes - é ainda Kardec quem fala - e sucede muitas vezes que indivíduos assim se apresentam às pessoas a quem têm afeição. As aparições tangíveis são mais raras, embora haja delas numerosos exemplos, perfeitamente autênticos. Se o Espírito deseja fazer-se conhecido, dará ao seu envoltório todos os sinais exteriores que tinha enquanto vivia."

Observe-se, por esta transcrição, que Kardec, oito anos depois do diálogo travado com São Luiz sobre os agéneres, pois que se passaram estes tempos todos desde a publicação do referido diálogo em 1859 e o lançamento de A Génese, em 1868, está perfeitamente concorde com as afirmações do Espírito naquela oportunidade, fornecendo, ainda, outros detalhes que facilitam a compreensão do assunto. A questão da raridade das aparições tangíveis e a sua semelhança com os encarnados são detalhes ditos por São Luiz e repetidos, aqui, por Kardec. Prossigamos com o Codificador:

"Deve notar-se que as aparições tangíveis não têm senão as aparências da matéria carnal, porém não as suas qualidades; em razão de sua natureza fluídica, não podem ter a mesma coesão, porque, na realidade, não se trata de carne. Elas se formam instantaneamente e do mesmo modo desaparecem ou se evaporam pela desagregação das moléculas fluídicas. Os seres que se apresentam nestas condições não nascem nem morrem como os outros homens; são vistos, e depois não são vistos mais, sem saber de onde vieram, como vieram, nem onde vão; não se poderia matá-los, nem os acorrentar, nem os prender, pois que não possuem o corpo carnal; os golpes que lhes fossem infligidos o seriam no vácuo.

"Tal é o carácter dos agéneres - prossegue o Codificador - com os quais podemos tratar, sem duvidar do que sejam, mas que jamais demoram por muito tempo, e não podem tornar-se comensais habituais de uma casa, nem figurar entre os membros de uma família.

"Aliás - assevera -, há em toda a sua pessoa, nos seus ademanes, algo de estranho e de insólito que se relaciona com a materialidade e com a espiritualidade: o seu olhar, vaporoso e penetrante ao mesmo tempo, não tem a nitidez do olhar dos olhos de carne; a sua linguagem, breve e quase sempre sentenciosa, nada tem do brilho e da volubilidade da linguagem humana; a sua aproximação faz experimentar uma sensação particular indefinível de surpresa, que inspira uma espécie de medo, e embora os tomemos por indivíduos iguais aos demais do mundo, involuntariamente se diz: eis um ser singular."

Esta mostra permite verificar, já, a perfeita coerência entre Kardec e São Luiz, no que diz respeito ao corpo fluídico. Curiosamente, e de maneira toda especial e própria, Kardec dá elasticidade às informações de São Luiz, expandindo o raciocínio, o que possibilita ao estudioso formar uma ideia mais precisa sobre as particularidades do agénere. O agénere é um ser que se parece com o encarnado, a ponto de ser confundido com este, mas o seu corpo não possui as qualidades do corpo de carne. Assim, do mesmo modo que aparece de surpresa, surpreendentemente ele desaparece. O agénere não nasce e não morre. Não se pode absolutamente querer matá-lo, pois "os golpes que lhes fossem infligidos o seriam no vácuo". Devido a essas e outras particularidades, os agéneres não "podem se tornar comensais habituais de uma casa, nem figurar entre os membros de uma família", ou como diria São Luiz, o agénere jamais teria "carácter de permanência". Mas para Kardec, apesar de toda a semelhança que possa existir entre um agénere perfeito e um encarnado, o agénere será sempre "um ser singular", pelas características do seu corpo, por sua linguagem, por seu olhar e até pela "espécie de medo" que inspira àquele de quem se aproxima, apesar dos pesares, porque "há em toda a sua pessoa, nos seus ademanes, algo de estranho e de insólito", alguma coisa próxima da matéria e do espírito, pairando entre um e o outro.

As materializações, das quais o agénere está muito próximo, dão, por seu turno, provas dessas diferenças no olhar, na voz, nos ademanes, etc. Espíritos que se materializam, chegam a aparentar um perfeito ser humano, mas ainda assim com diferenças que permitem separá-los desses últimos. Em todo caso, a grande semelhança entre o agénere perfeito e o encarnado faz com que inúmeras pessoas os confundam, principalmente se estiverem despidas do senso de observação, de qualquer agudez crítica.

Em resumo, o agénere é um ser fluídico, tangível, que se apresenta com bastante raridade e cuja existência é de curta duração. Os estudos de Kardec, sob a assessoria dos Espíritos, conduzem o raciocínio para essa definição. Se alguma dúvida existia nas palavras de Kardec, em 1859, quando falou do assunto na Revista Espírita e asseverou que essa aparição "corpórea pode ter longa duração", essa dúvida desapareceu na continuidade do estudo, culminando com a publicação do livro A Génese em 1868.

Há outros aspectos que podem ser melhor desenvolvidos, como por exemplo os referentes aos fluidos de que se servem os Espíritos para se materializarem, os processos da materialização, as suas dificuldades, etc. Como, porém, o escopo deste estudo visa apenas mostrar o desenvolvimento e posicionamento final de Kardec relativamente à natureza dos agéneres, encerramos aqui o assunto, podendo o estudioso prossegui-lo noutras fontes.

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Wilson GarciaO Corpo Fluídico, Capítulo Primeiro – AGÉNERE OU APARIÇÃO TANGÍVEL, 2 de 2, 2º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Sem título, pintura de Josefina Robirosa)

terça-feira, 8 de julho de 2014

Inquietações Primaveris ~

Os Vivos e os Mortos ~ |

Desconhecendo a complexidade do processo da vida, o homem terreno sempre se apegou, principalmente nas civilizações ocidentais, ao conceito negativo da morte como frustração total de todas as possibilidades humanas. Não há nenhuma novidade na expressão sartreana que se propagou por toda a cultura moderna: “O homem é uma paixão inútil.” Foi sempre esse o conceito do homem na cultura ocidental, voltada exclusivamente para o imediatismo. Sartre não revela nenhuma perspicácia filosófica nesse simples endosso cultural de uma posição comum do homo faber ante o inevitável da morte.

Mesmo nas civilizações orientais, impregnadas de misticismo, os homens comuns nunca saíram desse plano inferior da consideração da morte como destruição pura e simples.

A teoria das almas viajoras, de Plotino, que substituiu no Neo-Platonismo a teoria da metempsicose egípcia, não chegou a popularizar-se.

As hipóstases espirituais que essas almas franquearam, depois da morte, pareciam fantásticas, oriundas apenas da teoria platónica dos Mundos das Ideias e do desejo instintivo de sobrevivência que domina o homem.

Mas as pesquisas científicas da natureza humana, particularmente no campo dos fenómenos paranormais, chegaram a provas incontestáveis da sobrevivência do homem após a morte.

Essa sobrevivência implica naturalmente a existência de planos espirituais (as hipóstases) em que a vida humana prossegue.

O desenvolvimento da Física nos nossos dias levou os cientistas à descoberta da antimatéria, das dimensões múltiplas de um Universo que considerávamos apenas tridimensional, à conquista dos antiátomos e antipartículas atómicas que podem ser elaboradas em laboratórios, como têm sido elaborados.

A existência das hipóstases já não é mais uma suposição, mas uma verdade comprovada.

corpo bioplásmico do homem, bem como o dos vegetais e dos animais, foi tecnologicamente comprovado.

Os mortos não podem mais ser considerados mortos.

O que morreu foi apenas o corpo carnal dessas criaturas, que Deus não criou como figuras de guinol para uma rápida passagem pela Terra.

Seria estranho e até mesmo irónico que, num Universo em que nada se perde, tudo se transforma, o homem fosse a única excepção perecível, sujeito a desaparecer com os seus despojos.

A maior conquista da evolução na Terra é o homem, criado, segundo o consenso geral, na tradição dos povos mais adiantados, feito à imagem e semelhança de Deus.

Que estranha decisão teria levado o Criador a negar a esse ser a imortalidade que conferiu a todas as coisas e a todos os seres, desde os mais inferiores e aparentemente inúteis?

Há uma Economia na Natureza que seria contrariada por essa medida de excepção.

Hoje, a verdade se define, cada vez mais comprovada e inegável, aos nossos olhos mortais:

O homem é imortal.

Ao morrer na Terra, transfere-se para os planos de matéria mais subtil e rarefeita, em que continua a viver com mais liberdade e maiores possibilidades de realizações, certamente inconcebíveis aos que ficam no plano terreno.

O espírito encarnado, que, lutando no fundo de um oceano de ar pesado, consegue fazer tantas coisas, por que deixaria de agir com mais interesse e visão elevada num plano em que tudo milita a seu favor?

Enganam-se os que pensam nos mortos como mortos.

Eles estão mais vivos do que nós, dispõem de visão mais penetrante que a nossa, são criaturas mais definidas do que nós, e podem ver-nos, visitar-nos e comunicar-se connosco com mais facilidade e naturalidade.

É preciso que não nos esqueçamos deste ponto importante: os homens são espíritos e os espíritos nada mais são do que homens libertos das injunções da matéria.

Nós carregamos um fardo, eles já o alijaram das suas costas.

Temos de pensar neles como criaturas vivas e actuantes, como realmente o são.

Eles não gostam das nossas tristezas, mas sentem-se felizes com a nossa alegria.

Não querem que pensemos neles de maneira triste porque isso os entristece.

Encontram-se num mundo em que as vibrações mentais são facilmente perceptíveis e desejam que os ajudemos com pensamentos de confiança e alegria.

Não temos o direito de perturbá-los com as nossas inquietações terrenas, em geral nascidas do nosso egoísmo e do nosso apego.

Milhões de manifestações de entidades superiores, de espíritos conhecidos ou não, mas sempre identificados, ocorrem no mundo continuamente, provando a sobrevivência activa dos que passaram para o outro mundo e lá não nos esqueceram.

Desde a época das cavernas, das construções lacustres, passando pelas vinte e tantas grandes civilizações que se sucederam na História, os mortos se comunicam com os vivos e estes, não raro, procuram instruir-se com eles.

O intercâmbio é normal entre os dois mundos e uma vastíssima biblioteca foi produzida pelos sábios antigos e modernos que estudaram o problema e confirmaram a sobrevivência.

Mas, na proporção em que os métodos científicos se desenvolveram, na batalha das Ciências contra as superstições do passado multimilenar, a própria aceitação geral dessa verdade levantou maiores suspeitas no meio científico.

As raízes amargas das religiões da morte, que viveram sempre e vivem ainda hoje vampirizando o pavor da morte em todos os quadrantes do planeta, criaram novos empecilhos para o esclarecimento do problema.

Ainda hoje, depois das provas exaustivas, milhões de vezes confirmadas pelos mais respeitáveis investigadores, a nossa cultura pretensiosamente rejeita a fragrante realidade e pesquisada fenomenologia de todos os tempos, como se ela não passasse de suposições inverificáveis.

Qual a razão dessa atitude irracional em face de um problema tão grave, da maior importância para a Teoria do Conhecimento e particularmente para a adequação do pensamento à realidade, objectivo supremo da Filosofia?

A nossa cultura sofreu até agora de uma espécie de esquizofrenia catatónica, ignorando problemas essenciais e entregando-se à agitação das actividades pragmáticas.

Como diz o brocardo popular: “Gato escaldado tem medo de água fria.” A tremenda e criminosa oposição da Igreja ao desenvolvimento livre da Ciência, com o delírio pirovássico dos tempos inquisitoriais, com as suas fogueiras assassinas, deixou as suas marcas de sangue e fogo no pêlo, no couro e na carne viva do gato escaldado.

cultura é um organismo conceptual vivo, nascido das experiências humanas e dotado do mesmo instinto de conservação dos organismos vivos.

Os pêlos do gato escaldado se eriçam à menor aproximação de questões metafísicas.

Remy Chauvin deu a esse fenómeno o nome apropriado de alergia ao futuro.

Essa alergia, como demonstra, tem as suas origens históricas no período inquisitorial.

Só há um responsável por essa doença cultural: a Igreja, até hoje em actividade constante na luta contra o desenvolvimento cultural para asfixiar os movimentos que possam atentar contra a sua arcaica posição dogmática.

Por isso assistimos, ainda hoje, às vésperas da era cósmica, ao doloroso espectáculo de padres irados, particularmente nos países subdesenvolvidos, de cultura incipiente, desferindo os raios da sua indignação insolente contra as conquistas parapsicológicas, mas, ao mesmo tempo, com a sagacidade instintiva dos sacerdotes de todos os tempos e de todas as latitudes da Terra, tirando as vantagens possíveis dessa actividade histriónica na cobrança, a tanto por cabeça, dos cursos de parapsicologia dados ao povo com o tempero dos sofismas e mentiras habituais.

Devemos a isso o nosso atraso brasileiro de quarenta anos no campo das investigações e do estudo universitário do paranormal.

Em compensação, padres e frades entregam-se livremente à exploração de clínicas parapsicológicas, servidos por médicos iludidos ou bem integrados na luta contra o avanço da cultura na nossa terra.

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Herculano Pires, José – Educação para a Morte, Os Vivos e os Mortos, 1 de 2, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

terça-feira, 1 de julho de 2014

a vida do ser consciente é uma vida de solidariedade e liberdade. Quanto mais sobe, tanto mais se sente viver e sofrer em todos e por todos ~

alma humana...

A alma, dissemos, vem de Deus; é, em nós, o princípio da inteligência e da vida. Essência misteriosa, escapa à análise, como tudo quanto dimana do Absoluto. Criada por amor, criada para amar, tão mesquinha que pode ser encerrada numa forma acanhada e frágil, tão grande que, com um impulso do seu pensamento, abrange o infinito, a alma é uma partícula da essência divina projectada no mundo material.

Desde a hora em que caiu na matéria, qual foi o caminho que seguiu para remontar até ao ponto actual da sua carreira? Precisou passar por vias escuras, revestir formas, animar organismos que deixava ao sair de cada existência, como se faz com um vestuário inútil. Todos esses corpos de carne pereceram, o sopro dos destinos dispersou-lhes as cinzas, mas a alma persiste e permanece na sua perpetuidade, prossegue a sua marcha ascendente, percorre as inumeráveis estações da sua viagem e dirige-se para um fim grande e apetecível, um fim que é a perfeição.

A alma contém, no estado virtual, todos os germens dos seus desenvolvimentos futuros. É destinada a conhecer, a adquirir e possuir tudo. Como, pois, poderia ela conseguir tudo isso numa única existência? A vida é curta e longe está a perfeição! Poderia a alma, numa vida única, desenvolver o seu entendimento, esclarecer a razão, fortificar a consciência, assimilar todos os elementos da sabedoria, da santidade, do génio? Para realizar os seus fins, tem de percorrer, no tempo e no espaço, um campo sem limites. É passando por inúmeras transformações, no fim de milhares de séculos, que o mineral grosseiro se converte em diamante puro, refractando mil cintilações. Sucede o mesmo com a alma humana.

O objectivo da evolução, a razão de ser da vida não é a felicidade terrestre, como muitos erradamente crêem, mas o aperfeiçoamento de cada um de nós, e esse aperfeiçoamento devemos realizá-lo por meio do trabalho, do esforço, de todas as alternativas da alegria e da dor, até que nos tenhamos desenvolvido completamente e elevado ao estado celeste. Se há na Terra menos alegria do que sofrimento, é que este é o instrumento por excelência da educação e do progresso, um estimulante para o ser, que, sem ele, ficaria retardado nas vias da sensualidade. A dor, física e moral, forma a nossa experiência. A sabedoria é o prémio.

Pouco a pouco a alma se eleva e, conforme vai subindo, nela se vai acumulando uma soma sempre crescente de saber e virtude; sente-se mais estreitamente ligada aos seus semelhantes; comunica mais intimamente com o seu meio social e planetário. Elevando-se cada vez mais, não tarda a ligar-se por laços pujantes às sociedades do espaço e depois ao Ser universal.

Assim, a vida do ser consciente é uma vida de solidariedade e liberdade. Livre dentro dos limites que lhe assinalam as leis eternas, faz-se o arquitecto do seu destino. O seu adiantamento é obra sua. Nenhuma fatalidade o oprime, salvo a dos próprios actos, cujas consequências nele recaem; mas não pode desenvolver-se e medrar senão na vida colectiva com o recurso de cada um e em proveito de todos. Quanto mais sobe, tanto mais se sente viver e sofrer em todos e por todos. Na necessidade de se elevar a si mesmo, atrai a si, para fazê-los chegar ao estado espiritual, todos os seres humanos que povoam os mundos onde viveu. Quer fazer por eles o que por ele fizeram os seus irmãos mais velhos, os grandes Espíritos que o guiaram na sua marcha.

A lei de justiça requer que, por sua vez, sejam emancipadas, libertadas da vida inferior todas as almas. Todo o ser que chega à plenitude da consciência deve trabalhar para preparar aos seus irmãos uma vida suportável, um estado social que só comporte a soma de males inevitáveis. Esses males, necessários ao funcionamento da lei de educação geral, nunca deixarão de existir no nosso mundo; representam uma das condições da vida terrestre. A matéria é o obstáculo útil; provoca o esforço e desenvolve a vontade; contribui para a ascensão dos seres, impondo-lhes necessidades que os obrigam a trabalhar. Como, sem a dor, havíamos de conhecer a alegria; sem a sombra, apreciar a luz; sem a privação, saborear o bem adquirido, a satisfação alcançada? Eis aqui a razão por que encontramos dificuldades de toda a sorte em nós e em volta de nós.

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LÉON DENIS, O Problema do Ser, do Destino e da Dor,  IX – Evolução e finalidade da alma, fragmento.
(imagem de contextualização: Head of Divine Vengeance, pintura de Pierre-Paul Prud'hon)