sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

O círculo das coisas terrestres aperta-nos e limita as nossas percepções ~


Alma humana…

A evolução dos mundos e das almas é regida pela vontade divina, que penetra e dirige toda a Natureza, mas a evolução física é uma simples preparação para a evolução psíquica e a ascensão das almas prossegue muito além da cadeia dos mundos materiais.

O que impera nas baixas regiões da vida é a luta ardente, o combate sem tréguas de todos contra todos, a guerra perpétua em que cada ser faz esforço para conquistar um lugar ao Sol, quase sempre em detrimento dos outros. Essa peleja furiosa arrasta e dizima todos os seres inferiores nos seus turbilhões.

O nosso Globo é como uma arena onde se travam batalhas incessantes. (*)

A Natureza renova continuamente esses exércitos de combatentes. Na sua prodigiosa fecundidade, gera novos seres; mas logo a morte ceifa nas suas fileiras cerradas. Essa luta, horrenda à primeira vista, é necessária para o desenvolvimento do princípio da vida, dura até ao dia em que um raio de inteligência vem iluminar as consciências adormecidas. É na luta que a vontade se apura e afirma; é da dor que nasce a sensibilidade.

A evolução material, a destruição dos organismos é temporária; representa a fase primária da epopeia da vida. As realidades imperecíveis estão no Espírito; só ele sobrevive a esses conflitos. Todos esses invólucros efémeros não são mais do que vestuários que vêm ajustar-se à sua forma fluídica permanente. Cobre-os com vestuários para representar os numerosos actos do drama da evolução no vasto palco do universo.

Emergir grau a grau do abismo da vida para tornar-se Espírito, génio superior, e isto pelos seus próprios méritos e esforços, conquistar o futuro hora a hora, ir-se libertando dia a dia um pouco mais da ganga das paixões, libertar-se das sugestões do egoísmo, da preguiça, do desânimo, resgatar-se pouco a pouco das suas fraquezas, da sua ignorância, ajudando os seus semelhantes a se resgatarem por sua vez, arrastando todo o meio humano para um estado superior, tal é o papel distribuído a cada alma. Para desempenhá-lo, tem ela à sua disposição toda a série de existências inumeráveis na escala magnífica dos mundos.

Tudo o que vem da matéria é instável; tudo passa, tudo foge. Os montes se vão pouco a pouco abatendo sob a acção dos elementos; as maiores cidades convertem-se em ruínas, os astros acendem-se, resplandecem, depois apagam-se e morrem; só a alma imperecível paira na duração eterna.

O círculo das coisas terrestres aperta-nos e limita as nossas percepçõesmas quando o pensamento se separa das formas mutáveis e abarca a extensão dos tempos, vê o passado e o futuro se juntarem, fremirem e viverem o presente. O canto de glória, o hino da vida infinita enche os espaços, sobe do âmago das ruínas e dos túmulos. Sobre os destroços das civilizações extintas rebentam florescências novas. Efectua-se a união entre as duas humanidades, visível e invisível, entre aqueles que povoam a Terra e os que percorrem o espaço. As suas vozes chamam, respondem umas às outras, e esses rumores, esses murmúrios, vagos e confusos ainda para muitos, tornam-se para nós a mensagem, a palavra vibrante que afirma a comunhão de amor universal.

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(*) Ver Le Dantec - La Lutte Universelle, I vol., 1906.


LÉON DENIS, O Problema do Ser, do Destino e da Dor,  IX – Evolução e finalidade da alma, fragmento.
(imagem de contextualização: Head of Divine Vengeance, pintura de Pierre-Paul Prud'hon)

domingo, 17 de dezembro de 2017

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria; 
I Posição do Problema (IV)

A teoria mecânica, estabelecendo a pura necessidade matemática nas acções e reacções que formam a vida do mundo, é incompleta, por isso que suprime a causa e dissipa em névoa o mundo moral. A teoria de uma força única, universal, sempre actual e formando a variedade dos seres pelas suas metamorfoses, ajusta essa misteriosa universalidade a uma força primordial.

Poder-se-ia, portanto, acusar simplesmente o processo geral dos nossos contraditores de um erro gramatical, atribuindo à matéria um poder só cabível à força e pretendendo não passar esta de mero adjectivo qualificativo, quando lhe cabem os mesmos direitos daquela, na classe dos substantivos.

Examinemos agora, nesta mesma vista de conjunto, quais os grandes erros que marcham de paralelo e sustentam essa conduta e que havemos de encontrar sob várias formas, no curso das nossas contraditas.

O primeiro erro geral de que abusam os materialistas é imaginarem que, pelo facto de existir Deus, importa atribuir-lhe uma vontade caprichosa e não constante e imutável, na sua perfeição.

Ørsted, por exemplo, sábio escrutador do mundo físico, exprimiu sensatamente as relações de Deus com a Natureza, dizendo que “o mundo é governado por uma razão eterna, cujos efeitos se manifestam nas leis da Natureza”.

O Dr. Büchner opõe a esse conceito a seguinte especiosa objecção: – “Ninguém poderia compreender como uma razão eterna, que governa, se conforme com leis imutáveis. Ou são as leis naturais que governam, ou é a razão eterna. Que umas ao lado de outras entrariam, a cada instante, em colisão. Se a razão eterna governasse, supérfluas se tornariam as leis naturais e se, ao revés, governam as leis imutáveis da Natureza, elas excluem toda a intervenção divina.” – “Se uma personalidade governa a matéria num determinado sentido – opina Moleschott – desaparece da Natureza a lei da necessidade. Cada fenómeno se torna partilha de jogo do acaso e de uma arbitrariedade sem pelas.”

Havemos de convir que esta grave objecção é singularíssima.

É um raciocínio extravagante que cai pela base. A nós nos parece, pelo contrário, que a inteligência notória nas leis da Natureza demonstra, no mínimo, a inteligência da causa a que se devem essas leis, que são, elas mesmas, precisamente a expressão imutável dessa inteligência eterna.

E não será algo ridículo pretender que essa causa deixe de existir, pelo motivo do íntimo acordo com essas mesmas leis?

Vejamos, por exemplo, um excelente harpista: a sua virtuosidade é tão perfeita que os acordes frementes parecem-nos identificados com a poesia da sua alma! Diremos, então, que essa alma não existe, visto que para lhe admitir existência fora preciso que ela estivesse eventual e arbitrariamente em desacordo com as leis da Harmonia! Essa maneira de raciocinar é tão falsa que os próprios autores que a utilizam são os primeiros a reconhecê-lo implicitamente. Assim é que Büchner, referindo-se a milagres e ao facto de haver o clero inglês solicitado a decretação de um dia de jejum e de preces para conjurar a cólera, elogia Palmaraton por haver respondido que o surto epidémico dependia mais de factores naturais, em parte conhecidos, e poderia melhor jugular-se com providências sanitárias, antes que com preces.

Muito bem! O autor, melhor ainda, acrescenta: “Essa resposta lhe acarretou a pecha de ateísmo e o clero declarou pecado mortal não crer pudesse a Providência transgredir, a qualquer tempo, as leis da Natureza.”

Mas, que singular ideia faz essa gente de Deus que por si criou! Um legislador supremo a deixar-se comover por preces e soluços, a subverter a ordem imutável que ele mesmo instituiu, a violar por suas próprias mãos a actividade das forças naturais! – “Todo o milagre, se existisse – diz também Cotta – provaria que a Criação não merece o respeito que lhe tributamos e os místicos deveriam deduzir, da imperfeição do criado, a imperfeição do Criador.”

Aí temos os adversários em contradição consigo mesmos, quando, por um lado, não querem admitir uma razão eterna em concordância de leis imutáveis, e por outro pensam connosco, que a ideia de imutabilidade ou, pelo menos, a regularidade, se identifica muito melhor com a perfeição ideal do ser desconhecido que denominamos Deus, do que a ideia de mutabilidade e arbitrariedade, que umas tantas crenças pretendem impor-lhe.

Um segundo erro geral, não menos funesto que o precedente e que por igual ilude os nossos contraditores, é o de acreditarem que, para existir Deus, importa colocá-lo fora do mundo.

Não vemos pretexto algum racional que possa justificar uma tal necessidade. E antes do mais, que significa essa ideia de uma causa soberana extramundo? Onde os limites do mundo? Pois o mundo, isto é, o espaço no qual se movem estrelas e terras, não é infinito por sua mesma essência?

Imaginais um limite a esse mesmo espaço e supondes que ele se não renova além? Será, então, possível traçar limites à extensão? Onde, pois, imaginar Deus fora do mundo? Será fora da matéria, o que se quer dizer? Mas, que é a matéria em si? – agrupamentos de moléculas intangíveis. Portanto, impossível determinar uma semelhante posição. Deus não pode estar fora do mundo, mas no mesmo lugar do mundo, do qual é o sustentáculo e a vida.

Não fosse temer a pecha de panteísta e ajuntaríamos que Deus é – a alma do mundo. O Universo vive por Deus, assim como o corpo obedece à alma. Em vão pretendem os teólogos que o espaço não pode ser infinito, em vão se apegam os materialistas a um Deus fora do mundo, enquanto sustentamos que Deus, infinito, está com o mundo, em cada átomo do Universo – adoramos Deus na Natureza.

Entretanto, os nossos adversários combatem insensatamente o seu fantasma. “Não há considerar o Universo – diz Strauss – como ordenação regrada por um Espírito fora do mundo, mas, como razão imanente às forças cósmicas e às suas relações.”

A essa razão, chamamo-la Deus, enquanto os modernos ateístas aproveitam essa declaração para sentenciar que, em não existindo fora do mundo, é que Deus não existe.

“Tudo, – diz H. Tuttle – desde a tinha (perdoem a expressão) que baila aos raios do Sol, à inteligência humana, que verte das massas medulosas do cérebro, está submetido a princípios fixos. Logo, não existe Deus.” Logo, existe – dizemos nós – “Livre é cada qual de franquear os limites do mundo visível – pondera Büchner – e de procurar fora dele uma razão que governa, uma potência absoluta, uma alma mundial, um Deus pessoal”, etc. Mas, que é o que vos fala disso? “Nunca, em parte alguma – diz o mesmo literato – nos mais longínquos espaços revelados pelo telescópio, pôde observar-se um facto que fizesse excepção e pudesse justificar a necessidade de uma força absoluta, operando fora das coisas.”

“A força não impelida por um Deus, não é uma essência das coisas isoladas do princípio material” – adverte Moleschott.

Ninguém terá visão tão limitada – afirma ele alhures – para enxergar nas acções da Natureza outras forças não ligadas a um substrato material. Uma força que planasse livremente acima da matéria seria uma concepção absolutamente balda de sentido.

Positivamente, ainda hoje existem cavaleiros errantes, à guisa dos que outrora manobravam em torno dos castelos do Reno, e de bom grado arremetem moinhos de vento. Lídimos heróis de Cervantes, visto que, no fim de contas, qual o filósofo que hoje propugna um Deus ou forças quaisquer fora da Natureza?

Vemos em Deus a essência virtual que sustenta o mundo em cada uma de suas partes microscópicas, daí resultando ser o mundo como que por ele banhado, embebido em todas as suas partes e que Deus está presente na mesma composição de cada corpo.

Dessarte, a primeira trincheira cavada pelos adversários para bloquear o Espiritualismo foi por eles mesmos entulhada; e a segunda nem sequer objectiva a cidadela, e os nossos soldados alemães não fazem mais que bater o campo.

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Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria I - Posição do Problema 4 de 6, 8º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

domingo, 10 de dezembro de 2017

Diálogos de Kardec ~


A SEGUNDA VISTA:
CONHECIMENTO DO FUTURO. ~ 
PREVISÕES ~ 

Desde que no estado sonambúlico as manifestações da alma se tornam, de certo modo, ostensivas, fora absurdo supor que no estado normal ela se encontre confinada, de modo absoluto, no seu envoltório, como o caramujo na sua concha. Não é de maneira alguma a influência magnética que a desenvolve; esta influência nada mais faz do que a tornar patente pela acção que exerce sobre os órgãos corporais. Ora, nem sempre o estado sonambúlico é condição indispensável a essa manifestação. As faculdades que se revelam neste estado desenvolvem-se algumas vezes espontaneamente, no estado normal, em certos indivíduos. Resulta-lhes daí a faculdade de verem as coisas distantes, por onde quer que a alma estenda a sua acção; vêem, se podemos servir-nos desta expressão, através da vista ordinária; e os quadros que descrevem, os factos que narram se lhes apresentam como efeitos de uma miragem. É o fenómeno a que se dá o nome de segunda vista. No sonambulismo, a clarividência deriva da mesma causa; a diferença está em que, neste estado, ela é isolada, independente da vista corporal, ao passo que é simultânea nos que desta faculdade são dotados em estado de vigília. 

Quase nunca é permanente a segunda vista. Em geral, o fenómeno se produz espontaneamente, em dados momentos, sem ser por efeito da vontade e, provoca uma espécie de crise que, algumas vezes, modifica sensivelmente o estado físico. O indivíduo parece olhar sem ver; toda a sua fisionomia reflecte como que uma exaltação. 

É de se notar que as pessoas dotadas desta faculdade não suspeitam possuí-la. Ela se lhes afigura natural, como a de ver com os olhos. Consideram-na um atributo do seu ser e nunca uma coisa excepcional. Cumpre acrescentar que muito amiúde o esquecimento se segue a essa lucidez passageira, cuja lembrança, cada vez mais imprecisa, acaba por desvanecer-se como a de um sonho. 

Há infinitos graus na potencialidade da segunda vista, desde a sensação confusa, até a percepção tão nítida quanto no sonambulismo. Há carência de um termo para se designar este estado especial e, sobretudo, os indivíduos susceptíveis de experimentá-lo. Tem-se empregado a palavra vidente, que, embora não exprima com exactidão a ideia, a adoptaremos até nova ordem, à falta de outra melhor. 

Se agora confrontarmos os fenómenos de segunda vista com os da clarividência sonambúlica, compreenderemos que o vidente possa perceber coisas que lhe estejam fora do alcance da visão ordinária, do mesmo modo que o sonâmbulo vê, à distância, acompanha o curso dos acontecimentos, aprecia-lhes a tendência e, em certos casos, lhes prevê o desenlace. 

Este dom da segunda vista é que, em estado rudimentar, dá a certas pessoas o tacto, a perspicácia, uma espécie de segurança aos actos, o que se pode com justeza denominar: golpe de vista moral. Mais desenvolvido, ele acorda os pressentimentos, ainda mais desenvolvido, faz ver acontecimentos que já se realizaram, ou que estão prestes a realizar-se; finalmente, quando chega ao apogeu, é o êxtase vígil. 

Como já dissemos, o fenómeno da segunda vista é quase sempre natural e espontâneo; parece, entretanto, que se produz com mais frequência sob o império de determinadas circunstâncias. Os tempos de crise, de calamidades, de grandes emoções, tudo, enfim, que sobreexcita o moral, que provoca o desenvolvimento. Dir-se-ia que a Providência, diante de perigos iminentes, multiplica em torno das criaturas a faculdade de prevê-los

Videntes sempre os houve em todos os tempos e em todas as nações, parecendo, no entanto, que alguns povos são mais naturalmente predispostos a tê-los. Dizem que na Escócia é muito comum o dom da segunda vista. Não se lhe nota a existência entre a gente do campo e os que habitam nas montanhas. 

Os videntes têm sido diversamente considerados, conforme os tempos, os costumes e o grau de civilização. Para os cépticos, eles não passam de cérebros desarranjados, de alucinados; as seitas religiosas os arvoraram de profetas, sibilas, oráculos; nos séculos de superstição e ignorância, eram feiticeiros e acabavam na fogueira. Para o homem sensato, que acredita no poder infinito da Natureza e na bondade inesgotável do Criador, a dupla vista é uma faculdade inerente à espécie humana, por meio da qual Deus nos revela a existência da nossa essência espiritual. Quem não reconheceria um dom dessa natureza em Jeanne d’Arc e em toda uma multidão de outras personagens que a história qualifica de inspiradas? 

Muito se tem falado de pessoas que, deitando as cartas, disseram coisas de surpreendente verdade. De modo nenhum pretendemos fazer-nos apologista dos ledores da “buena-dicha” que exploram a credulidade dos espíritos fracos e cuja linguagem ambígua se presta a todas as combinações de uma imaginação abalada; mas, não é de todo impossível que certas pessoas, fazendo disso um ofício, tenham o dom da segunda vista, mesmo mau grado seu. Sendo assim, as cartas, entre as suas mãos, não passam de um meio, de um pretexto, de uma base de conversa. Elas falam de acordo com o que vêem e não com o que indicam as cartas para as quais apenas olham. 

O mesmo se dá com outros meios de adivinhação, tais como as linhas da mão, a clara de ovo e outros símbolos místicos. Os sinais das mãos talvez tenham mais valor do que todos os outros meios, não por si mesmos, mas porque, tomando e palpando a mão do consultante, o pretenso adivinho, se é dotado de dupla vista, estabelece relação mais directa com aquele, como se verifica nas consultas sonambúlicas

Podem incluir-se os médiuns videntes na categoria das pessoas que possuem a dupla vista. Com efeito, do mesmo modo que estas últimas, aqueles julgam ver com os olhos, mas, na realidade, a alma é que vê e por esta razão é que eles vêem tão bem com os olhos abertos como com os olhos fechados. Segue-se, necessariamente, que um cego poderia ser médium vidente, tanto quanto um que tenha perfeita a vista. Constituiria estudo interessante indagar se esta faculdade é mais frequente nos cegos. Somos levado a crê-lo, dado que, como se pode verificar experimentalmente, a privação de se comunicar com o meio exterior, por falta de certos sentidos, confere em geral poder maior à faculdade de abstracção da alma e, consequentemente, maior desenvolvimento ao sentido íntimo pelo qual ela se põe em relação com o mundo espiritual. 

Podem, pois, os médiuns videntes ser identificados por pessoas que gozam da vista espiritual; mas, seria porventura demasiado considerar essas pessoas como médiuns, porquanto mediunidade se caracteriza unicamente pela intervenção dos Espíritos, não se podendo ter como acto mediúnico o que alguém faz por si mesmo. Aquele que possui a vista espiritual vê pelo seu próprio Espírito, não sendo necessário, para o surto da sua faculdade, o concurso de um Espírito estranho. 

Posto isto, examinemos até que ponto a faculdade da dupla vista pode permitir se descubram coisas ocultas e se penetre no futuro. 

Desde todos os tempos, os homens hão querido conhecer o futuro e muitos volumes se poderiam escrever sobre os meios que a superstição inventou para erguer o véu que encobre o nosso destino. Muito sábia foi a Natureza no-lo ocultar. Cada um de nós tem a sua missão providencial na grande colmeia humana e concorre para a obra comum na sua esfera de actividade. Se soubéssemos de antemão o fim de cada coisa, é fora de dúvida que a harmonia geral ficaria perturbada. A segurança de um porvir ditoso tiraria ao homem toda a actividade, pois que nenhum esforço precisaria ele empregar para alcançar o objectivo que sempre colima: o seu bem-estar. Paralisar-se-iam todas as forças físicas e morais. As mesmas consequências produziriam a certeza da infelicidade, em virtude do desânimo que ganharia a criatura. Ninguém se disporia a lutar contra a sentença definitiva do destino. O conhecimento absoluto do futuro seria, portanto, um presente funesto, que nos conduziria ao dogma da fatalidade, o mais perigoso de todos, o mais antipático ao desenvolvimento das ideias. A incerteza quanto ao momento do nosso fim neste mundo é que nos faz trabalhar até ao último batimento do nosso coração. O viajante levado por um veículo se entrega ao movimento que o fará chegar ao ponto demandado, sem pensar em lhe impor qualquer desvio, por estar certo da sua impotência para consegui-lo. O mesmo se daria com o homem que conhecesse o seu destino irrevogável. Se os videntes pudessem infringir esta lei da Providência, igualar-se-iam à Divindade. Por isso mesmo, não é essa a missão que lhes cabe. 

No fenómeno da dupla vista, por se encontrar a alma parcialmente liberta do envoltório material, que lhe limita as faculdades, não há duração, nem distância; visto que lhe é dado abranger o espaço e o tempo, tudo se lhe confunde no presente. Livre dos entraves da carne, ela julga dos efeitos e das causas melhor do que nós, que não podemos fazer outro tanto; vê as consequências das coisas presentes e pode levar-nos a pressenti-las. É neste sentido que se deve entender o dom de presciência atribuído aos videntes. As suas previsões resultam de ter a alma consciência mais nítida do que existe e não de uma predição de coisas fortuitas, sem ligação com o presente. É por dedução lógica do conhecido que ela chega ao desconhecido, dependente muitas vezes da nossa maneira de proceder. Quando um perigo nos ameaça, se somos avisados, ficamos em condições de tentar tudo o que seja preciso para evitá-lo, cabendo-nos a liberdade de fazê-lo ou não. 

Em tal caso, o vidente tem diante de si um perigo que se nos encontra oculto; ele o assinala, indica o meio de afastá-lo, pois de outro modo o acontecimento segue o seu curso. 

Suponhamos que uma carruagem enveredou por uma estrada que vai dar num precipício que o condutor não pode perceber. É evidente que, se nada ocorrer que a desvie, ela ali se precipitará. Suponhamos também que um homem colocado de maneira a divisar a estrada em toda a sua extensão, vendo o perigo que corre o viajante, consegue avisá-lo a tempo de ele se desviar. O perigo estará conjurado. Da sua posição, dominando o espaço, o observador vê o que o viajante, cuja visão os acidentes do terreno circunscrevem, não logra divisar. Pode ele ver se uma causa fortuita obstará à queda do outro; conhece então, previamente, o que se dará e prediz o acontecimento. 

Imaginemos que esse homem, do alto de uma montanha, divise ao longe, pela estrada, uma tropa inimiga dirigindo-se para uma aldeia a que pretende atear fogo. Fácil lhe será, levados em conta o espaço e a velocidade, prever quando a tropa chegará. Se, então, descendo à aldeia, disser apenas: A tal hora a aldeia será incendiada, caso o facto venha a ocorrer, ele passará, aos olhos da multidão ignorante, por adivinho, feiticeiro; entretanto, apenas viu o que os outros não podiam ver e deduziu, do que vira, as consequências. 

Ora, o vidente, como este homem, apreende e acompanha o curso dos acontecimentos; não lhes prevê o resultado porque possua o dom de adivinhar: ele o vê e, desde então, pode dizer-vos se estais no bom caminho, indicar-vos outro melhor e anunciar o que se vos deparará no extremo do que seguis. É, para vós, o fio de Ariadne, mostrando a saída do labirinto. 

Como se vê, longe está isto da predição propriamente dita, conforme a entendemos na acepção vulgar do termo. Nada foi tirado ao livre-arbítrio do homem, que conserva sempre a liberdade de agir ou não, de evitar ou deixar que os acontecimentos se dêem, por sua vontade, ou por sua inércia; indica-se-lhe um meio de chegar ao fim, cabendo-lhe utilizá-lo. Supô-lo submetido a uma fatalidade inexorável, com relação aos menores acontecimentos da vida, é despojá-lo do seu mais belo atributo: a inteligência; é assimilá-lo ao bruto. O vidente, pois, não é um adivinho; é um ser que percebe o que não vemos; é, para nós, o cão do cego. Nada nisso há, portanto, que se contraponha aos desígnios da Providência quanto ao segredo de nosso destino; é ela própria quem nos dá um guia. 

Tal o ponto de vista donde se deve considerar o conhecimento do futuro, por parte das pessoas dotadas de dupla vista. Se fosse fortuito este futuro, se dependesse do a que se chama acaso, se nenhuma ligação tivesse com as circunstâncias presentes, nenhuma clarividência poderia penetrá-lo e nenhuma certeza, neste caso, ofereceria qualquer previsão. O vidente (referimo-nos ao que verdadeiramente o é), o vidente sério e não o charlatão que simula sê-lo, o verdadeiro vidente, não diz o que o vulgo denomina “buena-dicha”; ele apenas prevê as consequências que decorrerão do presente; nada mais e já é muito. 

Quantos erros, quantos passos em falso, quantas tentativas inúteis não evitaríamos, se tivéssemos sempre um guia seguro a nos esclarecer; quantos homens se encontram deslocados na vida, por não se haverem lançado no caminho que a Natureza lhes traçara às faculdades! Quantos sofrem malogros por terem seguido os conselhos de uma obstinação irreflectida! Uma pessoa houvera podido dizer-lhes: “Não empreendais isso, porque as vossas faculdades intelectuais são insuficientes, porque não convém ao vosso carácter, nem à vossa constituição física, ou, ainda, porque não sereis secundados, como fora preciso; ou, então, porque vos enganais sobre o alcance do que pretendeis e topareis com este embaraço que não prevedes.” Noutras circunstâncias, ter-lhes-ia dito: “Sair-vos-eis bem de tal empreendimento, se vos conduzirdes desta ou daquela maneira; se evitardes dar tal passo que não pode comprometer-vos.” Sondando as disposições e os caracteres, poderia dizer: “Desconfiai de tal armadilha que vos querem preparar”, acrescentando, em seguida: “Estais prevenidos, fiz o que me cumpria; mostrei-vos o perigo; se sucumbirdes, não acuseis a sorte, nem a fatalidade, nem a Providência; acusai-vos unicamente a vós mesmos. Que pode fazer o médico, quando o doente não lhe dá atenção aos conselhos?” 

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, A segunda vista – Conhecimento do futuro. Previsões. 7º fragmento solto desta obra. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

domingo, 3 de dezembro de 2017

O peregrino sobre o mar de névoa ~

Natureza Moral da terapia Espírita 

Kardec adverte quanto às relações da moralidade do médium com a sua mediunidade.

Considerada em si mesma como um campo de produção de fenómenos, a mediunidade não depende da moralidade.

Mas considerada como instrumento cognitivo, ou seja, como meio de conhecimento, a mediunidade depende estritamente da moralidade.

Sacerdotes e religiosos de várias seitas se  aproveitaram dessa declaração de Kardec para acusar o Espiritismo de doutrina sem moral. Revelavam com isso apoucada inteligência e falta de moral.

Essa observação de Kardec comprovou-se amplamente nas pesquisas espíritas e nas sociedades de pesquisa psíquicas da Europa e da América. A tese é límpida e precisa. Os fenómenos mediúnicos, como os fenómenos físicos, não dependem da moral do médium ou do físico.

O químico de vida moral mais condenável produz as suas reacções químicas em laboratório sem pensar na moral. Mas quando se trata da busca da verdade ou de processos de cura, a mediunidade divorciada da moralidade não serve, tornando-se mesmo perigosa. A eficácia da terapia espírita depende da integridade moral do médium que lhe serve de instrumento. Esse é um problema de relações humanas no plano das sintonias espirituais.

Desejando acelerar os trabalhos de ordenação da doutrina, na Codificação – no qual trabalhava apenas com as meninas Boudin – Kardec pensou em utilizar-se da boa-vontade de um médium seu conhecido, mas o seu orientador espiritual advertiu-o de que esse médium não tinha condições morais para o trabalho, acrescentando: “A verdade não pode falar pela boca da mentira.” Desse episódio, bem como dos princípios morais da doutrina, ampla e minuciosamente explanados na Codificação, nunca se lembraram nem se lembram os clérigos e materialistas acusadores da suposta amoralidade espírita. Bastaria isso para mostrar a debilidade moral desses acusadores.

Na terapêutica espírita, como nas investigações científicas da mediunidade, a exigência da moral é de importância básica. As constantes denúncias de fraudes mediúnicas nas pesquisas decorrem da falta de escrúpulo dos pesquisadores na escolha de seus instrumentos mediúnicos, no tocante às exigências morais.

No caso de médiuns realmente moralizados as denúncias de fraude são geralmente falsas. Costuma citar-se o caso do médium escocês Daniel Douglas Home, que produzia os fenómenos mais espantosos, como a sua própria levitação e materializações sucessivas e contra as quais só houve acusações sem base nem sentido. A famosa médium Anna Prado, no Pará, cruelmente combatida e caluniada por um clérigo fanático, saiu ilesa de todas as invencionices como Anésio SiqueiraUrbano de Assis XavierLuís Parigot de Souza e tantos outros se mantiveram sempre incólumes de acusações dessa espécie, defendidos pelo seu comportamento moral, que lhes garantia permanente protecção das entidades espirituais superiores. A moral do médium é o seu escudo em todas as circunstâncias. Não a moral social, que pode ser avaliada de fora e não raro de maneira contraditória, mas a moral íntima, pessoal, endógena, ou seja, que nasce da sua própria consciência e não precisa de sanções externas. Essa moral legítima, vivencial, garante a sintonia espiritual do médium com os espíritos elevados – única verdadeira garantia da eficácia de sua terapia. É do próprio Evangelho de Jesus que ressalta esse princípio da moral espírita.

Fala-se muito da importância da fé nas curas espirituais de qualquer sector religioso. A fé se revela, nesses casos, mais como um anseio ardente de cura do que propriamente como fé. O conceito vulgar de fé tem por fundamento a crença. Quem não crê, não tem fé. Mas, como explicou Kardec, a fé verdadeira não prescinde da razão, que a fundamenta no conhecimento e no saber. A fé espírita é racional. A crença é apenas uma aceitação emotiva de um princípio ou de um mito. Herbert Bradley, depois das suas experiências espíritas, sustentava: “Eu não creio, eu sei.” Na terapia espírita a fé representa apenas um estímulo moral ao paciente, para que ele se predisponha melhor, emocionalmente, à acção dos elementos curadores. Kardec acentuou a existência de dois campos da fé, assim divididos: fé humana e fé divina. O homem que confia em si mesmo para as suas realizações fortalece-se na fé humana. Mas aquele que possui a fé divina, resultante do seu conhecimento dos poderes da divindade, dispõe da máxima firmeza na busca dos seus intentos. Na terapia espírita essa fé não se funda nos elementos rituais das religiões, concentrando-se na sintonia do seu pensamento e dos seus sentimentos com as entidades espirituais socorristas.

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José Herculano Pires, Ciência Espírita e as suas implicações terapêuticas, 3 Natureza Moral da Terapia Espírita (1 de 3), 8º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, por Caspar David Friedrich)

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Alfred Russel Wallace e o Sobrenatural ~

III  Os Milagres modernos vistos como Fenómenos Naturais (II)

Pareceria então que, se o meu argumento possui algum peso, que nada é contraditório nem absolutamente inconcebível na ideia de haver inteligências incognoscíveis de forma directa através dos nossos sentidos e capazes de agir mais ou menos poderosamente sobre a matéria. Para algumas mentes, sobre a existência de tais seres há apenas uma alta improbabilidade, baseada na suposta ausência total de provas. Existindo provas directas, parece que não haverá razão para que a maioria dos filósofos cépticos se recuse a admitir a sua existência. Seria apenas um assunto a ser investigado e testado como qualquer outra questão de ciência. As evidências teriam que ser obtidas e examinadas. Os resultados das pesquisas de diferentes observadores teriam que ser comparados. O carácter dos observadores quanto ao conhecimento, exactidão e honestidade seriam ponderados e, no mínimo, alguns dos factos confiáveis, teriam de ser novamente observados. Apenas, desta maneira, todas as fontes de erro seriam eliminadas e uma doutrina de extraordinária importância, seria considerada verdadeira. Eu, proponho agora que se questione se tais provas foram dadas e, se a evidência pode ser obtida por qualquer um que deseje investigar o assunto, da única forma que a verdade pode ser alcançada: pela observação directa e pela experimentação.

Eis o primeiro facto. Durante os últimos 40 anos, enquanto as ciências físicas progrediram a passos largos e o crescente espírito de nacionalismo nos levou a questionar de forma geral todos os factos de um carácter supostamente miraculoso ou sobrenatural, um número continuamente maior de pessoas mantém a sua crença na existência daqueles seres da natureza que até agora nós temos postulado como uma simples possibilidade. Todas estas pessoas declaram que elas receberam directas e as repetidas provas da existência de tais seres. Muitas nos dizem que foram convencidas do contrário de suas ideias e pressuposições anteriores. Muitas destas pessoas eram materialistas, não acreditando na existência de quaisquer inteligências desconectadas de uma forma visível e tangível, nem na continuidade da existência do homem após a morte. No momento presente, há provavelmente três milhões de pessoas nos Estados Unidos da América que receberam satisfatórias provas da existência de inteligências invisíveis; e, na Inglaterra, há muitos milhares que declarara a mesma coisa. Um grande número destas mesmas pessoas continuadamente recebe novas provas na privacidade de suas casas, e tanto interesse desperta o assunto que quatro periódicos são publicados neste país, diversos no continente, (*) e um grande número na América, todos exclusivamente devotados a disseminar informações relacionadas com a existência destas inteligências invisíveis e dos meios para se comunicar com elas. Uma pequena revisão da literatura especializada, que já é bastante extensa, revela o facto surpreendente de que esta revivescência do tão conhecido sobrenaturalismo não está confinada aos ignorantes ou supersticiosos, ou as classes mais baixas da sociedade. Ao contrário, é nas classes média e alta que a maior proporção dos seus adeptos, é encontrada; e, entre os que se declaram convencidos da realidade dos factos que tem sido classificados como milagre, há numerosos literatos, cientistas e profissionais qualificados que sempre mantiveram um carácter ilibado, estão acima de qualquer imputação de falsidade ou mistificação e nunca manifestaram qualquer traço de insanidade. Esta crença também não se encontra confinada a qualquer seita ou partido. Pelo contrário, homens de todas as religiões e sem nenhuma religião são normalmente encontrados nas fileiras dos que acreditam; e, como já foi dito, muitos completamente cépticos à existência de quaisquer inteligências super-naturais no universo declararam que, pela força da evidência directa, eles foram, apesar de sua vontade, compelidos a acreditar que tais inteligências realmente existem.

Aqui está, com certeza, um fenómeno absolutamente único na história do pensamento humano. Ao examinar as evidências de prodígios similares ocorridos em épocas passadas, temos que fazer muitas concessões à educação primária e à quase universal crença pré-existente na possibilidade e frequente ocorrência de milagres e aparições sobrenaturais. Nos dias de hoje, é um facto notório que, entre as classes instruídas - e especialmente entre estudantes de medicina e ciência -, o cepticismo para com tais assuntos é quase universal. Mas o facto mais extraordinário, absolutamente inconsistente com qualquer teoria de fraude, falsidade ou auto-ilusão, é que, durante os 47 anos que se passaram desde o renascimento, na América, de uma crença no sobrenatural, não houve um único indivíduo que tenha cuidadosamente estudado o assunto e ficado sem aceitar a realidade dos fenómenos, e conquanto milhares tenham sido convertidos à crença, nenhum dos seus adeptos foi reconvertido à descrença. Enquanto os indivíduos peculiarmente constituídos, que são os médiuns (**) dos fenómenos, possam ser contados aos milhares, nenhum deles, em nenhum momento rejeitou a falsidade, se falsidade havia. E dos poucos que recebem pagamento para dar o seu tempo aqueles que desejam testemunhar as manifestações, é de se notar que nenhum tenha ainda tentado ser o primeiro no mercado com uma história cheia de aparatos maravilhosamente engenhosos e extraordinária habilidade que tivesse sido utilizada para fazer de tolos os muitos milhões de pessoas, e para estabelecer uma nova literatura e uma nova religião. Eles deveriam ser muito cegos para não verem que tal trabalho seria a mais rentável especulação.

Se há uma coisa que a filosofia moderna ensina mais consistentemente que qualquer outra é que não há conhecimento à priori dos fenómenos naturais ou das leis naturais. Mas declarar que quaisquer factos, testemunhados independentemente por diversas pessoas, sejam impossíveis, e agir de acordo com esta declaração a ponto de se recusar a examinar estes factos quando a oportunidade se dá, é considerar certo este conhecimento à priori da natureza que já foi universalmente descartado. Um dos nossos mais célebres homens de ciência cometeu este erro quando fez a afirmação infeliz de que, "antes de fazer algo para considerar qualquer questão envolvendo princípios físicos, precisamos estabelecer ideias claras sobre o que é naturalmente possível e impossível". Nenhum homem pode estar certo sobre estas ideias do possível, não importa o quão "claras" elas possam ser. Era "claramente impossível" às mentes dos filósofos em Pisa que um peso grande e um outro pequeno pudessem cair do topo de uma torre alta ao mesmo tempo; e, se este princípio possui qualquer utilidade, eles estariam correctos em descrer na evidência dos seus sentidos, que lhes asseguravam que isto aconteceu; e Galileu, que aceitou esta evidência, seria "não apenas ignorante com relação à formação de um julgamento, mas ignorante de sua ignorância", se usássemos as mesmas palavras desta autoridade eminente. Homens que repetidamente, e sobre condições que não deixam qualquer dúvida, testemunharam factos evidentes que os seus professores declaram não serem reais, mas se recusam a provar ser falsos pelo único meio possível, que é o de um amplo e imparcial exame, podem ser desculpados por pensarem que o seu caso é semelhante ao de Galileu e dos seus oponentes.

A fim de que os meus leitores possam julgar por si mesmos se a ilusão ou a fraude seria a melhor explicação para estes factos, ou se realmente fizemos uma descoberta mais importante e mais extraordinária que qualquer outra que tenha honrado o século XIX, eu proponho que se tragam algumas testemunhas, cujas evidências é bom que se ouça antes que se faça um julgamento apressado. Eu trarei pessoas de destaque ligadas à ciência, à arte ou à literatura e cuja inteligência e integridade ao narrarem as suas próprias observações estão acima de qualquer suspeita. Insistiria particularmente que nenhuma objecção geral tem qualquer peso contra a evidência directa dos factos, especiais, muitos dos quais são de tal natureza que absolutamente não há escolha entre acreditar que eles aconteceram, em ter que imputar a todos os que declaram tê-los testemunhado uma voluntária e propositada falsidade.

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(*) No continente europeu. Nota do tradutor.
(**) O autor usou o termo latino média, em lugar da palavra médiuns, criada por Kardec. Nota do tradutor.


Alfred Russel WallaceO Aspecto Científico Sobrenatural, III Os milagres modernos vistos como fenómenos naturais 2 de 2, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel, detalhe, de Edgard Maxence)

domingo, 5 de novembro de 2017

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~

A Irlanda

A história da Irlanda, através dos séculos, tem sido um longo martirológio. As perseguições sofridas obrigaram a metade da população a se expatriar, em busca de terra distante, deixando a ilha verdejante, tão cara para os corações célticos. Em menos de um século, a população caiu de oito para quatro milhões de habitantes. É desde essa época que se encontram os celtas em todas as partes do mundo.

Essa ilha é, entretanto, como vimos, o único país onde a língua céltica se revestiu de um carácter e de uma forma oficial. Rica, maleável, variada nas suas expressões, essa língua deu origem a uma literatura rica, na qual se reflecte toda a alma irlandesa, móvel, impressionável, sensível ao excesso e apaixonada por todas as grandes causas.

Frequentei, durante certo tempo, no Colégio de França, o curso de Literatura Céltica, de d’Arbois de Jubainville. Havia entre nós muitos irlandeses que ouviam, com avidez, a narração das proezas do seu herói nacional, Couhoulainn. Seguimos o texto gaélico num livro alemão, porque não existia a tradução francesa, e esta penúria – é preciso reconhecer, para nossa vergonha – não se encontra somente neste tipo de estudos.

O professor nos ensinava que os manuscritos em língua gaélica datam do século V, e ao se enumerar todos aqueles que foram publicados até ao século XV, verifica-se que eles representam matéria de mil volumes.         
       
Dessa obra volumosa brotam duas grandes fontes de inspiração, às quais os escritores irlandeses sempre consultam. Inicialmente, são as Epopéias Primitivas, colectânea de feitos históricos relativos à luta, longa e comovente, dos insulares contra os saxões invasores e opressores. É daí que os combatentes da última guerra da independência retiravam os exemplos e a lembrança que inflamavam a sua coragem e sustentavam o seu entusiasmo patriótico.

Depois, é a História Lendária dos Bardos e as Tríades, que na ordem filosófica e religiosa são como uma espécie de Bíblia para o mundo céltico e cuja paternidade é comum à Irlanda e ao País de Gales. Ela não foi fixada pela escrita a não ser no século VIII, ou pelo menos não se possui manuscritos mais antigos. Mas está estabelecido que esses cantos e essas Tríades eram transmitidos oralmente, há muitos séculos, e que a sua origem se perde na noite dos tempos. Sabe-se que o ensino esotérico dos druidas era reservado unicamente aos iniciados e que não se podia transcrevê-lo a não ser na forma de uma escrita em vegetal, simbólica, cujo segredo somente era comunicado aos adeptos.

Apenas quando o poder dos druidas foi extinto e os bardos foram perseguidos é que se pensou em recolher esse ensino e entregá-lo à publicidade.

Encontram-se sinais dessas altas inspirações em toda a obra literária da Irlanda, junto ao culto ardente da Natureza, que é uma das formas do génio céltico. A sua rica poesia reflecte o encanto penetrante dessa ilha verdejante com as suas florestas profundas, os seus lagos sombrios, os seus horizontes brumosos e as costas abruptas, recortadas, onde as ondas lançam os seus queixumes eternos.

Em todos os lugares pairam enxames de almas: duendes, gnomos, génios tutelares ou malfeitores, aos quais se misturam as almas dos mortos, os espíritos, cujo fluido material, paixões, ódios e amores encadeiam à Terra, e que se tornam errantes, aguardando uma reencarnação nova, visto que, neste ponto, os textos são formais: a Irlanda acreditava na pluralidade das vidas humanas.

Em todas as épocas, e talvez mais do que em algum outro país, a Irlanda teve então a intuição, o sentido íntimo e profundo da vida invisível, do mundo oculto, desse oceano de forças e de vida, povoado de multidões inumeráveis, cuja influência se estende sobre nós e, conforme as nossas disposições psíquicas, nos protege ou nos atormenta, nos entristece ou nos arrebata.

É porque na história da Irlanda, como na Escócia, os feiticeiros exercem uma grande função. Os próprios santos possuiam poderes misteriosos que se poderiam comparar ao magnetismo e ao dom da mediunidade. Para nos convencermos disso podem ser lidas as biografias de S. Patrício e de S. Colombano, padroeiros da ilha.

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LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO II – A Irlanda 1 de 3, 8º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, OssianDesaixKléberMarceau,HocheChampionnet, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

O Espiritismo na Arte ~


Parte II

– Comportamento de outros espíritos diante de o Esteta

As duas lições de o Esteta que vamos ler, têm por assunto a inspiração, considerada na sua causa e nos seus efeitos gerais, tanto na Terra como no espaço.

Nas nossas reuniões, essas lições prosseguem com regularidade a cada semana, porém, ainda ignoramos o nome e a personalidade verdadeira do seu autor. No entanto, observamos que os espíritos familiares do nosso grupo se afastam com respeito e apenas se calam diante dele; o guia do médium vem, após a partida de o Esteta, e diz-nos algumas palavras de amizade e de encorajamento, declarando-se “acanhado pela superioridade e a irradiação desse grande espírito”.

Qualquer que seja o valor do estilo, nós nos empenhamos em reproduzir fielmente o pensamento do autor, evitando com cuidado tudo o que pudesse alterar o seu sentido, mesmo em benefício da forma.

Terceira lição, de O Esteta

– Inspiração: causa, efeitos, formas – A verdadeira arte

|29 de Novembro de 1921|

“Eu gostaria de vos falar sobre a inspiração. É um procedimento de transmissão da luz divina; ela se produz sob diversas formas, porquanto a arte, com as suas inúmeras ramificações, se aproxima em graus diversos desse plano divino do qual vos falo.

Quando, no espaço, o espírito de um artista decidiu reencarnarleva com ele as amizades de seres queridos que, por causas diversas, devem ficar no espaço. Mas, por intuição, esses amigos enviarão a esse ser, aprisionado na carne, fluidos provenientes do seu meio e ideias que darão novo impulso à parcela de talento que existe nele e que, sob o domínio da carne, estaria bastante propensa a ficar adormecida.

A inspiração tem duas formas: uma pessoal, outra mais ampla, transmitida por espíritos elevados que haurem a arte das fontes mais puras e comunicam os seus efeitos a um ser que os emprega de forma ordenada pelos seus próprios meios e naturalmente.

A inspiração pessoal é a mais comum. Fica sabendo que um ser que é capaz de experimentar esse fenómeno já é evoluído; a sua evolução se realizará por etapas. Em cada uma das suas vidas, ele terá um período mais marcante que outros, aquele em que o trabalho foi mais obstinado e, por consequência, mais produtivo; dele resultarão aquisições que se acumularão no perispírito. Na existência seguinte, essas aquisições voltarão a aparecer sob a forma de um dom inato. Esse dom, para os que não são iniciados, se denominará inspiração. Mas essa inspiração não tem senão um carácter humano; em geral ela é fria, não sendo animada pelas luzes divinas.

Para tornar essa inspiração mais bela, mais elevada, é preciso impregná-la de ideal e de fluidos que emanam do foco divino.

Chegamos assim à segunda forma de inspiração. Fica sabendo que os amigos invisíveis velam pelos seres que eles sentem que são dignos de serem protegidos e encorajados. Do espaço, os espíritos superiores pressentem a pequena chama criada pela inspiração pessoal. Para torná-la mais brilhante, pela prece, se Deus o permite, esses guias irão buscar, nas esferas onde reinam radiações maravilhosas, os elementos da vida criadora que alimentarão essa pequena chama e dela farão brotar centelhas de talento.

Pode acontecer que o corpo humano seja um pouco perturbado por essas forças. Quando os átomos físicos não podem resistir a esse influxo, produz-se uma desordem no organismo. É o que explica os homens de talento terem, algumas vezes, falta de equilíbrio.

Eis a explicação material do fenómeno. O que sentirá o ser sob o efeito de uma inspiração? Se ele é suficientemente sensível, quando uma ideia, um pensamento que ele não podia prever, aflorar ao seu cérebro, ele o assimilará como um receptor telefónico que recebe ondas eléctricas e vibra à sua passagem. Ele é um pintor? De repente, sobre a sua paleta, ele encontrará o segredo da mistura das cores que irá produzir uma nova cor, adaptando-se admiravelmente ao movimento de traços que torna o rosto expressivo ou ao relevo que deve ser dado a um quadro que está em execução. Ele é um pensador? Um escritor? Um poeta? Desse mesmo cérebro brotarão a ideia, a imagem, a expressão que devem realçar e ilustrar a obra que tem necessidade de revestir uma forma mais elevada e mais colorida. Ele é um músico? No momento em que menos esperar, um acorde, uma série harmónica, uma melodia, virão, pela sua suavidade, a sua pureza, a sua riqueza, dar à sua composição, um brilho que ela não teria conseguido adquirir. Se o ser humano é, desde o seu nascimento, tornado por um ideal, podes calcular os novos tesouros que se ligarão a ele. A arte ideal é uma das formas da prece, o seu pensamento atrairá amigos invisíveis muito elevados; a ele será fácil fazer realçar o brilho da chama acesa anteriormente e, da alma do artista, brotarão obras inspiradas pelo belo e pelo divino.

Geralmente é necessário que um artista fique num meio são, porque a chama criadora que o anima pode extinguir-se, sob a influência de um ambiente fluídico carregado de moléculas materiais. A verdadeira arte não procura os prazeres da mesa, da carne, e aqueles dos quais o espírito e o cérebro não participam.

No vosso país, a França, tens artistas maravilhosos que criaram obras admiráveis em todos os domínios. Os artistas da Renascença constituíram, devo dizer, uma plêiade inspirada por um número não menor de grandes artistas do espaço. Esses artistas da Renascença haviam encontrado a sua fonte criadora na Antiguidade grega e latina. Após terem vivido na Grécia, no Egipto e em Roma, retornaram ao espaço. Lá seus conhecimentos se ampliaram, adquiriram um brilho, uma aparência particular e, quando reencarnaram, deixaram o paganismo para celebrar, em todos os domínios, a glória de Deus, da qual eles se tinham impregnado durante a sua última passagem nas esferas celestes. As suas vidas anteriores sobre a Terra haviam sido consagradas a um trabalho de base, isto é, à preparação dessa pequena chama que devia ser como um dos pólos atractivos da essência divina. É por essa razão que a obra dos pintores, dos escultores e dos músicos dessa época tem essa cor de piedade, de doçura, de quietude que não encontras na época presente.

Na minha próxima exposição, eu vos falarei da inspiração na vossa época. Nalguns ela também é bela, porém, as características não são as mesmas. A inspiração actual, onde se misturam novos pontos de vista, deve contribuir para uma transformação geral da humanidade, por uma evolução no pensamento, aproximando-se e comunicando-se com o mundo invisível, intermediário do plano divino.”

/…


LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte II – Comportamento de outros espíritos diante de o Esteta, Terceira lição (de O Esteta) – Inspiração: causa, efeitos, formas – A verdadeira arte, 8º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: A Virgem e o Menino com Santa Ana, 1508 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

terça-feira, 10 de outubro de 2017

literatura do além-túmulo ~

Capítulo I

Entre as numerosas formas que revestem as manifestações mediúnicas de natureza inteligente, não nos devemos esquecer das que consistem na produção de obras literárias, às vezes bem volumosas, ditadas psicograficamente por entidades que dizem ser espíritos de mortos.

 Há necessidade de notar que grande número dessas produções mediúnicas não resistem a uma análise crítica, mesmo a mais superficial, de tal modo é evidente serem apenas o produto de uma elaboração onírico-subconsciente, de natureza grosseira e mais ou menos incoerente, com personalizações sonambúlicas que se formaram por sugestão ou auto-sugestão.

Essas personificações devem, em toda a parte, nesses casos, ter origem nos recursos do talento e da instrução própria às personalidades conscientes de que provêm, com a consequência de que as obras literárias dos supostos espíritos que julgam comunicar-se são, algumas vezes, tão rudimentares, que traem a sua origem, sem que se possa ter a menor dúvida a esse respeito.

Não é menos verdade que, ao lado dos pseudo-médiuns, encontram-se médiuns autênticos, por intermédio dos quais se obtêm, às vezes, obras literárias de grande mérito, que levam a uma reflexão séria e não podem ser atribuídas a uma elaboração subconsciente da cultura geral, muito limitada, que se reconhece nos médiuns que, materialmente, as escreveram. É então necessário deduzir logicamente daí que essas produções provenham de intervenções estranhas aos médiuns, tanto mais se se consideram não somente as provas que se deduzem da forma, estilo, técnica individual da obra literária e também da identificação de escrita, como outras provas não menos importantes.

Essas provas consistem, sobretudo, em indicações pessoais ignoradas de todos os assistentes e das quais se verifica, em seguida, a veracidade; em citações não menos verídicas e desconhecidas de todos, com referência a elementos históricos, geográficos, topográficos, filológicos, de natureza complexa e quase sempre rara, enfim, em descrições minuciosas, coloridas e vivas, de meios e costumes referentes a povos bem antigos, circunstâncias que não poderiam ser esquecidas pela hipótese cómoda da emergência subconsciente de noções adquiridas e, em seguida, esquecidas (criptomnesia).

Proponho-me, neste estudo, analisar as principais manifestações desse género, principalmente porque foram obtidos, ultimamente, ditados mediúnicos que revestem alto valor teórico, num sentido nitidamente espírita.

O que se obteve, no passado, nessa categoria de manifestações, só tem rara importância teórica; de qualquer forma, não me absterei de dizer algumas palavras a respeito delas.

Começo por um caso de transição referente a uma célebre obra literária. Tudo o que se pode dizer a seu respeito é que não é fácil considerar se as modalidades, pelas quais veio à luz, devem ser atribuídas a intervenções estranhas à médium ou bem a um estado de superexcitação psíquica, bastante frequente nas “crises de inspiração”, às quais são sujeitas as mentalidades geniais. Em todo o caso, trata-se de um facto interessante e instrutivo, dadas a notoriedade da autora e a influência considerável que a obra literária em questão exerceu sobre acontecimentos históricos e sociais de uma grande nação.

Quero referir-me à célebre escritora sra. Harriet Beecher-Stowe e ao seu bem conhecido romance A Cabana do Pai Tomás, o qual muito contribuiu para a abolição da escravatura nos Estados Unidos da América.

O meio familiar em que viveu Harriet Beecher-Stowe pode ser considerado como favorável a intervenções espirituais.

O prof. James Robertson assim fala na Light (1904, pág. 338):

“O marido, prof. Stowe, era médium vidente. Ele viu muitas vezes, à sua volta, fantasmas de defuntos, de maneira tão nítida e natural que por vezes lhe era difícil discernir os espíritos “encarnados” dos “desencarnados”.”

Quanto à sra. Beecher-Stowe, ela era também grande sensitiva, “sujeita a crises frequentes de depressão nervosa com fases de ausência psíquica”. Ela acolhera com entusiasmo o movimento espírita que se iniciara na América, havia alguns anos.

Relativamente ao seu grande romance A Cabana do Pai Tomás, extraio da Light (1898, pág. 96) as seguintes informações:

“A sra. Howard, amiga íntima da sra. Beecher-Stowe, forneceu essas curiosas indicações relativamente às modalidades nas quais o famoso romance foi escrito. As duas amigas estavam em viagem e pararam em Hartford para passarem a noite em casa da sra. Perkins, irmã da sra. Stowe. Elas dormiram no mesmo quarto. A sra. Howard despiu-se imediatamente e ficou, do seu leito, observando a sua amiga ocupada em pentear, automaticamente, os seus cabelos anelados, deixando transparecer no seu rosto intensa concentração mental. Nesse ponto, a narradora continua assim:

Finalmente Harriet pareceu sair desse estado e disse-me:

– Recebi, nesta manhã, cartas de meu irmão Henry que se mostra bastante preocupado a meu respeito. Ele teme que todos esses elogios, que toda esta notoriedade que se criou em torno de meu nome, produzam o efeito de provocar em mim uma chama de orgulho que possa prejudicar a minha alma de cristã.

Dizendo isto, pousou o pente, exclamando:

– O meu irmão é, incontestavelmente, uma bela alma, porém ele não se preocuparia tanto com esse caso se soubesse que esse livro não foi escrito por mim.

– Como – perguntei eu, estupefacta –, não foi você quem escreveu A Cabana do Pai Tomás?

– Não – respondeu ela –, não fiz outra coisa senão tomar nota do que via.

– Que está a dizer? Então você nunca foi aos Estados do Sul?

– É verdade, todas as cenas do meu romance, uma após as outra, se me desenrolaram diante dos olhos e eu descrevi o que via.

Perguntei ainda:

– Pelo menos você regulou a sequência dos acontecimentos.

– De modo nenhum – respondeu-me ela –; a sua filha Annie me censura por ter feito morrer Evangelina. Ora, isso não foi por minha culpa; não podia impedi-lo. Senti-o mais do que todos os leitores; foi como se a morte tivesse atingido uma pessoa de minha família. Quando a morte de Evangelina se deu, fiquei tão abatida que não pude retomar a pena por mais de duas semanas.

Perguntei-lhe então:

– E sabia que o pobre pai Tomás devia, por sua vez, morrer?

– Sim – respondeu-me ela –, isso eu o sabia desde o princípio, porém ignorava de que morte iria morrer. Quando cheguei a esse ponto do romance, não tive mais visões durante algum tempo.”

Em outro número da mesma revista, (1918, pág. 325), relatou-se o seguinte episódio sobre o mesmo assunto:

“Certa tarde, a sra. Beecher-Stowe passeava sozinha, como de hábito, no parque. O capitão X. viu-a, aproximou-se dela e, descobrindo-se respeitosamente, disse-lhe: Na minha mocidade, li também com intensa emoção A Cabana do Pai Tomás. Permiti-me apertar a mão da autora do célebre romance. A escritora, septuagenária, estendeu-lhe a mão, notando, entretanto, vivamente:

– Não fui eu quem o escreveu.

– Como, não foi a senhora? – perguntou o capitão, surpreso –. Quem o escreveu então?
Ela respondeu:

– Deus o escreveu. Foi Ele quem ma ditou.”

Na primeira das duas passagens acima, que acabo de citar, nota-se uma emergência espontânea da subconsciência da autora, consistindo em visões cinematográficas que traçam a acção do romance, o que oferece grandes analogias com as modalidades da cerebração donde saíram romances de outros autores de génio, tais como Dickens e Balzac. Estes últimos, por sua vez, viam desfilar, subjectivamente, as cenas e os personagens que tinham imaginado. A diferença entre as suas visões e as da sra. Beecher-Stowe parece, então, consistir nesta última circunstância: eles assistiam ao desenvolvimento de acontecimentos que a sua imaginação consciente tinha criado, ao passo que a sra. Beecher-Stowe assistia, passivamente, ao desenrolar de eventos que não tinha criado e que estavam, muitas vezes, em oposição absoluta à sua vontade, pois que, por ela, não teria feito morrer duas santas personagens do seu romance.

Esta circunstância é importante e parece fazer distinguir as visões subjectivas, comuns aos escritores de génio, das tidas pela sra. Beecher-Stowe, da mesma maneira que as “objectivações de tipos”, estereotipadas e automatizadas, que se obtêm pela sugestão hipnótica, não apresentam nada de comum com as personalidades mediúnicas, independentes e livres, que se manifestam por intermédio de verdadeiros médiuns.

A presunção de que não se tratava de visões puramente subjectivas adquire mais eficácia ainda graças à segunda das duas passagens já citadas, na qual a sra. Beecher-Stowe declara, explicitamente, ter transcrito o seu romance como ele lhe fora ditado, o que prova que a célebre autora era médium escrevente, circunstância que se encontra confirmada por factos assinalados na sua biografia, segundo os quais ela era sujeita a “fases de ausência psíquica” que eram, com toda a verosimilhança, estados superficiais de transe.

Noutro ponto de vista, faço notar que a exclamação da sra. Beecher-Stowe: “Deus o escreveu”, subentende que o ditado mediúnico se realizou sob forma anónima, isto é, que o agente espiritual operante ocultava a própria individualidade, limitando-se, ao que parece, a cumprir na Terra a missão de que se encarregara: a de contribuir, eficazmente, graças a uma narrativa emocionante e pungente, para a obra humanitária da redenção de uma raça oprimida.

Julguei poder tirar do caso a conclusão que venho de narrar. Todavia, não insisto nela, considerando que estas induções não são suficientes para concluir a favor da origem realmente espírita do romance em questão.

É necessário, todavia, notar que as bases sobre as quais repousam as induções a favor de uma explicação puramente subjectiva dos estados da alma por que passou a autora, quando trabalhava no seu grande romance, parecem bem mais fracas, quando são analisadas, que as da interpretação espírita dos mesmos factos.

/... 


Ernesto Bozzano, Literatura do Além-túmulo, Capítulo I – A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher-Stowe. 2º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac | 1900, tempera no painel de Edgard Maxence)

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Victor Hugo | uma chama de fogo a iluminar as idades

~~~ Victor Hugo e as Vidas Sucessivas do Ser ~

O autor de Contemplações não negava as vidas sucessivas da alma; ao contrário, acreditava nelas como em uma teoria infinita pela qual o Ser, passando de um longínquo histórico a um novo tempo, se engrandece espiritualmente. Sentia-se protagonista da grande evolução palingenésica (i) da humanidade; por isso, as idades distintas do passado repercutiam vivamente em sua sensibilidade poética. A visão cosmológica que possuía aproximava-o do pensamento de Camille Flammarion, que pregou a doutrina da pluralidade dos mundos habitados em relação com a pluralidade da existência da alma. O universo era para o poeta como um palco no qual o espírito age para subir os degraus do infinito. Aceitava, pois, a concepção de Kardec resumida no lema: "Nascer, morrer, renascer e progredir sempre, esta é a lei". Neste aspecto, Victor Hugo coincidia com grandes poetas como GoetheWhitmanLamartineEmerson e outros que, por suas ideias palingenésicas, foram colocados sob o signo da Cruz Ansata (i).

Quando o poeta disse que "a origem tem um ontem e o túmulo um amanhã'' fez declaração pública de suas ideias filosóficas baseadas na reencarnação. O seu génio imenso e abrangente não resistia às limitações de uma existência única para a alma. Não obstante as interpretações teológicas, Hugo acreditava que Jesus havia falado de um homem palingenésico quando, dirigindo-se a Nicodemos, disse: "Necessário vos é nascer de novo".

Ler o seu estudo sobre As Almas é verificar de que forma o poeta penetrou no drama dos espíritos, cujas características particulares, tão diferentes entre si, comprovam os variados desenvolvimentos de cada ser, facto que revela o processo palingenésico vivido pelas almas. Para Victor Hugo, o homem não é um composto físico-químico que se perde no nada com a decomposição. Concebia o homem como um espírito reencarnado que traz a sua própria história realizada nas vidas anteriores. Nesse sentido, a poesia revela-se como uma acumulação de elevadas virtudes morais que se transformam em harmonia e beleza. Isto porque a beleza para o poeta palingenésico é uma expressão superior do Ser, pela qual penetra na essência religiosa da criação. O homem entra e sai do processo histórico mediante a lei da reencarnação e, à medida em que se liberta do mundo material, liga-se com a realidade do espírito imortal.

Victor Hugo participava dessa legião de espíritos iluminados a que pertenciam Giuseppe MazziniEmilio CastelarGiuseppe GaribaldiPi y Margal, os que se inspiravam moral e socialmente nas ideias palingenésicas. Mas em Hugo a intuição que o fez compreender que "a origem tem um ontem e o túmulo um amanhã'' manifestou-se com sonoridades enraizadas no cósmico e no divino. O seu génio poético permitiu-lhe sentir a presença do passado palingenésico tal como o percebeu na "Terra Santa" Alphonse de Lamartine. De facto, foi ali que o autor de Jocely se recordou de uma vida anterior relacionada com os tempos apostólicos.

Victor Hugo confirmou as suas convicções palingenésicas no final dos seus dias, quando disse: "Faz meio século que escrevo em prosa e verso; história, filosofia, drama, legenda, sátira, ode, canção; de tudo tenho tratado, mas sinto que não disse mais que a milionésima parte do que sinto em mim. Quando estiver no túmulo, direi: 'terminei a minha jornada' e não 'terminei a minha vida'. A minha existência recomeçará no outro dia. O túmulo não é um beco sem saída mas uma avenida. A minha obra é apenas um princípio e a sede do infinito prova que existe o infinito.

"Sou homem, mas sou uma partícula divina que, insignificante como sou, me sinto Deus porque eu também ponho ordem no meu caos interior.

"Viverei mil vidas futuras, continuarei a minha obra, de século em século escalarei todas as rochas, todos os perigos, todos os amores, todas as paixões, todas as angústias e depois da ascensão, mil vezes, livre, transformado, o meu espírito voltará à sua fonte, unindo-se com a realidade absoluta, como o raio de luz retorna ao Sol".

O grande poeta francês era um lírico profundamente religioso: daí os seus ímpetos por uma vida eterna e renovada pela reencarnação. Como muitos outros génios poéticos, uniu-se à concepção de um ser infinito e espiritual que nasce, morre e renasce. O seu espírito aspirava por "entrar e sair" da humanidade, a fim de participar existencialmente em todos os processos históricos e sentir-se protagonista em todos os episódios da história universal.

Este mistério palingenésico do homem e do universo é que porá a descoberto a Nova Poesia, a excelsa. A Gaia Ciência dos grandes poemas humanos e sobre-humanos. A nova poesia, como foi sentida por Hugo, Whitman, Goethe, NervoCapdevila e outros grandes poetas, revelará cada vez mais à humanidade que sem "vidas sucessivas" tudo estará desvinculado no grande processo da criação. Por outro lado, com o homem palingenésico, ou seja, o ser que nasce, morre e renasce tudo se une e entrelaça no universo. A história mostra-se como um processo universal determinado pelo ''processo individual" dos espíritos encarnados. Victor Hugo cantou esse renascimento incessante das almas para que o homem compreenda que ele está sempre presente em todos os períodos da história.

No poema O aparecido do seu livro Contemplações, a ideia do regresso palingenésico dos espíritos está dramaticamente descrita. Fala de uma mãe que adorava o seu filhinho e sonhava para ele um futuro radiante. Mas um dia, disse o poeta, "esse corvo chamado crupe penetrou bruscamente naquele lar feliz e, arrojando-se sobre o menino, pegou-o pela garganta". A mãe infeliz, vendo-se sem o filho querido, destruído pelas garras da morte, "ficou imóvel três meses, os olhos fixos, murmurando um nome ininteligível e olhando sempre para a mesma parte da parede".

Mais adiante, diz o poeta: "O tempo passou, passaram-se os dias, semanas e meses e aquela mulher soube que seria mãe pela segunda vez''.

Quando pressentiu a vinda do novo filho, a mãe "empalideceu e lançou um grito: – Quem é este ser estranho? exclamou. E, caindo de joelhos, acrescentou: 'Não, não o quero; o meu filho morto teria ciúmes e me pressionaria por acreditar que o houvesse esquecido e que outro ocupava o seu lugar: ''a minha mãe quere-o, concebe-o formoso, ri com ele e beija-o; mas eu, eu estou no túmulo! Não, não o quero! "Fazia-a falar assim a sua dor profunda".

"Quando amanheceu – continua o poeta – vendo que o seu marido era pai de outro filho, a mulher exclamou, agitada: É menino! O marido, porém, era o único que estava alegre em casa; a mãe permaneceu triste, sem esquecer o filho morto. Trouxeram-lhe o recém-nascido, deixou que viesse e o apertou no seu peito; imediatamente, porém, pensando sem cessar mais no filho morto do que naquele ali, preocupando-se mais com a mortalha do que com as mantas, exclamou: – Está só no túmulo aquele anjo! Mas, por um milagre que fez voltar a sua alegria, aquela mãe ouviu que o recém-nascido falava nos seus braços, com voz familiar, e dizia baixinho: – Sou eu!.. mas não o digas!"

De facto, o filho morto havia regressado através da grande lei da reencarnação. O ser chorado e tão desesperadamente invocado havia voltado às entranhas de sua mãe e por elas renascido para acalmar a sua dor e continuar, dessa forma, o seu ciclo de crescimento espiritual.

Com este poema, Victor Hugo venceu a escuridão, o túmulo e afirmou à cultura filosófica do seu tempo que o homem é uma entidade imortal que encarna e desencarna para alcançar estados superiores e divinos. Nesse mesmo poema deu à maternidade um novo significado filosófico e religioso quando diz: "Oh mães! O nascimento começa com o túmulo. A eternidade guarda mais do que um segredo divino".

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Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, VICTOR HUGO E AS VIDAS SUCESSIVAS DO SER, 7º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Victor Hugo | 1879, retratado por Léon Bonnat)