quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

~ o estudo do princípio espiritual é experimental ~

Se a questão do homem espiritual permaneceu até hoje no estado de teoria, foi porque faltaram os meios de observação directa que tivemos para constatarmos o estado do mundo material e o campo ficou aberto às concepções do espírito humano.

Enquanto o homem não conheceu as leis que regem a matéria e não pôde aplicar o método experimental, errou de teoria em teoria sobre o mecanismo do Universo e da formação da Terra.

Passou-se na ordem moral como na ordem física; para fixar as ideias, faltou o elemento essencial: o conhecimento das leis do princípio espiritual. Este conhecimento estava reservado à nossa época, assim como o das leis da matéria foi obra dos dois últimos séculos.

Até hoje, o estudo do princípio espiritual, compreendido na metafísica, tinha sido puramente especulativo e teórico; no Espiritismo é sobretudo experimental. Com a ajuda da faculdade mediúnica, hoje mais desenvolvida e sobretudo generalizada e mais bem estudada, o homem encontrou-se na posse de um novo instrumento de observação. A capacidade mediúnica foi, para o mundo espiritual, o que o telescópio foi para o mundo astral e o microscópio para o mundo dos infinitamente pequenos; permitiu explorar, estudar, por assim dizer de visu, as suas relações com o mundo corporal; isolar no homem vivo o ser inteligente do ser material e vê-los agir separadamente. Uma vez em relação com os habitantes deste mundo, podemos acompanhar a alma na sua marcha ascendente, nas suas migrações, nas suas transformações; pudemos enfim estudar o elemento espiritual. Eis o que faltava aos anteriores comentadores do Génesis para o compreenderem e lhe corrigirem os erros.

Estando o mundo espiritual e o mundo material em contacto constante, são solidários um com o outro; ambos têm a sua acção na Génese. Sem o conhecimento das leis que regem o primeiro, seria tão impossível continuar uma Génese completa, como a um estatuário dar vida a uma estátua. Só hoje, apesar de nem a ciência material nem a ciência espiritual terem dito a última palavra, o homem possui os dois elementos necessários para fazer luz sobre este imenso problema. Eram absolutamente necessárias estas duas chaves para se chegar a uma solução, mesmo que aproximada.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo IV, PAPEL DA CIÊNCIA NA GÉNESE números de 15 a 17, tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de ilustração: A Criação de Adão, detalhe do tecto da Capela Sistina, por Michelangelo)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

O sono e a morte transportam-nos, alternadamente ~

É assim que muitas questões insolúveis para as outras escolas são resolvidas pela doutrina das vidas sucessivas. As fortíssimas objecções com que o cepticismo e o materialismo têm feito brechas no edifício teológico – o mal, a dor, a desigualdade dos méritos e das condições humanas, a injustiça aparente da sorte: todos esses tropeços se desvanecem perante a Doutrina dos Espíritos.

Entretanto, uma dificuldade subsiste, uma forte objecção ergue-se contra ela. Se já vivemos no espaço, dizem, se outras vidas precederam ao nascimento, por que de tal perdemos a recordação?

Esta objecção, de aparência irrespondível, é fácil de ser destruída.

A memória das coisas que viveram, dos actos que se cumpriram, não é condição necessária da existência.

Ninguém se lembra do tempo passado no ventre materno ou mesmo no berço. Poucos homens conservam a memória das impressões e dos actos da primeira infância. Entretanto, essas são partes integrantes da nossa existência actual. Pela manhã, ao acordarmos, perdemos a recordação da maior parte de nossos sonhos, embora, no momento, eles nos tenham parecido outras tantas realidades. Só nos restam sensações grosseiras e confusas, que o Espírito experimenta quando recai sob a influência material.

Os dias e as noites são como as nossas vidas terrestres e espirituais, e o sono parece tão inexplicável quanto a morte. O sono e a morte transportam-nos, alternadamente, para meios distintos e para condições diferenteso que não impede à nossa identidade de manter-se e persistir através desses estados variados.

No sono magnético, o Espírito, desprendido do corpo, recorda-se de coisas que esquecerá ao voltar à carne, cujo encadeamento, não obstante, ele tornará a apanhar, recobrando a lucidez. Esse estado de sono provocado desenvolve nos sonâmbulos aptidões especiais que, em vigília, desaparecem, abafadas, aniquiladas pelo invólucro corpóreo.

Nessas diversas condições, o ser físico parece possuir dois estados de consciência, duas fases alternadas de existências que se encadeiam e se envolvem uma na outra. O esquecimento, como espessa cortina, separa o sono do estado de vigília, assim como divide cada vida terrestre das existências anteriores e da vida dos céus.

Se as impressões que a alma sente durante o decurso da vida actual, no estado de desprendimento completo, seja pelo sono natural ou pelo sono provocado, não podem ser transmitidas ao cérebro, deve compreender-se que as recordações de uma vida anterior sê-lo-iam mais dificilmente ainda. O cérebro não pode receber e armazenar senão as impressões comunicadas pela alma em estado de cativeiro na matéria. A memória só saberia reproduzir o que ele tem registado.

Em cada renascimento, o organismo cerebral constitui para nós uma espécie de livro novo, sobre o qual se gravam as sensações e as imagens. Voltando à carne, a alma perde a memória de quanto viu e executou no estado de liberdade, e só tornará a lembrar-se de tudo quando abandonar de novo a sua prisão temporária.

O esquecimento do passado é a condição indispensável de toda prova e de todo progresso. O nosso passado guarda as suas manchas e nódoas. Percorrendo a série dos tempos, atravessando as idades de brutalidade, devemos ter acumulado bastantes faltas, bastantes iniquidades. Libertos apenas ontem da barbaria, o peso dessas recordações seria acabrunhador para nós. A vida terrestre é, algumas vezes, difícil de suportar; ainda mais o seria se, ao cortejo dos nossos males actuais, acrescesse a memória dos sofrimentos ou das vergonhas passadas.

A recordação de nossas vidas anteriores não estaria também ligada à do passado dos outros?

Subindo a cadeia de nossas existências, o entrecho de nossa própria história, encontraríamos o vestígio das acções de nossos semelhantes.

As inimizades perpetuar-se-iam; as rivalidades, os ódios e as discórdias agravar-se-iam de vida em vida, de século em século. Os nossos inimigos, as nossas vítimas de outrora, reconhecer-nos-iam e estariam a perseguir-nos com sua vingança.

Bom é que o véu do esquecimento nos oculte uns aos outros e que, apagando momentaneamente de nossa memória penosas recordações, nos livre de um remorso incessante. O conhecimento das nossas faltas e as suas consequências, erguendo-se diante de nós como ameaça medonha e perpétua, paralisaria os nossos esforços, tornaria estéril e insuportável a nossa vida.

Sem o esquecimento, os grandes culpados, os criminosos célebres estariam marcados a ferro em brasa por toda a eternidade. Vemos os condenados da justiça humana, depois de sofrida a pena, serem perseguidos pela desconfiança universal, repelidos com horror por uma sociedade que lhes recusa lugar no seu seio, e assim muitas vezes os atira ao exército do mal. Que seria se os crimes do passado longínquo se desenhassem aos olhos de todos?

Quase todos temos necessidade de perdão e de esquecimento. A sombra que oculta as nossas fraquezas e misérias conforta-nos o ser, tornando-nos menos penosa a reparação. Depois de termos bebido as águas do Letes, renascemos mais alegremente para uma vida nova e desvanecem-se os fantasmas do passado. Transportando-se para um meio diferente, despertamos para outras sensações, abrem-se-nos outras influências, abandonamos com mais facilidade os erros e os hábitos que outrora nos retardaram a marcha. Renascendo sob a forma de criança, a alma culpada encontra em torno de si o auxílio e a ternura necessários à sua elevação. Ninguém cuida em reconhecer nesse ser fraco e encantador o Espírito vicioso que vem resgatar um passado de faltas.

Entretanto, para certos homens esse passado não está absolutamente apagado. Um sentimento confuso do que foram jaz no fundo de sua consciência. É a origem das intuições, das ideias inatas, das recordações vagas e dos pressentimentos misteriosos, como eco enfraquecido dos tempos decorridos. Consultando essas impressões, estudando-se a si mesmos com atenção, não seria impossível reconstituir esse passado, se não nas suas minúcias, ao menos nos seus traços principais.

Porém, no termo de cada existência, essas recordações longínquas ressuscitam em tropel e saem da sombra. Avançamos passo a passo, tateando na vida; vem a morte e tudo se esclarece. O passado explica o presente e o futuro ilumina-se mais claramente. Cada alma, voltando à vida espiritual, recobra a plenitude das suas faculdades. Para ela começa, então, um período de exame, de repouso, de recolhimento, durante o qual se julga a si mesma e avalia o caminho percorrido. Recebe opiniões e conselhos de Espíritos mais adiantados. Guiada por eles, tomará resoluções viris e, na ocasião propícia, escolhendo um meio favorável, baixará a um novo corpo, a fim de se melhorar pelo trabalho e pelo sofrimento.

Voltando à carne, a alma perderá ainda a memória das suas vidas anteriores e bem assim a recordação da vida espiritual, a única verdadeiramente livre e completa, perto da qual a morada terrestre lhe pareceria medonha. Longa será a luta, penosos os esforços necessários para recuperar a consciência de si mesma e as suas potências ocultas; porém, conservará sempre a intuição, o sentimento vago das resoluções tomadas antes de renascer.

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LÉON DENIS, Depois da Morte, Parte Segunda Os Grandes Problemas – Objecções.
(imagem de ilustração: Retrato de uma criança_1941, pintura de Edgar Maxence)

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O peregrino sobre o mar de névoa ~

O Desenvolvimento Científico

A preguiça mental e a atracção magnética do passado encarceradas em si mesmas mostram-se incapazes de um gesto de grandeza em favor de realizações urgentíssimas. Por isso a dor explode por toda a parte, em vagalhões enfurecidos. A dor aumentará, porque só ela pode arrancar os insensíveis de suas tocas. As leis da evolução são implacáveis e nada os deterá enquanto os homens não acordarem para o cumprimento dos seus deveres morais e espirituais. A Ciência Espírita está nas nossas mãos e nos indica o roteiro a seguir. Mas nós a envolvemos em dúvidas e debates inúteis, ao invés de nos alistarmos em suas fileiras e de nos entregarmos generosamente ao seu estudo, à sua divulgação e à sua prática. Os homens de recursos financeiros julgam-se agraciados por Deus para viverem à tripa forra, esquecidos das multidões de ignorantes, muitos deles ansiosos por elevação cultural, mas presos às grilhetas da chamada sociedade de consumo, que na verdade está consumindo o próprio planeta. Os privilégios sociais de uma ordem social estabelecida pela força e não pelo amor lhes dão a ilusão da graça divina. Desapareceram do mundo os antigos messenas, que punham as suas fortunas ao serviço da colectividade. Preferem socorrer os pobres com as suas migalhas de sopas e assistências precárias, julgando que assim aumentam o seu crédito nos Bancos da Eternidade. Não jogam com a caridade, mas com os cálculos de juros que não existem no Além. São os novos vendilhões do Templo, os cambistas da caridade fácil e supostamente rendosa. Chegarão ao Além de mãos vazias e manchadas pelas nódoas da ambição desmedida e da insensibilidade moral. A Ciência Espírita necessita de escolas, de Universidades, de bibliografias especializadas. Não pode contar com os recursos comuns da simonia, em que se banqueteiam as religiões pomposas e mentirosas. Não existe no mundo uma única Universidade Espírita, em que a Ciência Admirável possa manter e desenvolver os seus trabalhos de pesquisa científica. De vez em quando, um potentado se sente tocado pela intuição de uma entidade benévola e faz doações generosas a um médium ou a uma instituição de assistência social. O médium, de honesto e sensível, passa a doação para outras instituições de caridade. Os serviços culturais continuam à míngua, sustentados apenas pelos que dão o seu tempo, a sua vida e o seu sangue para a sustentação da cultura espírita. Certas instituições gastam os seus recursos em aviltamento da Doutrina, com a produção de obras espúrias, ao serviço da mistificação. Respondem por essa situação precária da Ciência Espírita todos os que preferem os juros bancários ao desenvolvimento cultural.

A Ordem Divina é regida por Deus, mas a ordem humana é dominada pelo homem, no aprendizado da vida terrena. Se não conseguirmos despertar os homens para o urgente desenvolvimento da Ciência Espírita, nada mais teremos do que a cultura terrena em que vivemos, de olhos fechados para o alvorecer dos novos tempos. Não veremos o raiar da Era cósmica, porque teremos voluntariamente enterrado a cabeça na areia, em pleno deserto, na hora das tempestades. E o que faremos, então, de nossos parcos conhecimentos, de nossa ignorância espiritual, ante a proliferação das Universidades das subculturas materialistas?

Coloquemos ainda, se possível, de maneira mais clara e objectiva esta situação. O Instituto Espírita de Educação, fundado em São Paulo pelo II Congresso Estadual de Educação Espírita, funcionou por alguns anos, tendo formado três turmas de ginasianos, com reconhecimento oficial. Está actualmente fechado, lutando para a conclusão do seu edifício no Itaim. Sofre essa interrupção altamente prejudicial por falta de recursos. O Clube dos Jornalistas Espíritas, com os seus cursos de Espiritismo, Filosofia Espírita e Parapsicologia, depois de vinte anos de funcionamento, teve de fechar as suas portas por falta de recursos. O Instituto de Cultura Espírita do Brasil, no Rio de Janeiro, mantém o seu funcionamento com dificuldades, em local cedido por um Centro Espírita. Carece de recursos e só funciona graças à abnegação de Deolindo Amorim, seu fundador. Institutos Estaduais que surgiram por sua inspiração lutam para subsistir. A revista Educação Espírita, única no mundo, lançada e sustentada heroicamente pelo Editor Frederico Giannini, saiu de circulação por falta de recursos e de interesse do próprio professorado Espírita. A sua lista de edições lançadas, seis volumes, dorme o sono da inocência na Editora Cultural Espírita - EDICEL. A Colecção Científica dessa Editora, iniciada com a edição de obras espíritas clássicas, continua lutando com insuperáveis dificuldades. As Faculdades Espíritas de Marília, Franca e outras cidades lutam para sobreviver. Todas as iniciativas culturais espíritas não conseguem desenvolver-se por falta de apoio e de recursos financeiros. A Editora Paidéia, organizada por três accionistas, para a divulgação cultural Espírita, luta para se firmar, retendo várias obras por falta de recursos para lançá-las. Os accionistas não percebem dividendos, que revertem para o capital de giro da editora, que não tem funcionários remunerados. A Revista Espírita, de Kardec, 12 volumes, editada pela EDICEL, vai pingando nas vendas individuais, sem recursos para uma divulgação mais ampla e efectiva. As tentativas de fundação do Instituto de Cultura Espírita de São Paulo fracassaram.

Esse panorama estadual, desolador, no Estado mais rico da Federação, reflecte-se em todo o Brasil, considerado como a nação mais espírita do mundo.

A Biblioteca Espírita, fundada por José Dias, franqueada ao público para leituras e consultas, num andar da Rua 24 de Maio, morreu com a morte súbita do fundador abnegado.

Quais são os motivos dessa situação calamitosa? Unicamente a falta de compreensão e interesse dos homens de recursos que não se sensibilizam com as iniciativas culturais espíritas. Se a Ciência Espírita não se desenvolve entre nós, a culpa é exclusivamente dos homens de recursos, que preferem endereçar as suas contribuições para as obras assistenciais, com os olhos voltados para a conquista de um pedaço do céu depois da morte. Além disso, o próprio público espírita mostra-se alheio aos interesses superiores do desenvolvimento da cultura espírita, não se interessando pelas publicações culturais, dando preferência aos impressos avulsos de mensagens gratuitas para distribuição nos Centros.

Temos assim uma situação calamitosa, em que o aspecto cultural da Doutrina, e particularmente o seu aspecto científico, estruturado na Ciência Espírita, com a mais brilhante tradição, vê-se relegado, como se nada representasse nessa fase de transição, em que todos os espíritas conscientes da importância da Ciência Espírita deviam empenhar-se em lhe assegurar as possibilidades de desenvolvimento. Enganam-se os que pensam que tudo virá do Alto. O trabalho é nosso, dos homens pobres ou ricos, de todos os que se beneficiaram com os recursos da compreensão espírita em suas vidas passageiras. Ao invés de se preocuparem com o progresso da Ciência Espírita, que modificará o mundo, os espíritas se apegam às suas instituições particulares, como os vigários às suas igrejas e sacristias, pensando que isso lhes basta no cumprimento dos seus deveres espirituais.

O tempo voa, as exigências de uma reformulação dos conceitos humanos sobre a vida e a morte são simplesmente esquecidos. Temos de criar a Universidade Espírita, onde a Ciência Espírita poderá desenvolver-se suficientemente para termos e ampliarmos os benefícios da Cultura Espírita no mundo. Só a Cultura Espírita efectivada nas instituições culturais superiores poderá franquear-nos os portais da Era Cósmica.

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José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, O Desenvolvimento Científico 3 de 3, 3º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: O peregrino sobre o mar de névoa, por Caspar David Friedrich)

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

pensamento e vontade ~

As forças ideoplásticas ~

A primeira dessas categorias é de todos familiar e por isso me limitarei a aflorá-la concisamente.

Refiro-me às provas de natureza indutiva, que as experiências de sugestão hipnótica podem fornecer em prol da hipótese de um pensamento objectivável.

Apenas, para bem elucidar o assunto, suponho necessário precedê-lo de algumas noções gerais, quanto à significação que devemos ligar ao vocábulo imagens do ponto de vista psicológico.

Denominamos ideia ou imagem, à lembrança de uma ou de muitas sensações, simples ou associadas.

Todo e qualquer pensamento não é mais que um fenómeno de memória, que se resume no despertar ou no reproduzir de uma sensação anteriormente percebida.

Existem tantos agregados de imagens, quanto os sentidos que possuímos.

Assim, temos grupos de imagens visuais, auditivas, tácteis, olfactivas, gustativas, motrizes etc.

Aí temos imagens que, ao mesmo tempo que as sensações, constituem a matéria prima de todas as operações intelectuais.

Memória, raciocínio, imaginação são fenómenos psíquicos que, em última análise, consistem em agrupar e coordenar imagens, em lhes apreender as conexões constituídas, a fim de as retocar e agrupar em novas correlações, mais ou menos originais ou complexas, segundo a maior ou menor potência intelectual dos indivíduos.

Taine disse:

“Assim como o corpo é um polipeiro de células, assim o espírito é um polipeiro de imagens.”

Pensava-se outrora que as ideias não tinham correlativo fisiológico, isto é, que um substrato físico não lhes fora necessário para manifestarem-se no meio físico. Hoje, pelo contrário, está provado que as ideias ocupam no cérebro as mesmas localizações das sensações.

Noutros termos: está provado não ser o pensamento senão uma sensação renascente de modo espontâneo e que, portanto, ele – o pensamento – é de natureza mais simples e mais fraca que a impressão primitiva, ainda que capaz de adquirir, em condições especiais, uma intensidade suficiente para provocar a ilusão objectiva daquilo com que sonhamos.

Mas, o pensamento não é unicamente a ressurreição de sensações anteriores: a faculdade imaginativa domina no homem; é graças a ela que as imagens se combinam entre si, a fim de criarem outras imagens. Por aí se prova existir na inteligência uma iniciativa individual própria, assim como relativa liberdade em face dos resultados da experiência; e isto devido a duas outras faculdades, superiores, da inteligência: abstracção e comparação.

Segue-se que a imaginação, a abstracção e a comparação dominam as manifestações do espírito, delas decorrendo todos os inventos e descobertas, inspirações e criações do génio.

Posto isto, notarei que um primeiro índice da natureza objectivável das imagens se depara na maneira como se comportam elas nas manifestações do pensamento.

Subentendido fica que nos estribamos nos conhecimentos novos sobre o assunto, os quais levam a modificar o ponto de vista até agora mantido, quanto aos modos funcionais da inteligência.

Sem esses conhecimentos, oriundos das investigações metapsíquicas, não poderíamos, certamente, atribuir aos diversos modismos funcionais, que realizam as imagens, tanto em vigília como no sono natural, a significação que, entretanto, de direito lhe conferimos.

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Ernesto BozzanoPensamento e Vontade – As forças ideoplásticas, 2 de 2, 2º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: A Female Saint_1941, pintura de Edgar Maxence)

domingo, 16 de fevereiro de 2014

a pedra e o joio ~

as normas de Kardec ~

  Mas o desenvolvimento dos princípios espíritas não pode ser feito de maneira arbitrária, pois no campo do conhecimento há leis de lógica e de logística que regem o processo cultural.

Kardec estabeleceu as normas que temos de observar para não cairmos nos enganos e nas ilusões tão comuns à nossa precipitação. Essas normas, elas mesmas, estão hoje a ser acrescidas de meios novos de verificação da realidade através da Ciência e da Filosofia. bom senso, como ensinou Allan Kardec, é o fio-de-prumo que nos garante a construção de um conhecimento mais amplo e mais rico, mas ao mesmo tempo mais preciso.

Usar do bom senso é o primeiro preceito da normativa de Kardec. Examinar com rigor a linguagem dos Espíritos comunicantes, submetê-los a testes de bom senso e conhecimento, verificar a relação de realidade dos conceitos por eles enunciados (relação do seu pensamento com os factos, as coisas e os seres), enquadrar os seus ensinos e revelações no contexto cultural da época, verificando o alcance abusivo ou não das afirmações mais audaciosas – eis os elementos que temos de observar no trato da mediunidade, se não quisermos cair em situações difíceis, a que fatalmente nos levariam espíritos imaginosos ou pseudo-sábios. E ao lado disso submeter tudo quanto possível à comprovação experimental, à pesquisa.

Bem sabemos que tudo isso requer espírito metódico, um fundo básico de conhecimentos gerais, capacidade normal de discernimento, superação da curiosidade doentia, controle rigoroso da ambição e da vaidade, equilíbrio do raciocínio, maturidade intelectual, critério científico de observação e pesquisa e firme decisão de não se deixar levar pelas aparências, aprofundando sempre o exame de todos os aspectos dos problemas e das circunstâncias. Sim, tudo isso é difícil, mas sem isso não faremos ciência e sem ciência não teremos Espiritismo. Se alguém notar que não dispõe dessas qualidades deve reconhecer-se inábil para a investigação espírita. É melhor aceitar com humildade as próprias limitações do que aventurar-se a realizações impossíveis.

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José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito, As normas de Kardec, 3º fragmento.
(imagem de ilustração: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

O Espiritismo na Arte ~

Parte I

(O Espírito e a sua parcela do poder criador. Arquitectura na Terra e no espaço. A catedral terrestre e a catedral fluídica)

Lembramos aqui que todo o espírito emanado de Deus não possui somente uma centelha da inteligência divina; ele desfruta, ainda, de uma parcela do poder criador, poder que ele é chamado a manifestar mais e mais no decorrer da sua evolução, tanto nas encarnações planetárias quanto na vida do espaço.


Voltemos à arquitectura, que o Esteta tomou como objecto das suas primeiras lições. Aqui na Terra já é arte sublime à qual se prendem todas as outras artes e que muitas vezes lhes serve de protecção.

Assim como na Terra, a música representa a arte viva, a harmonia móvel e vibrante, a arquitectura representa a arte imóvel e passiva em suas formas imponentes e rígidas. Porém, enquanto que no âmago dos espaços o espírito modela, à sua vontade, a matéria fluídica e lhe dá as aparências, as cores, os contornos que lhe agradam, no nosso planeta a matéria opõe mais resistência à vontade do homem. O bloco resiste ao cinzel do escultor como à ferramenta do pedreiro. Às vezes, são necessários longos e pacientes esforços, um trabalho persistente para dar ao mármore, ao granito, a expressão da beleza.

As lições de O Esteta fazem ressaltar a diferença que existe entre os procedimentos em uso na Terra e os do espaço para realizar criações artísticas. Enquanto que na Terra a catedral, tomada como modelo da arquitectura, é a obra paciente de uma colectividade laboriosa, desde o humilde talhador de pedra até ao grande artista que traçou o plano do conjunto, ela é, no espaço, a obra particular de um mestre que, instantaneamente e a seu bel-prazer, pode edificá-la ou destruí-la, auxiliado somente por um grupo de alunos que procuram assimilar e imitar a sua ideia criadora. Aqui na Terra, o monumento é a obra da multidão humana, o trabalho dos séculos. Gerações de artistas e de operários trabalharam para elevar colunas, telhados, torres, fundiram vitrais, pintaram imagens, esculpiram estátuas. Assim foram se constituindo, lentamente, a pirâmide, o palácio, a catedral, Eis por que, em sua majestosa unidade, simbolizam o pensamento de um povo, o génio de uma raça, a alma de uma religião.

Foi a fé, foi o entusiasmo, foi um espiritualismo ardente que erigiu, em direcção ao céu, essas “bíblias” de pedra. E, nessas obras colossais, o invisível tem o seu papel; ele pensa com o arquitecto, medita com o artista, trabalha com o artesão e o pedreiro. A todos ele inspira o pensamento de Deus e do Além, na medida em que eles podem compreendê-lo e interpretá-lo.

Assim são edificados esses “livros” imponentes que são as catedrais e que, durante séculos, foram suficientes para guiar, para instruir, para consolar o espírito humano.

A catedral terrestre serve de moldura a todas as artes. A música faz as suas imensas naves vibrarem, a pintura decora as suas paredes, a escultura a povoa de estátuas. No entanto, em seu conjunto, ela conserva a imobilidade fria e a opacidade do granito.

O papel fundamental da arte é exprimir a vida em toda a sua potência, em sua graça e na sua beleza. Ora, a vida é movimento. E nisso exactamente reside a principal dificuldade da arte humana, que apenas pela música pode reproduzir o movimento. O escultor, pela postura que dá à sua estátua, reproduz o movimento que o seu pensamento concebe e, na imobilidade, cria a acção. A pintura dá a mesma impressão por meio do gesto fixado na tela e pela harmonia das cores, o jogo das perspectivas, a simulação das profundidades e dos horizontes fugidios. Há mais força na estatuária, e mais artifício num quadro; porém, os dois podem exprimir a beleza ideal sob a forma de obras-primas que nos são conhecidas. No entanto, apesar da intenção genial que preside a sua execução, elas nos dão apenas a sensação incompleta.

Não ocorre o mesmo com as obras de arte do espaço: nele tudo é vida, movimento, cor, luz. A catedral fluídica será como que animada e viva. As suas colunas terão a flexibilidade, a elasticidade da matéria mais subtil; as suas paredes serão transparentes como cristal, e mil cores fundidas, desconhecidas na Terra, nelas se divertirão em jogos de sombra e luz. Todas as harmonias ali se combinam em ondas de uma suavidade inexprimível; tudo vibra no frémito de uma vida intensa e profunda.

Os artistas da Terra deverão inspirar-se nesses modelos sobre-humanos que os ensinamentos espíritas lhes tornaram familiares. A educação estética humana comporta concepções cada vez mais elevadas para que o sentimento do belo penetre e se desenvolva em todas as almas. Já se produz uma evolução nesse sentido; ela se acentuará sob a influência do Além. Os artistas do futuro se interessarão em dar mais fluidez às cores, mais vida ao mármore, mais espiritualidade a todas as suas obras. As artes complementares se idealizarão inteiramente, deixando à arquitectura a majestade das formas rígidas e a ilusão do imutável na inércia.

A arte se realça e progride em todos os graus da escalada da vida, realizando formas cada vez mais nobres e perfeitas, e que se aproximam da fonte divina da eterna beleza.

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LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte I – O Espírito e sua parcela do poder criador, Arquitectura na Terra e no espaço, A catedral terrestre e a catedral fluídica. 3º Fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Nas garras do pensamento crítico ~

Justificativa do equívoco marxista ~

Sobram razões, entretanto, para esse equívoco. Não podemos condenar MarxEngels, bem como Feuerbach, em última instância, se este último, rebelando-se contra a “divinização dos fenómenos naturais impressionantes” pelo homem primitivo, pela razão instintiva, quis apegar-se à raiz latina da palavra religião, ao verbo religare, para construir uma religião humana de fraternidade terrena, sem compromissos transcendentes, como Comte o tentaria mais tarde. Os dois primeiros, pelo contrário, rejeitaram até mesmo a velha raiz, tomados de uma verbofobia que ainda hoje impregna os seus seguidores. E levantaram, no pó do planeta, a primeira grande revolução filosófica, política e social, contra a imensidade cósmica do Espírito.

Foi, não um temporal num copo de água, mas uma tormenta num grão de areia. Não obstante, como nesse grão de areia é que, segundo Allan Kardec, nascemos, crescemos, vivemos, morremos, renascemos e progredimos sempre, pois “tal é a lei”, a revolta representa, para nós, toda uma época histórica, de importância igual à rebelião dos anjos, no princípio dos tempos.

A esses novos lúciferes assistiam as razões poderosas da mistificação religiosa da época. A religião, distanciada da sua velha raiz, convertera-se em instrumento de opressão e da mais deslavada velhacaria. Nem foi por outro motivo que Kardec declarou, em A Génese, com a clareza e a precisão que o caracterizavam: “As religiões, infelizmente, têm sido sempre instrumentos de dominação. O papel de profeta tem tentado as ambições secundárias, e tem-se visto surgir uma multidão de pretensos reveladores ou messias que, favorecidos pelo prestígio desse nome, exploram a credulidade, em proveito do seu orgulho, da sua cupidez ou da sua preguiça, achando mais cómodo viver na dependência dos iludidos. A religião cristã não esteve ao abrigo desses parasitas.”

As igrejas haviam corporificado o princípio religioso, no terreno social, na forma de organizações político-financeiras, sedentas de dominação. Os sacerdotes nada mais eram do que os negociantes do culto. E este, como bem o definiram os materialistas dialécticos, “o suborno da divindade”. A corrupção capitalista invadira os céus, podendo acrescentar-se, por isso mesmo, com L. A. Tcheskiss: “O desenvolvimento da ciência provoca a morte da religião.” Já Allan Kardec o dissera, no mesmo livro citado: “Se a religião se recusa a avançar com a ciência, a ciência avançará sozinha.”

Querer que a capacidade de análise objectiva de Marx e Engels falhasse nesse terreno, despercebida do aspecto brutal da religião e do seu verdadeiro papel na estrutura social, seria querer demasiado. Por outro lado, supor que esses anátemo-patologistas da sociedade capitalista pudessem agir, diante do corpo enfermo da sociedade da época, como psiquiatras, descobrindo a malversação dos elementos espirituais no desequilíbrio religioso, seria desconhecer os fenómenos das especializações no campo da ciência.

Marx e Engels fizeram o que puderam. Pura e simplesmente. O que assombra, porém, é que um século depois os seus discípulos e continuadores ainda arrastem a mesma asa quebrada, sem compreenderem a necessidade de avançar na concepção do mundo, em obediência, pelo menos, ao processus da sua própria dialéctica.

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José Herculano PiresEspiritismo Dialético – Justificativa do equívoco marxista, 3º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Victor Hugo | uma chama de fogo a iluminar as idades


Para uma filosofia poética ~

Victor Hugo foi um dos poetas que esboçou a possibilidade de uma filosofia poética. No verso como na prosa, tratou sempre de temas transcendentais relacionados com o homem e o mundo. Sendo certo que no académico não se admite uma filosofia poética, seria bom recordar que Hegel, apesar do seu tecnicismo complicado, expunha conceitos metafísicos que se relacionavam intimamente com o poético.

George Santayana, com o seu livro Três poetas, filosóficos: Lucrécio, Dante, Goethe, contribuiu para sustentar esta tese referente a uma filosofia poética. Mas é chegado o momento de considerar que se a filosofia há de cumprir um papel especial entre os homens, só o conseguirá mediante valores ontológicos e poéticos, pois o estilo obscuro e técnico de um Heidegger ou de um Sartre, por exemplo, em nada contribui para a compreensão das essências da filosofia. O existencialismo como que-fazer filosófico é, poder-se-ia dizer, como uma reacção contra o tecnicismo filosófico onde apenas se vislumbra o "problema do Ser" pelas complicações filológicas incompreensíveis ainda para os homens entregues ao estudo e à cultura.

O caso de Victor Hugo não foi considerado pela história da filosofia e o mesmo se poderia dizer da obra de Miguel de Unamuno, onde a poesia se une à filosofia.

Sem dúvida, a filosofia deverá ser poética e religiosa ou não passará de uma acumulação de páginas técnicas que jamais chegarão a projectar luz na alma do pensador. Caso o filósofo se contente apenas com a linguagem técnica, o "conhece-te a ti mesmo" dos gregos antigos jamais se produzirá na alma dos homens.

A filosofia esboçada pelo autor de As Contemplações estará assente sempre sobre a beleza, posto que o Ser é uma entidade sensível que só evolui por ela rumo ao bem e à verdade. Se não opta por voltar ao reino da sabedoria; se prefere objectivar-se no temporal como uma disciplina académica, o daimon da filosofia permanecerá mudo e o espírito humano será abatido pelas trevas do niilismo.

Victor Hugo filosofou pela poesia porque desceu às profundidades do Ser, reconhecendo que não será sistematizando o presente que a sabedoria se tornará uma luz para os espíritos. Como já dissermos neste livro, Victor Hugo percebeu que a beleza determina a verdadeira filosofia; mas considerou também que o Ser não chegará à verdade através de uma única vida. O seu próprio génio não cabia dentro de uma vida única porque a alma procede de distâncias misteriosas para avançar rumo a horizontes desconhecidos. A filosofia poética do nosso poeta se baseou nessa concepção espiritual do homem e foi por isso que a beleza traduzida em amor lhe permitiu aceitar que as almas são, realmente, viajantes do infinito.

Quando Victor Hugo disse: "Quem diz poesia diz filosofia e saber" deixou assente as possibilidades de um que-fazer filosófico expresso por uma linguagem poética. A poesia na obra do poeta é, sempre, afirmação, esperança, amor, passado e futuro. É o espírito poético que penetra nos domínios ontológicos da existência e que não se limita exclusivamente à literatura. O génio de Victor Hugo é caudaloso e transborda as dimensões do formal para penetrar no filosófico e religioso. Daí devemos considerá-lo um poeta-filósofo e um filósofo-poeta. Por isso, no seu génio se sintetizam todas as manifestações da vida humana. Nele encontramos o social, o religioso, o crítico, o político e o artístico em relação com o Ser.

Quando a filosofia poética esboçada por Victor Hugo se manifestar nos criadores contemporâneos; quando a beleza e a filosofia demonstrarem que o homem não é "uma paixão inútil", como deseja Sartre, a missão do conhecimento se cumprirá mediante uma reivindicação moral e existencial de homens e de povos. Dar-se-á lugar a formas de vida social assentes sobre a dignidade humana, alimentadas pela verdade e beleza, porque o homem de Victor Hugo é um batalhador que luta por encontrar Deus e o sentido da vida.

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Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, Para uma filosofia poética, 3º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Young Girl with a Doll, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

domingo, 2 de fevereiro de 2014

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~

~ O movimento pancéltico    ~

Ainda no século IV, pode notar-se pela controvérsia de São Jerónimo com o gaulês Vigilancius, de São Bertrand de Comminges, que a grande maioria dos cristãos dessa época admitia a pluralidade das existências da alma.

Penetrados da ideia de que estavam animados de um princípio imperecível, todos iguais nas suas origens e nos seus destinos, nossos pais não podiam suportar nenhuma opressão. As suas instituições políticas e sociais também eram eminentemente republicanas e democráticas. E é nelas que é preciso pesquisar a fonte dessas aspirações igualitárias, liberais, que são uma das faces do nosso carácter nacional.

 Todos os gauleses tomavam parte na eleição do Senado, que tinha a missão de estabelecer as leis. Cada república elegia os seus chefes temporários, civis e militares. Os nossos antepassados não conheciam as diferenças de casta. Eles faziam derivar os direitos dos homens da sua própria natureza, da sua imortalidade que os tornava iguais em princípio. Eles não suportariam que um guerreiro, que mesmo um herói tomasse o poder e se impusesse ao povo. As leis gaulesas declaravam que uma nação sempre está acima de um homem.

No momento em que César entrou na Gália, graças à acção dos druidas e do povo das cidades, a unidade nacional se preparava. Se a paz tivesse permitido o cumprimento desses grandes projectos, as repúblicas gaulesas, unidas por laços federativos, como os cantões suíços ou os Estados Unidos da América, poderiam formar, nessas eras longínquas, uma poderosa nação.

Mas as dissensões e as rivalidades dos chefes comprometeram tudo. Uma aristocracia se formou, pouco a pouco, nas tribos. Graças às suas riquezas, certos chefes gauleses souberam cercar-se de numerosos séquitos de criados e partidários, com a ajuda dos quais influíam nas eleições e perturbavam a ordem pública.

Os partidos foram constituídos; para triunfar sobre os seus rivais, alguns recebiam o apoio do estrangeiro, daí a desagregação da Gália e depois a sua escravização.

Frequentemente é ressaltado aos nossos olhos que, em troca da sua independência perdida, a Gália obteve grandes vantagens com o domínio romano. Sim, sem dúvida, Roma trouxe para os nossos antepassados certos progressos materiais e intelectuais. Com o seu apoio, as estradas foram abertas, monumentos foram erguidos e grandes cidades foram construídas. Mas tudo isso, que provavelmente seria formado no correr do tempo, sem Roma, não substituiu a liberdade perdida.

Quando a guerra terminou, dois milhões de gauleses tinham sido mortos nos campos de batalha.

Roma impôs um tributo anual de 40 milhões de sestércios, e a Gália, esgotada de homens e de dinheiro, repousou agonizante sob o machado dos lictores. (i)

Depois, quando vieram as novas gerações, quando a Gália curou as suas feridas sangrentas, o astro de Roma começou a se apagar. Então, do fundo dos bosques e dos pântanos da Alemanha, semelhantes a lobos esfomeados, os francos acorreram à carniça.

Quem eram, na realidade, esses francos que deram o seu nome à Gália? Eram os bárbaros, como esse Ariovisto, que se gabava de ter ficado catorze anos sem dormir sob um tecto.

Os francos formavam uma tribo de raça germânica e eram uns trinta e oito mil. Mas em vez de comunicar à Gália a sua barbárie, eles se fundiram com ela. Portanto, os gauleses nada fizeram senão trocar de opressores. Os francos repartiram a terra e implantaram entre nós a feudalidade.

Esses reis vadios e cruéis, esses nobres senhores da Idade Média, duques, condes e barões, eram, em sua maioria, francos ou burgundos, (ii) e os seus rudes instintos lembravam a sua origem.

Se o domínio romano, que durou quatro séculos, trouxe à Gália alguns benefícios, de outro lado, a sua administração rapinante foi a sua ruína, destruindo toda a sua força de resistência.

É o que Ed. Haraucourt, da Academia Francesa, nos explica num artigo, do qual citamos as linhas seguintes, publicadas em uma de nossas grandes revistas. (iii)

“É por causa deles (os romanos), e não pelos bárbaros, que a Gália está morta. Está morta pela sua organização interior, que foi uma desorganização sistemática; ela pereceu desgastada pelo funcionalismo e pelo imposto, enfraquecida pelas leis que corroíam a sua riqueza, suprimiam o seu trabalho e arruinavam a sua produção. Os invasores vieram, em seguida, para acabar as obras dos legisladores.”

Quando se afirma que os nossos antepassados foram os romanos ou os francos, devemos protestar com toda a nossa alma. Todas as grandes e nobres facetas do carácter nacional a herdamos dos gauleses. A generosidade, a simpatia pelos fracos e oprimidos nos vêm deles. Essa força que nos faz lutar e sofrer pelas causas justas, sem esperança de retorno, esse desinteresse que nos leva a sustentar os povos dominados nas suas reivindicações, essas tendências que não se encontram, em termos iguais, em nenhum outro povo, tudo isso nos vem dos nossos pais heróicos. Apesar da longa ocupação romana, apesar da invasão dos bárbaros do Norte, o nosso carácter nacional está ainda impregnado do velho espírito céltico.

O génio da Gália vigia sempre o nosso país.

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(i) Lictor – oficial que, na antiga Roma, munido de um molho de varas e um machado, acompanhava os magistrados para as execuções da justiça. (N.R.)
(ii) Burgundos, ou burgúndios – Antigo povo germânico que invadiu a Gália, estabelecendo-se na Bacia do Ródano. (N.R.)
(iii) Reproduzido em Braile, em Lumière, de 15 de janeiro de 1926. Esse artigo foi inspirado por testemunhas da época e, principalmente, pelo escritor Lactance.




LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO I – Origem dos celtas. Guerra dos gauleses. Decadência e queda. Longa noite; o despertar. O movimento pancéltico, 3º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: The Apotheosis of the French Heroes who Died for their Country During the War for Freedom_1802, pintura de Anne-Luis GIRODET-TRIOSON)