~ O movimento pancéltico ~
Ainda no século IV, pode notar-se pela controvérsia de São
Jerónimo com o gaulês Vigilancius, de São Bertrand de Comminges, que a grande
maioria dos cristãos dessa época admitia a pluralidade das existências da alma.
Penetrados da ideia de que estavam animados de um princípio
imperecível, todos iguais nas suas origens e nos seus destinos, nossos pais não
podiam suportar nenhuma opressão. As suas instituições políticas e sociais
também eram eminentemente republicanas e democráticas. E é nelas que é preciso
pesquisar a fonte dessas aspirações igualitárias, liberais, que são uma das
faces do nosso carácter nacional.
Todos os gauleses tomavam parte na eleição do Senado,
que tinha a missão de estabelecer as leis. Cada república elegia os seus chefes
temporários, civis e militares. Os nossos antepassados não conheciam as
diferenças de casta. Eles faziam derivar os direitos dos homens da sua própria
natureza, da sua imortalidade que os tornava iguais em princípio. Eles não
suportariam que um guerreiro, que mesmo um herói tomasse o poder e se impusesse
ao povo. As leis gaulesas declaravam que uma nação sempre está acima de um
homem.
No momento em que César entrou
na Gália, graças à acção dos druidas e do povo das cidades, a unidade nacional
se preparava. Se a paz tivesse permitido o cumprimento desses grandes
projectos, as repúblicas gaulesas, unidas por laços federativos, como os
cantões suíços ou os Estados Unidos da América, poderiam formar, nessas eras
longínquas, uma poderosa nação.
Mas as dissensões e as rivalidades dos chefes comprometeram
tudo. Uma aristocracia se formou, pouco a pouco, nas tribos. Graças às suas
riquezas, certos chefes gauleses souberam cercar-se de numerosos séquitos de
criados e partidários, com a ajuda dos quais influíam nas eleições e
perturbavam a ordem pública.
Os partidos foram constituídos; para triunfar sobre os seus
rivais, alguns recebiam o apoio do estrangeiro, daí a desagregação da Gália e
depois a sua escravização.
Frequentemente é ressaltado aos nossos olhos que, em troca
da sua independência perdida, a Gália obteve grandes vantagens com o domínio
romano. Sim, sem dúvida, Roma trouxe para os nossos antepassados certos
progressos materiais e intelectuais. Com o seu apoio, as estradas foram
abertas, monumentos foram erguidos e grandes cidades foram construídas. Mas
tudo isso, que provavelmente seria formado no correr do tempo, sem Roma, não
substituiu a liberdade perdida.
Quando a guerra terminou, dois milhões de gauleses tinham
sido mortos nos campos de batalha.
Roma impôs um tributo anual de 40 milhões de sestércios, e a
Gália, esgotada de homens e de dinheiro, repousou agonizante sob o machado dos
lictores. (i)
Depois, quando vieram as novas gerações, quando a Gália
curou as suas feridas sangrentas, o astro de Roma começou a se apagar. Então,
do fundo dos bosques e dos pântanos da Alemanha, semelhantes a lobos
esfomeados, os francos acorreram à carniça.
Quem eram, na realidade, esses francos que deram o seu nome
à Gália? Eram os bárbaros, como esse Ariovisto, que se gabava de
ter ficado catorze anos sem dormir sob um tecto.
Os francos formavam uma tribo de raça germânica e eram uns
trinta e oito mil. Mas em vez de comunicar à Gália a sua barbárie, eles se
fundiram com ela. Portanto, os gauleses nada fizeram senão trocar de
opressores. Os francos repartiram a terra e implantaram entre nós a
feudalidade.
Esses reis vadios e cruéis, esses nobres senhores da Idade
Média, duques, condes e barões, eram, em sua maioria, francos ou burgundos, (ii) e
os seus rudes instintos lembravam a sua origem.
Se o domínio romano, que durou quatro séculos, trouxe à
Gália alguns benefícios, de outro lado, a sua administração rapinante foi a sua
ruína, destruindo toda a sua força de resistência.
É o que Ed. Haraucourt, da Academia Francesa, nos explica
num artigo, do qual citamos as linhas seguintes, publicadas em uma de nossas
grandes revistas. (iii)
“É por causa deles (os romanos), e não pelos bárbaros, que a
Gália está morta. Está morta pela sua organização interior, que foi uma
desorganização sistemática; ela pereceu desgastada pelo funcionalismo e
pelo imposto, enfraquecida pelas leis que corroíam a sua riqueza, suprimiam
o seu trabalho e arruinavam a sua produção. Os invasores vieram, em seguida,
para acabar as obras dos legisladores.”
Quando se afirma que os nossos antepassados foram os romanos
ou os francos, devemos protestar com toda a nossa alma. Todas as grandes e
nobres facetas do carácter nacional a herdamos dos gauleses. A
generosidade, a simpatia pelos fracos e oprimidos nos vêm deles. Essa
força que nos faz lutar e sofrer pelas causas justas, sem esperança de retorno,
esse desinteresse que nos leva a sustentar os povos dominados nas suas
reivindicações, essas tendências que não se encontram, em termos iguais, em
nenhum outro povo, tudo isso nos vem dos nossos pais heróicos. Apesar da longa
ocupação romana, apesar da invasão dos bárbaros do Norte, o nosso carácter
nacional está ainda impregnado do velho espírito céltico.
O génio da Gália vigia sempre o nosso país.
/…
(i) Lictor – oficial que, na antiga Roma, munido de um
molho de varas e um machado, acompanhava os magistrados para as execuções da
justiça. (N.R.)
(ii) Burgundos, ou burgúndios – Antigo povo germânico que
invadiu a Gália, estabelecendo-se na Bacia do Ródano. (N.R.)
(iii) Reproduzido em Braile, em Lumière, de 15 de janeiro
de 1926. Esse artigo foi inspirado por testemunhas da época e, principalmente,
pelo escritor Lactance.
LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível,
Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO I – Origem dos celtas. Guerra dos
gauleses. Decadência e queda. Longa noite; o despertar. O movimento
pancéltico, 3º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: The Apotheosis of the French Heroes who Died for
their Country During the War for Freedom_1802, pintura de Anne-Luis
GIRODET-TRIOSON)
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