domingo, 2 de fevereiro de 2014

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~

~ O movimento pancéltico    ~

Ainda no século IV, pode notar-se pela controvérsia de São Jerónimo com o gaulês Vigilancius, de São Bertrand de Comminges, que a grande maioria dos cristãos dessa época admitia a pluralidade das existências da alma.

Penetrados da ideia de que estavam animados de um princípio imperecível, todos iguais nas suas origens e nos seus destinos, nossos pais não podiam suportar nenhuma opressão. As suas instituições políticas e sociais também eram eminentemente republicanas e democráticas. E é nelas que é preciso pesquisar a fonte dessas aspirações igualitárias, liberais, que são uma das faces do nosso carácter nacional.

 Todos os gauleses tomavam parte na eleição do Senado, que tinha a missão de estabelecer as leis. Cada república elegia os seus chefes temporários, civis e militares. Os nossos antepassados não conheciam as diferenças de casta. Eles faziam derivar os direitos dos homens da sua própria natureza, da sua imortalidade que os tornava iguais em princípio. Eles não suportariam que um guerreiro, que mesmo um herói tomasse o poder e se impusesse ao povo. As leis gaulesas declaravam que uma nação sempre está acima de um homem.

No momento em que César entrou na Gália, graças à acção dos druidas e do povo das cidades, a unidade nacional se preparava. Se a paz tivesse permitido o cumprimento desses grandes projectos, as repúblicas gaulesas, unidas por laços federativos, como os cantões suíços ou os Estados Unidos da América, poderiam formar, nessas eras longínquas, uma poderosa nação.

Mas as dissensões e as rivalidades dos chefes comprometeram tudo. Uma aristocracia se formou, pouco a pouco, nas tribos. Graças às suas riquezas, certos chefes gauleses souberam cercar-se de numerosos séquitos de criados e partidários, com a ajuda dos quais influíam nas eleições e perturbavam a ordem pública.

Os partidos foram constituídos; para triunfar sobre os seus rivais, alguns recebiam o apoio do estrangeiro, daí a desagregação da Gália e depois a sua escravização.

Frequentemente é ressaltado aos nossos olhos que, em troca da sua independência perdida, a Gália obteve grandes vantagens com o domínio romano. Sim, sem dúvida, Roma trouxe para os nossos antepassados certos progressos materiais e intelectuais. Com o seu apoio, as estradas foram abertas, monumentos foram erguidos e grandes cidades foram construídas. Mas tudo isso, que provavelmente seria formado no correr do tempo, sem Roma, não substituiu a liberdade perdida.

Quando a guerra terminou, dois milhões de gauleses tinham sido mortos nos campos de batalha.

Roma impôs um tributo anual de 40 milhões de sestércios, e a Gália, esgotada de homens e de dinheiro, repousou agonizante sob o machado dos lictores. (i)

Depois, quando vieram as novas gerações, quando a Gália curou as suas feridas sangrentas, o astro de Roma começou a se apagar. Então, do fundo dos bosques e dos pântanos da Alemanha, semelhantes a lobos esfomeados, os francos acorreram à carniça.

Quem eram, na realidade, esses francos que deram o seu nome à Gália? Eram os bárbaros, como esse Ariovisto, que se gabava de ter ficado catorze anos sem dormir sob um tecto.

Os francos formavam uma tribo de raça germânica e eram uns trinta e oito mil. Mas em vez de comunicar à Gália a sua barbárie, eles se fundiram com ela. Portanto, os gauleses nada fizeram senão trocar de opressores. Os francos repartiram a terra e implantaram entre nós a feudalidade.

Esses reis vadios e cruéis, esses nobres senhores da Idade Média, duques, condes e barões, eram, em sua maioria, francos ou burgundos, (ii) e os seus rudes instintos lembravam a sua origem.

Se o domínio romano, que durou quatro séculos, trouxe à Gália alguns benefícios, de outro lado, a sua administração rapinante foi a sua ruína, destruindo toda a sua força de resistência.

É o que Ed. Haraucourt, da Academia Francesa, nos explica num artigo, do qual citamos as linhas seguintes, publicadas em uma de nossas grandes revistas. (iii)

“É por causa deles (os romanos), e não pelos bárbaros, que a Gália está morta. Está morta pela sua organização interior, que foi uma desorganização sistemática; ela pereceu desgastada pelo funcionalismo e pelo imposto, enfraquecida pelas leis que corroíam a sua riqueza, suprimiam o seu trabalho e arruinavam a sua produção. Os invasores vieram, em seguida, para acabar as obras dos legisladores.”

Quando se afirma que os nossos antepassados foram os romanos ou os francos, devemos protestar com toda a nossa alma. Todas as grandes e nobres facetas do carácter nacional a herdamos dos gauleses. A generosidade, a simpatia pelos fracos e oprimidos nos vêm deles. Essa força que nos faz lutar e sofrer pelas causas justas, sem esperança de retorno, esse desinteresse que nos leva a sustentar os povos dominados nas suas reivindicações, essas tendências que não se encontram, em termos iguais, em nenhum outro povo, tudo isso nos vem dos nossos pais heróicos. Apesar da longa ocupação romana, apesar da invasão dos bárbaros do Norte, o nosso carácter nacional está ainda impregnado do velho espírito céltico.

O génio da Gália vigia sempre o nosso país.

/…
(i) Lictor – oficial que, na antiga Roma, munido de um molho de varas e um machado, acompanhava os magistrados para as execuções da justiça. (N.R.)
(ii) Burgundos, ou burgúndios – Antigo povo germânico que invadiu a Gália, estabelecendo-se na Bacia do Ródano. (N.R.)
(iii) Reproduzido em Braile, em Lumière, de 15 de janeiro de 1926. Esse artigo foi inspirado por testemunhas da época e, principalmente, pelo escritor Lactance.




LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO I – Origem dos celtas. Guerra dos gauleses. Decadência e queda. Longa noite; o despertar. O movimento pancéltico, 3º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: The Apotheosis of the French Heroes who Died for their Country During the War for Freedom_1802, pintura de Anne-Luis GIRODET-TRIOSON)

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