quarta-feira, 30 de abril de 2014

cada uma das volições do nosso pensamento, executa a sua evolução e volta com os seus efeitos ~

Justiça, Solidariedade, Responsabilidade ~

Tanto no moral como no físico, tudo se encadeia e liga no Universo. Na ordem dos factos, desde o mais simples ao mais complexo, tudo é regulado por uma lei; cada efeito se prende a uma causa e cada causa engendra um efeito que lhe é idêntico. Daí, no domínio moral, o princípio de justiça, a sanção do bem e do mal, a lei distributiva, que dá a cada um segundo as suas obras. Assim como as nuvens formadas pela vaporização solar se resolvem fatalmente em chuva, assim também as consequências dos actos praticados recaem inevitavelmente sobre os seus autores. Cada um desses actos, cada uma das volições do nosso pensamento, segundo a força que os impulsiona, executa a sua evolução e volta com os seus efeitos, bons ou maus, para a fonte que os produziu. O mal, do mesmo modo que o bem, torna ao seu ponto de partida em razão da afinidade de sua substância. Há faltas que produzem os seus efeitos mesmo no curso da vida terrena. Outras, mais graves, só fazem sentir as suas consequências na vida espiritual e, muitas vezes até, nas encarnações ulteriores.

A pena de talião nada tem de absoluto, mas não é menos verdade que as paixões e malefícios do ser humano produzem resultados sempre idênticos, aos quais ele não pode subtrair-se. O orgulhoso prepara para si um futuro de humilhações, o egoísta cria o vácuo ou a indiferença, e duras privações esperam os sensuais. É a punição inevitável, o remédio eficaz que deve curar o mal na sua origem. Tal lei cumprir-se-á por si própria, sem haver necessidade de alguém constituir-se algoz dos seus semelhantes.

O arrependimento, em ardente apelo à misericórdia divina, pondo-nos em comunicação com as potências superiores, devem emprestar-nos a força necessária para percorrermos a via dolorosa, o caminho de provas delineado pelo nosso passado; porém, nada, a não ser a expiação, apagará as nossas faltas. Só o sofrimento, esse grande educador, poderá reabilitar-nos.

A lei de justiça não é mais que o funcionamento da ordem moral universal, as penas e os castigos representam a reacção da Natureza ultrajada e violentada nos seus princípios eternos. As forças do Universo são solidárias, repercutem e vibram unissonamente. Toda a potência moral reage sobre aquele que a infringir e proporcionalmente ao seu modo de acção. Deus não fere a pessoa alguma; apenas deixa ao tempo o cuidado de fazer dimanar os efeitos de suas causas. O homem é, portanto, o seu próprio juiz, porque, segundo o uso ou o abuso de sua liberdade, torna-se feliz ou desditoso. Às vezes, o resultado dos seus actos faz-se esperar. Vemos neste mundo criminosos calcarem a sua consciência, zombarem das leis, viverem e morrerem cercados de respeito, ao mesmo tempo em que pessoas honestas são perseguidas pela adversidade e pela calúnia! Daí a necessidade das vidas futuras, em cujo percurso o princípio de justiça encontra a sua aplicação e onde o estado moral do ser encontra o seu equilíbrio. Sem esse complemento necessário não haveria motivo para a existência actual e quase todos os nossos actos ficariam sem punição.

Realmente, a ignorância é o mal soberano donde procedem todos os outros. Se o homem visse distintamente a consequência do seu modo de proceder, a sua conduta seria outra. Conhecendo a lei moral e sua aplicação inevitável, não mais tentaria transgredi-la, do mesmo modo que nada faz por opor-se à gravitação natural dos corpos ou a outra qualquer lei física.

Essas ideias novas ainda mais fortalecem os laços que nos unem à grande família das almas. Encarnadas ou desencarnadas, todas as almas são irmãs. Geradas pela grande mãe, a Natureza, e por seu pai comum, que é Deus, elas perseguem destinos análogos, devendo-se todas um mútuo auxílio. Por vezes, protegidas e protectoras, coadjuvam-se na marcha do progresso e, pelos serviços prestados, pelas provas passadas em comum, fazem desabrochar em si os sentimentos de fraternidade e de amor, que são uma das condições da vida superior, uma das modalidades da existência feliz.

Os laços que nos prendem aos irmãos do espaço ligam-nos mais estreitamente ainda aos habitantes da Terra. Todos os homens, desde o mais selvagem até ao mais civilizado, são Espíritos semelhantes pela origem e pelo fim que têm de atingir. No seu conjunto, constituem uma sociedade, cujos membros são solidários e na qual cada um trabalhando pelo seu melhoramento particular participa do progresso e do bem geral. A lei de justiça, não sendo mais que a resultante dos actos, o encadeamento dos efeitos e das causas, explica-nos por que tantos males afligem a Humanidade. A história da Terra é uma urdidura de homicídios e de iniquidade. Ora, todos esses séculos ensanguentados, todas essas existências de desordens reúnem-se na vida presente como afluentes no leito de um rio. Os Espíritos que compõem a sociedade actual nada mais são que homens de outrora, que vieram sofrer as consequências das suas vidas anteriores, com as responsabilidades daí provenientes. Formada de tais elementos, como poderia a Humanidade viver feliz? As gerações são solidárias através dos tempos; vapores de suas paixões envolvem-nas e seguem-nas até ficarem completamente purificadas. Essa consideração faz-nos sentir mais intensamente ainda a necessidade de melhorar o meio social, esclarecendo os nossos semelhantes sobre a causa dos males comuns e criando em torno de nós, por esforços colectivos, uma atmosfera mais sã e pura. Enfim, o homem deve aprender a medir o alcance de seus actos, a extensão de sua responsabilidade, a sacudir essa indiferença que fecunda as misérias sociais e envenena moralmente este planeta, onde talvez tenha de renascer muitas vezes. É necessário que um influxo renovador se estenda sobre os povos e produza essas convicções onde se originam as vontades firmes e inabaláveis. É preciso também todos saberem que o império do mal não é eterno, que a justiça não é uma palavra vã, pois ela governa os mundos e, sob o seu nível poderoso, todas as almas se curvam na vida futura, todas as resistências e rebeliões se anulam.

Da ideia superior de justiça dimanam, portanto, a igualdade, a solidariedade e a responsabilidade dos seres. Esses princípios unem-se e fundem-se num todo, numa lei única que domina e rege o Universo inteiro: o progresso na liberdade. Essa harmonia, essa coordenação poderosa das leis e das coisas não dará da vida e dos destinos humanos uma ideia maior e mais consoladora que as concepções niilistas, ou do nada? Nessa imensidade, onde tudo é regido por leis sábias e profundas, onde a equidade se mostra mesmo nos menores detalhes, onde nenhum acto útil fica sem proveito, nenhuma falta sem castigo, nenhum sofrimento sem compensação, o ser sente-se ligado a tudo que vive. Trabalhando para si e para todos, desenvolve livremente as suas forças, vê aumentarem as suas luzes e multiplicarem a sua felicidade.

Comparem-se essas perspectivas com as insípidas teorias materialistas, com esse universo horrível onde os seres se agitam, sofrem e passam, sem afeições, sem rumo, sem esperança, percorrendo vidas efémeras, como pálidas sombras, saídas do nada, para sumirem-se na noite e no silêncio eterno. Digam qual dessas concepções oferece mais possibilidades de sustentar o homem nas suas dores, de modificar o seu carácter e de arrastá-lo para os altos cimos!

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LÉON DENIS, Depois da Morte, Parte Quarta – Além Túmulo – XXXIX Justiça, Solidariedade, Responsabilidade, fragmento solto.
(imagem de contextualização: Le Chemin du Marché, Finistère 1878, detalhe, pintura de Emile-Auguste Hublin)

sexta-feira, 25 de abril de 2014

o sentido da vida ~

Deus | e o Homem

As religiões apontam contra o Espiritismo aquilo que chamam de a palavra de Deus, citando os versículos do primeiro livro de Moisés, na Bíblia, a Génese, que afirma haver Deus criado o homem à sua imagem e semelhança. De acordo com esse princípio, aparentemente bíblico, o homem tem de ser elemento à parte na criação, porque é a própria imagem de Deus colocado dentro do Universo. O Espiritismo nos mostra, porém, que esse conceito, ao invés de elevar o homem, diminui a DeusKardec nos diz, por isso mesmo, no número 12 do capítulo XII de A Génese:

“Não rejeitemos, pois, a Génese bíblica; estudemo-la, ao contrário, como se estuda a história da infância dos povos”.

Em O Livro dos Espíritos, livro básico da doutrina, encontramos a seguinte definição de Deus: “... é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.” Vemos, portanto, que Deus não foi esquecido, nem ficou à margem, mas continua colocado, com mais justeza e maior razão, na base de tudo quanto existe.

Comentando a teoria científica de que as coisas do Universo provêm das propriedades íntimas da matéria, sem intervenção de qualquer outro princípio, Kardec diz, nesse mesmo livro:

“Atribuir a formação primordial das coisas às propriedades intrínsecas da matéria seria tomar o efeito pela causa, pois que essas propriedades são, por sua vez, efeitos que devem ter uma causa.”

Sabemos, além disso, que a natureza do efeito decorre sempre da natureza da causa. Analisando o Universo, pelo que dele podemos aprender, vemos que os seus efeitos são de natureza inteligente, e se entrosam de maneira tão harmónica, tão perfeita, que só podem decorrer de uma causa inteligente.

Vemos, nesse ponto, que o Espiritismo estabelece uma estreita relação entre a Ciência e a Religião, por meio da Filosofia. Sem negar a existência de Deus, ele contraria a concepção antropomórfica das religiões e estabelece uma teoria que, embora não tenha carácter experimental imediato, não deixa de ser tipicamente científica. Deus já não é matéria de crença, simplesmente. É objecto de dedução filosófica, mas seguindo os métodos de observação do pensamento científico.

No tocante à formação do homem à imagem e semelhança de Deus, mais uma vez não vemos razão para o escrúpulo e o espanto dos religiosos. Diz a Génese bíblica que o homem foi feito de terra, e embora não aceitando literalmente a imagem de um boneco de barro feito por alguém, que seria Deus, o Espiritismo aceita o princípio de que o homem procede do barro terreno, de que a vida orgânica teve princípio, juntamente com o desenvolvimento mental e psíquico, na argila fecunda dos primeiros tempos da formação planetária. A Bíblia nos apresenta, pois, apenas uma imagem daquilo que teria ocorrido, na distância dos milénios. Deus falou, através da Bíblia, por meio de parábolas, como tantas vezes falou Cristo, na sua passagem terrena, para os homens de seu tempo.

“Mas – dirão os religiosos apegados ao texto –, e onde ficam a imagem e semelhança de Deus, na formação do homem?”

De facto, não podemos conceber Deus como um animal vertebrado, da classe dos mamíferos, embora superior ao homem, por atributos cósmicos que esse ainda não conseguiu obter. O Espiritismo não admite que a nossa forma orgânica, material, seja a forma do próprio Deus.

À pergunta formulada por Allan Kardec, no primeiro capítulo de O Livro dos Espíritos

“Pode o homem compreender a natureza íntima de Deus?”, responderam os espíritos que o assistiam no trabalho de codificação da doutrina:

“– Não, pois lhe falta o sentido necessário.”

Mais adiante, no mesmo capítulo, o próprio Kardec esclarece:

“A inferioridade das faculdades do homem não lhe permite compreender a natureza íntima de Deus. Na infância da Humanidade o homem o confunde muitas vezes com a criatura, cujas imperfeições lhe atribui; mas, à medida que nele se desenvolve o senso moral, o seu pensamento penetra melhor no âmago das coisas; então, faz ideia mais justa da Divindade e, ainda que sempre incompleta, mais conforme à sã razão.”

Não vemos nenhum motivo para negar que o homem tenha sido feito, se assim se pode realmente dizer, à imagem e semelhança de Deusembora não concordemos que Deus tenha a forma orgânica do homem. E é o próprio O Livro dos Espíritos que nos fornece os dados necessários a uma interpretação espírita desse problema. Encontramos no número 77 do seu primeiro capítulo a seguinte pergunta de Kardec e a respectiva resposta dos espíritos:

“Os espíritos têm forma determinada, limitada e constante?”

“– Para vós, não; para nós, sim. O espírito, se o quiserdes, é uma chama, um clarão, uma centelha etérea.”

Ora, se compreendermos que o homem não é o seu corpo animal, mas o espírito que anima esse corpo e realiza através dele a sua evolução na vida terrena, veremos que as palavras da Bíblia não foram prejudicadas pela interpretação espírita de Deus; e veremos também que há uma relação mais íntima e profunda, de essência e não de forma, entre Deus e o homem, do que a relação materialista estabelecida pelos exegetas bíblicos das várias religiões.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Deus e o Homem, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Giovanna ~

II

Era, sobretudo por ocasião das viagens, muito curtas para o seu gosto, que Maurice fazia à morada paterna e durante as excursões que se seguiam, que o seu pensamento, estimulado pela poesia da natureza, se elevava para Deus num impulso rápido e seguro. Ele gostava então de perambular nos desfiladeiros selvagens dos montes, de percorrer os lugares apartados onde ressoavam o murmúrio perpétuo das torrentes e das cascatas, as florestas de pinheiros, de faias, de lariços que cobrem com as suas sombrias cúpulas os declives dos Alpes.

O sopro dos ventos, esfregando a galharia, lançando na profundeza dos bosques as suas notas queixosas e harmoniosas, semelhantes à acção de um órgão invisível, o murmúrio das águas esguichantes, o canto dos passarinhos, até o barulho longínquo do machado batendo os troncos sonoros, todas essas vozes da solidão embalam o seu espírito, lhe falando uma linguagem de paz. Sobre os cumes banhados de luz, sob as abóbadas verdejantes, a sua prece subia para Deus de uma forma mais pura e ardente que nos templos invadidos pela multidão. No seio dos bosques cheirosos, retiros sombrios e escondidos o convidavam ao repouso. E os milhares de ruídos desta natureza alpestre formavam para ele uma melodia deliciosa na qual se inebriava a ponto de esquecer as horas e de deixar passar o momento de regressar.

Ele precisou, todavia, de se desarraigar dessas festas dos olhos e do coração e retomar o curso dos estudos interrompidos. Maurice passou nos seus exames com sucesso. Hesitando em seguida entre as diversas carreiras que se lhe abriam, a convite de seu pai, fez Direito, recebeu o título de advogado e começou a exercer a profissão no fórum de Milão. A sua eloquência ousada, exercitada, a sua viva imaginação, e o estudo aprofundados das causas a ele confiadas, o fizeram logo se distinguir no mundo dos tribunais; um brilhante porvir sorria à sua ambição se tivesse querido curvar a sua consciência às subtilezas da trapaça e da política, fazendo-se um satélite dos poderosos. Mas esta alma elevada e altiva não podia se rebaixar a uma tal função. As intrigas, as torpezas dos tribunais e dos salões a enchiam de amargura. O espectáculo de um mundo ocioso, corrompido, ostentando com estrépito a sua riqueza e os seus títulos, a cupidez, e o egoísmo, tomando de assalto a sociedade e a dominando; a probidade cambaleante; a especulação desenfreada humilhando o trabalho regenerador; todas essas úlceras de nossa época de decadência moral se mostravam na sua hediondez aos olhos do jovem e lhe levaram a desprezar a vida, a se desligar mais e mais das coisas terrestres. Na taça dos prazeres, tendo querido temperar os seus lábios, ele não havia encontrado senão fel; o amor tarifado, a orgia brutal, o jogo estupefaciente, foram para ele outros tantos monstros que o fizeram recuar de horror.

Com tais gostos, uma disposição natural à meditação, o amor pela solidão, viu desatar-se pouco a pouco todas as suas relações. Aqueles que primeiramente o haviam acolhido, repelidos por essa rigidez, por essa misantropia que se exalava em termos amargos, pela ausência da benevolência tão necessária ao sábio, se afastaram de Maurice e o deixaram a seus sonhos. A vida se desfez em torno dele. Um desgosto profundo apoderou-se do jovem advogado. Ele recusava as causas maléficas ou duvidosas que lhe eram oferecidas e viu assim reduzir-se o número dos seus clientes. As suas brilhantes faculdades permaneceram sem emprego.

Um morno abatimento o invadia, quando de Domaso lhe chegou a notícia de que o seu pai, gravemente doente, pedia a sua presença perto dele. Maurice partiu imediatamente.

O exilado, devorado pela nostalgia, por esse amor à terra natal, sentia uma necessidade da pátria que nada podia substituir, lutava em vão contra um mal sem remédio. Logo morreu entre os braços de seu filho. Esta morte estendeu uma sombra ainda mais espessa sobre a fronte de Maurice; a sua tristeza, a sua melancolia naturais aumentaram. Renunciou ao fórum e instalou-se na pequena casa solitária que lhe havia legado o defunto. O seu tempo era repartido entre as leituras e as excursões. Frequentemente, desde a manhã, pegava no seu fuzil e, sob o pretexto de caçar, percorria a região em todos os sentidos, indo à aventura, descuidado dos caminhos. A caça podia impunemente passar perto dele. Mergulhado em intermináveis desvarios, não pensava muito em persegui-la. Sentava-se por vezes sobre qualquer ponto rochoso dominando o lago, para observar o movimento dos barcos deslizando sob o esforço dos remadores, as águias descrevendo círculos imensos no céu, as lentas gradações da luz durante as horas do entardecer e, assim, apenas quando a noite começava a estender o seu véu sobre a terra, é que ele pensava em voltar à sua morada.

Foi durante um desses cursos que, surpreendido pela tempestade, ele se refugiou entre os Menoni e aí encontrou Giovanna. Desde esse dia, a sua vida mudou.

A visão desta moça o reaqueceu subitamente. Um alegre raio de sol penetra a obscuridade de sua alma; uma voz desconhecida canta ao seu coração. Primeiro não se dá conta do sentimento novo que nasce nele. Uma força magnética o levava para a mocinha e ele a obedecia instintivamente. Quando ela estava lá, diante dele, de tudo esquecia, observando-a, escutando-a. O timbre de sua voz, ritmado, despertava no seu ser ecos de uma doçura infinita. Via nela mais que uma moça da terra, mais que uma criatura humana, como que uma aparição passageira, reflexo misterioso de um outro mundo, um tesouro de beleza, de pureza, de caridade, ao qual Deus emprestava uma forma sensível a fim de que, ao vê-la, os homens pudessem compreender as perfeições celestes e a isso aspirar. A presença de Giovanna o arrancava à sua misantropia. Fazia surgir nele uma onda de pensamentos benfazejos, generosos, um ardente desejo de ser bom e de consolar. O seu exemplo o convidava ao bem; sentia a vida, a inutilidade de sua vida e compreendia enfim que tinha melhor a fazer aqui em baixo do que fugir dos homens e se fechar numa indiferença egoísta. Interessava-se pelas dores dos outros; pensava mais frequentemente nos pequenos, nos deserdados desse mundo, em todos os que estão oprimidos pela adversidade; procurava avidamente os meios de lhes ser útil.

Durante as suas conversas, ainda que se falassem pouco, trocavam milhares de pensamentos. A alma tem meios de se exprimir, de se comunicar com o exterior, que a ciência humana não pode definir, nem analisar. Uma atmosfera fluídica, em correlação íntima com o seu estado moral, envolve todos os seres e, seguindo a sua natureza, simpática ou contrária, se atraem, se repelem, se expandem ou se fecham, e é assim que se explicam as impressões, que a simples vista de pessoas desconhecidas nos fazem experimentar.

Os dias se escoam. Graças ao socorro de Joana, graças aos cuidados do médico de Gravedona, ao qual Maurice pagava as visitas, Marta tinha recuperado a sua saúde. No dia que pode sair, uma agradável surpresa a esperava lá fora. O jardim, invadido há pouco tempo pelas ervas e silvas emaranhadas, estava renovado, limpo e gracioso. O outono tinha suspendido nas árvores guirlandas de ouro e de esmeralda. Pereiras, figueiras, abricoteiros, dobravam sob o peso dos seus frutos. Longos cachos de uvas vermelhas pendiam entre os ramos das amoreiras; opulentos legumes cobriam os canteiros. Um hábil jardineiro, enviado por Maurice havia podado as árvores, cuidado da vinha, operado esta transformação. Tinha feito desse recanto desolado um maravilhoso pomar. O inverno podia vir. A vida da pobre família estava assegurada.

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Léon Denis, Giovanna_1880, II 3º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Retrato, pequena pintura que especialistas de arte italiana atribuem a Rafael Sanzio)

segunda-feira, 14 de abril de 2014

o grande enigma ~

Deus | e o Universo

Há uma finalidade, há uma Lei no Universo?

Ou esse Universo é apenas um abismo no qual o pensamento se perde por falta de ponto de apoio, em que gire sobre si mesmo, igual à folha morta ao influxo do vento?

Existe uma força, uma esperança, uma certeza que nos possa elevar acima de nós mesmos a um fim superior, a um princípio, a um Ser em que se identifiquem o bem, a verdade, a sabedoria?

Ou terá havido em nós e em redor de nós apenas dúvida, incerteza e trevas?

O homem, o pensador, sonda com o olhar a vasta extensão; interroga as profundezas do céu; procura a solução desses grandes problemas: o problema do mundo, o problema da vida. Considera esse majestoso Universo, no qual se sente como que mergulhado; acompanha com os olhos a carreira dos gigantes do Espaço, sóis da noite, focos terríficos cuja luz percorre as imensidades taciturnas; interroga esses astros, esses mundos inumeráveis, mas estes passam mudos, prosseguindo no seu rumo, para um fim que ninguém conhece. O silêncio esmagador paira sobre o abismo, envolve o homem, torna esse Universo mais solene ainda.

Duas coisas, no entanto, nos aparecem à primeira vista no Universo: a matéria e o movimento, a substância e a força. Os mundos são formados de matéria e essa matéria, inerte por si mesma, move-se. Quem, pois, a faz mover? Qual é essa força que a anima? Primeiro problema. Mas o homem, do infinito, chama sobre si mesmo a sua atenção. Essa matéria e essa força universais ele encontra-as em si mesmo e, com elas, um terceiro elemento, com o qual conheceu, viu e mediu os outros: a Inteligência.

Entretanto, a inteligência humana não é, por si só, a sua própria causa. Se o homem fosse a sua própria causa, poderia manter e conservar o poder da vida que está em si; mas, em verdade, esse poder, sujeito a variações, a desfalecimentos, excede à vontade humana.

Se a inteligência existe no homem, deve encontrar-se nesse Universo de que faz parte integrante. O que existe na parte deve encontrar-se no todo.

A matéria não é mais que a vestimenta, a forma sensível e mutável, revestida pela vida; um cadáver não pensa, nem se move. A força é um simples agente destinado a entreter as forças vitais. É, pois, a inteligência que governa os mundos.

Essa inteligência manifesta-se por leis sábias e profundas, ordenadoras e conservadoras do Universo.

Todas as pesquisas, todos os trabalhos da ciência contemporânea, concorrem para demonstrar a acção das leis naturais, que uma Lei suprema liga, abraça, para constituir a universal harmonia. Por essa lei, uma Inteligência soberana se revela à razão mesma das coisas, Razão consciente, Unidade universal para onde convergem ligando-se e fundindo-se, todas as relações, aonde todos os seres vêm haurir a força, a luz e a vida; Ser absoluto e perfeito, fundamente imutável e fonte eterna de toda a ciência, de toda a verdade, de toda a sabedoria, de todo o amor.

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Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte Deus e o Universo, I O grande Enigma 1 de 5, 4º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: La Madonna de Port Lligat, detalhe | 1950, Salvador Dali)

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Saberes e o tempo ~

O ensino dos Espíritos ~

Se a questão do homem espiritual se conservou por tão longo tempo em estado hipotético, é que faltavam os meios de investigação directa. Assim como as ciências não puderam desenvolver-se seriamente, senão depois que se inventaram o microscópio, o telescópio, a análise espectral e, ultimamente, a radiografia, também o estudo do Espírito tomou prodigioso impulso com a hipnose e, principalmente, depois que a mediunidade tornou possível o estudo do Espírito desprendido da matéria corpórea. Aqui está o que as nossas relações com os Espíritos nos ensinaram relativamente à constituição da alma.

Das numerosas observações feitas no mundo inteiro resulta que o homem é formado da reunião de três princípios:

1) a alma ou espírito, causa da vida psíquica;

2) o corpo, envoltório material, a que a alma se associa temporariamente, durante a sua passagem pela Terra;

3) o perispírito, substrato fluídico que serve de liame entre a alma e o corpo, por intermédio da energia vital. Do estudo desse órgão decorrem conhecimentos novos, que nos permitem explicar as relações da alma e do corpo; a ideia directora que preside à formação de todo o indivíduo vivo; a conservação do tipo individual e específico, sem embargo das perpétuas mutações da matéria; enfim, o tão complicado mecanismo da máquina vivente.

A morte é a desagregação do invólucro carnal, aquele que a alma abandona ao deixar a Terra; o perispírito a acompanha, conservando-se-lhe sempre ligado. Forma-o a matéria em estado de extrema rarefacção. Esse corpo etéreo, que no estado normal nos é invisível, existe, portanto, no decurso da vida terrestre. É por seu intermédio que o eu percebe as sensações físicas e é também por seu intermédio que o espírito pode revelar, no exterior, o seu estado mental.

Tem-se dito que o Espírito é uma chama, uma centelha, etc. Assim, porém, se deve entender com relação ao espírito propriamente dito, como princípio intelectual e moral, ao qual não se poderia atribuir forma determinada. Em qualquer grau que ele se encontre na animalidade, está sempre intimamente associado ao perispírito, cuja eterização corresponde ao seu adiantamento moral, de sorte que, para nós, a ideia de espírito é inseparável de uma forma qualquer, de maneira a não podermos conceber uma sem a outra.

“O perispírito, pois, faz parte integrante do Espírito, como o corpo faz parte integrante do homem. Mas, o perispírito, por si só, não é o Espírito, como o corpo não é, por si só, o homem, visto que o perispírito não pensa, não age por si só. Ele é para o espírito o que o corpo é para o homem: o agente ou instrumento da sua acção.”

Segundo o ensino dos Espíritos, essa forma fluídica é extraída do fluído universal, sendo deste, como tudo o que existe materialmente, uma modificação. Justificaremos, dentro em pouco, essa maneira de ver.

Malgrado à tenuidade extrema do corpo perispirítico, ele se mantém constantemente unido à alma, que se pode considerar um centro de força. A sua constituição lhe permite atravessar todos os corpos com mais facilidade do que a que tem a luz para atravessar o vidro; do que o calor ou os raios-X para atravessar os diferentes obstáculos que se lhes oponham à propagação. A velocidade do deslocamento da alma parece superior à das ondulações luminosas, diferindo destas, porém, essencialmente, em que nada a detém, deslocando-se ela pelo seu próprio esforço. Por ser muito rarefeito o organismo fluídico, a vontade actua sobre o fluído universal e produz o deslocamento. Concebe-se facilmente que, sendo quase nula a resistência do meio, a mais fraca acção física acarretará uma translação no espaço, cuja direcção estará submetida à vontade do ser.

O perispírito se nos afigura imponderável, pelo que a acção da gravidade parece inteiramente nula sobre ele; mas, daí não se deverá concluir que, desprendido do corpo, possa o Espírito transportar-se, segundo a sua fantasia, a todas as partes do Universo. Veremos, daqui a pouco, que o espaço é pleno de matérias variadas, em todos os estados de rarefacção, de modo que, para o Espírito, existem certos obstáculos fluídicos de tanta realidade, quanto a que para nós pode ter a matéria tangível.

Nos seres muito evoluídos, o perispírito carece, no espaço, de forma absolutamente fixa; não é rígido, nem está condensado, como o corpo físico, num tipo particular. Regra geral, predomina no corpo fluídico a forma humana, à qual ele naturalmente retorna, quando haja sido deformado pela vontade do Espírito.

Por intermédio do envoltório fluídico é que os Espíritos percebem o mundo exterior; mas, as suas sensações são de outra ordem, diversas das que tinham na Terra. A luz deles não é a nossa; as ondulações do éter, quais as ressentimos, como o calor ou a luz, são por demais grosseiras para os influenciar normalmente. São, do mesmo modo, insensíveis aos sons e aos odores terrestres. Referimo-nos aqui aos Espíritos adiantados. Mas, todas as nossas sensações terrestres têm, para eles, equivalentes mais apurados. Dá-se, a esse respeito, uma como transposição para mais elevado registo da mesma gama. Além disso, eles percebem vibrações em muito maior número do que as que nos chegam diferenciadas pelos sentidos e as sensações determinadas por esses diferentes movimentos vibratórios criam uma série de percepções de ordem diversa das de que temos consciência.

Os Espíritos inferiores, que formam a maioria no espaço que circunda a Terra, podem ser acessíveis às nossas sensações, sobretudo se os seus perispíritos são grosseiros de todo, porém isso se dá de maneira atenuada. A sensação neles não é localizada: experimentam-na em todas as partes do corpo espiritual, enquanto que, nos homens, é experimentada no ponto do corpo onde teve origem.

Estes os dados gerais que se encontram na obra de Allan Kardec, a mais completa e a mais racional que possuímos sobre o Espiritismo. A bem dizer, é mesmo a única que trata, em todas as suas partes, da filosofia espírita e fica-se espantado de ver com que sabedoria e prudência esse iniciador traçou as grandes linhas da evolução espiritual.

A dedução rigorosa é o carácter distintivo desta doutrina. Em vez de forjar seres imaginários para explicar os factos mediúnicoso Espiritismo deixou que o fenómeno se revelasse por si mesmo. Em todas as partes do mundo, há 70 anos, são as almas dos mortos que, vindo confabular connosco, afirmam ter vivido na Terra e dão dessas afirmativas provas que os evocadores verificam mais tarde e reconhecem exactas. Numa palavra, achamo-nos em presença de um facto real, visível, palpável, que coisa alguma poderia infirmar. Não há negações que prevaleçam contra a luminosa evidência da experiência moderna. Não há demónios, nem vampiros, nem lémures, nem elementais ou outros seres fantásticos, imaginados para aterrorizar o vulgo, ou desviar, em proveito de obscuras artimanhas, a atenção dos pesquisadores. É a alma dos mortos que se revela pela mesa, pela escrita directa e pelas materializações.

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Gabriel Delanne, A Alma é Imortal, Terceira parte – O Espiritismo e a ciência Capítulo I O ensino dos Espíritos, 3º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Pitágoras, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio (1509)

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Da sombra do dogma à luz da razão ~

Natureza da Revelação Espírita ~

Podemos considerar o Espiritismo uma revelação? Nesse caso, qual é a sua natureza? Sobre que se funda a sua autenticidade? A quem e de que forma foi feita? Será a doutrina espírita uma revelação no sentido teológico da palavra, isto é, será em todos os seus pontos produto de um ensinamento oculto vindo do alto? É absoluta ou é susceptível de modificações? Ao trazer aos homens a verdade já pronta, não teria a revelação como efeito impedi-los de usarem as suas faculdades, dado que lhes pouparia o trabalho da pesquisa? Qual pode ser a autoridade dos ensinamentos dos Espíritos, se não são infalíveis e superiores à humanidade? Qual é a autoridade da moral que pregam, se essa moral não é outra se não a de Cristo, que já conhecemos? Quais as verdades novas que nos trazem? Tem o homem necessidade de uma revelação e não pode encontrar em si e na sua consciência tudo o que necessita para se guiar? São estas as questões sobre que é importante fixarmo-nos.

Definamos primeiro o sentido da palavra revelação.

Revelar, do latim revelare, cuja raiz é velum, véu, significa literalmente sair de sob o véu e, em sentido figurado, descobrir, dar a conhecer uma coisa secreta ou desconhecida. Na sua acepção vulgar mais geral, diz-se de qualquer coisa ignorada que é posta às claras, de qualquer ideia nova que nos coloca no caminho do que não sabíamos.

Deste ponto de vista, todas as ciências que nos dão a conhecer os mistérios da natureza são revelações e podemos dizer que, para nós, há uma revelação constante; a astronomia revelou-nos o mundo astral que não conhecíamos; a geologia, a formação da Terra; a química, a lei das afinidades; a fisiologia, as funções do organismo, etc.; Copérnico, Galileu, Newton, Laplace, Lavoisier são reveladores.

O carácter essencial de qualquer revelação deve ser a verdade. Revelar um segredo é dar a conhecer um facto; se a coisa é falsa não é um facto e, por conseguinte, não existe revelação. Qualquer revelação desmentida pelos factos não é uma revelação; se for atribuída a Deus, não podendo Deus enganar-se nem mentir, esta não pode emanar dele; deve ser considerada como produto de uma concepção humana.

Qual é o papel do professor perante os seus alunos, se não o de um revelador? Ensina-lhes o que não sabem, o que não teriam nem tempo nem possibilidade de descobrir por si, porque a ciência é a obra colectiva dos séculos e de uma quantidade de homens que trouxeram, cada um deles, o seu contingente de observações e de que se aproveitam os que vêm depois deles. Portanto, o ensino é, na realidade, uma revelação de certas verdades científicas ou morais, físicas ou metafísicas, feita por homens que as conhecem a outros que as ignoraram e que, sem isso, as teriam para sempre ignorado.

Mas o professor só ensina o que aprendeu; é um revelador de segunda ordem; o homem de génio ensina o que foi ele a descobrir: é o revelador primitivo; traz o saber que, de aproximação em aproximação, se vulgariza. Onde estaria a humanidade sem a revelação dos homens de génio que surgem de tempos a tempos!

Mas o que são homens de génio? Por que são eles homens geniais? De onde vêm eles? Que se passa com eles? Repara-se que a maior parte deles traz à nascença faculdades transcendentes e conhecimentos inatos, bastando pouco trabalho para que se desenvolvam. Fazem muito verdadeiramente parte da humanidade, uma vez que nascem, vivem e morrem como nós. Onde foram então buscar esses conhecimentos que não podem ter adquirido em vida? Diremos, como os materialistas, que o acaso lhes concedeu matéria cerebral em maior quantidade e de melhor qualidade? Nesse caso, não teriam mais mérito do que um legume maior e mais saboroso que outro.

Diremos, como alguns espiritualistas, que Deus os dotou com uma alma mais favorecida que a do comum dos homens? Suposição igualmente ilógica, pois macularia Deus com a parcialidade. A única solução racional para este problema está na pré-existência da alma e no pluralismo das existências. O homem de génio é um Espírito que viveu mais tempo; que, por consequência, obteve mais saber e, como sabe muito mais do que os outros sem ter tido necessidade de aprender, é aquilo a que chamamos um homem de génio. Mais o que sabe não deixa de ser fruto de um trabalho anterior e não o resultado de um privilégio. Antes de renascer era portanto um Espírito evoluído; reencarna tanto para que os outros se aproveitem do que sabe, como para adquirir mais conhecimentos:

Os homens progridem incontestavelmente por si mesmos e pelo esforço da sua inteligência; mas, entregues às suas próprias forças, este progresso é muito lento, caso não sejam ajudados por homens mais adiantados, tal como o aluno o é pelos seus professores. Todos os povos têm os seus homens de génio que vieram, em diversas épocas, dar-lhes um impulso e retirá-los da sua inércia.

A partir do momento em que admitimos a solicitude de Deus para com as suas criaturas, por que não haveríamos de admitir que os Espíritos são capazes, graças à sua energia e superioridade dos seus conhecimentos, de fazer evoluir a humanidade; que encarnam pela vontade de Deus com o fim de ajudarem à evolução num sentido determinado; que recebem uma missão tal como um embaixador a recebe do seu soberano? É este o papel dos grandes génios. Que vêm eles fazer, se não ensinar aos homens as verdades que ignoram e que teriam continuado a ignorar ainda durante longos períodos, fornecendo-lhes um degrau para se poderem elevar mais rapidamente? Estes génios, que surgem no decorrer dos séculos como estrelas brilhantes, deixando atrás de si uma longa cauda luminosa sobre a humanidade, são missionários ou, se quisermos, Messias. As coisas novas que ensinam aos homens, quer no aspecto físico ou filosófico, são revelações.

Se Deus concede reveladores para as verdades científicas, pode, com muito mais razão, concedê-los para as verdades morais, que constituem um dos elementos essenciais do progresso. São assim os filósofos cujas ideias atravessam os séculos.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 1 a 6, 3º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de ilustração: Diógenes, pintura de Jean-Léon Gérôme – 1860)

sábado, 5 de abril de 2014

As vidas sucessivas | os elementos ~

| experiências magnéticas | o sono magnético e o corpo fluídico ~

2) O corpo fluídico pode modelar-se sob a influência da vontade, assim como a argila se modifica sob as mãos do escultor

Eis aí um facto habitual entre os ocultistas, e ouvi dizer que, numa sessão, há quarenta anos, com um médium de Paris, célebre por suas materializações, se havia evocado Molière, e que se viu aparecer, entre as cortinas da cabine, primeiro um fantasma parecido com o médium e, a seguir, esse fantasma tomou pouco a pouco a aparência e as vestes da personagem evocada.

Tendo lido que em muitas manifestações psíquicas se viam aparecer globos luminosos, perguntei-me se não seriam corpos fluídicos, e então realizei com a Sra. Lambert a seguinte experiência:

Exteriorizei o seu corpo fluídico; em seguida ordenei-lhe que se curvasse como uma bola; apesar de sua resistência, determinei o fenómeno; ela se viu sob essa forma, o que constatei eu próprio por beliscadas no espaço. Recoloquei-a em seguida, por sugestão, na sua forma primitiva e pedi-lhe que voltasse dali a dois dias para nova sessão. No dia marcado, não a vendo, dirigi-me à sua casa e encontrei-a deitada, o corpo em arco; disse-me ela que não podia esticar-se e que isso muito a incomodava. Exteriorizei então novamente seu corpo fluídico, endireitando-o por sugestão, e o fiz voltar; ela estava curada.

Alguns meses mais tarde, fiz voltar ao meu gabinete a Sra. Lambert para mostrar as suas faculdades à Sra. d’Espérance, de passagem em Paris. Quando o seu corpo fluídico foi exteriorizado, ordenei à Sra. Lambert que lhe desse a minha forma, o que fez, não sem resistência. Ela viu a transformação operar-se sobre o seu corpo fluídico e sobre a sua imagem reflectida num espelho. A Sra. d’Espérance, que é vidente, confirmou as palavras da Sra. Lambert, apesar de, ignorando o francês, não compreender a nossa conversação. Aksakof assistiu à sessão.

Repeti essa experiência, em 23 de novembro de 1903, em Voiron, com o Sr. Col..., patrão de Joséphine Louise. Eis a passagem de meu diário que se refere ao facto.

“Louise diz que pode, mesmo acordada, exteriorizar à vontade o seu corpo astral e dar-lhe a forma que deseja. Pede-se-lhe que, sem que Joséphine o saiba, dê a minha forma ao seu corpo astral; em seguida ela é levada de volta ao quarto de Joséphine, a qual é colocada no estado em que consegue perceber os fluidos. Joséphine vê primeiro o corpo astral de Louise normal, depois nele vê, com espanto, crescerem bigode e barbicha; enfim diz rindo: “Mas é o coronel!”

“Alguns instantes mais tarde, diz-se a Louise, sempre sem que Joséphine o saiba, para dar a seu corpo astral a forma do filho do dono da casa, que ela conhece e que é alfaiate em Java, há dois anos. Joséphine, que jamais o viu, vê, no lugar onde Louise diz haver projectado o seu duplo, a imagem de um homem com bigode; diz já ter visto esse rosto em alguma parte, mas não sabe onde. Desperto-a depois de ter-lhe dado a sugestão de lembrar-se do rosto que viu, e são apresentadas diante de seus olhos vinte fotografias que ela não reconhece. Quando avista a do filho de Col..., diz: Este parece com quem vi, no entanto, a imagem que vi era bastante vaga.” É necessário ressaltar que Louise havia modelado o seu corpo astral de acordo com lembranças bastante longínquas.”

Numa sessão realizada na Escola de Medicina de Grenoble, em 28 de março de 1904, em presença do Dr. Bordier, director da Escola, com Louise e Eugénie como médiuns, procurei reproduzir essa experiência.

O Dr. Bordier indica apenas a Louise a personagem a representar. Era o Dr. Lépine, ausente à sessão e que Louise conhecia. Esta exteriorizou-se e, quando disse que havia dado ao seu corpo a forma desejada, interroguei Eugénie adormecida; respondeu-me que via um homem; procurou reconhecê-lo, depois disse: É o homem que me fotografou.” Ora, isto havia se passado dois dias antes.

Poder-se-ia encontrar nesses fenómenos a explicação de certas aparições que se produzem diante das jovens no momento da puberdade. Constatou-se, com efeito, que nesse momento o seu corpo astral se exterioriza espontaneamente! Elas o percebem então sob uma forma vagamente humana e luminosa. Imbuídas de ideias religiosas, imaginam ver a Virgem Santa ou alguma outra santa cuja imagem as impressionou na sua igreja e dão, pelo pensamento, essa forma ao seu corpo astral, que chega mesmo a poder ser percebido por outros sensitivos.

3) O corpo astral é normalmente a reprodução exacta do corpo físico

Numa sessão realizada no dia 1º de abril de 1904, na Escola de Medicina de Grenoble, com Eugénie, em presença do Dr. Bordier, exteriorizei o corpo fluídico da sensitiva. Quando o fantasma azul se formou à sua esquerda, ela o via, mas nós não experimentávamos nenhuma sensação ao tocá-lo. Eugénie, ao contrário, sentia os contactos, não apenas sobre a sua pele, como também no interior de seu corpo, quando as nossas mãos penetravam o seu duplo. O Dr. Bordier, tendo colocado sucessivamente e com precaução o seu dedo indicador em diferentes pontos do interior do duplo, perguntou a Eugénie em que ponto ela se sentia tocada. Eugénie, que tinha os olhos fechados, designou exactamente, e sem hesitação, os órgãos que o Dr. Bordier tinha a intenção de tocar, baseando-se nas suas posições respectivas.

Encontrar-se-á no primeiro capítulo da terceira parte uma certa quantidade de documentos que mostram que a existência do corpo astral foi admitida em todos os tempos pelos filósofos e iniciados.

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Albert de RochasAs Vidas Sucessivas, Segunda Parte Experiências magnéticas, Capítulo I, O sono magnético e o corpo fluídico; 2) O corpo fluídico pode modelar-se sob a influência da vontade, assim como a argila se modifica sob as mãos do escultor; 3) O corpo astral é normalmente a reprodução exacta do corpo físico, 2º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: A aurora dos transatlan, pintura em acrílico de Costa Brites)