segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Corpo fluídico | agénere ou aparição tangível ~


Capítulo Segundo

KARDEC E O CORPO FLUÍDICO (IV)

O Cristo com corpo fluídico, segundo Kardec (*), explicaria certas situações mas não chega a convencer. "O seu nascimento, a sua morte e todos os actos materiais de sua vida não teriam sido mais que uma aparição. E dizem que assim se explica que o seu corpo, retornado ao estado fluídico, pôde desaparecer do sepulcro, e foi com este mesmo corpo que ele se teria mostrado depois da sua morte."

A partir daqui, Kardec entra no mérito da questão. Observemos como ele assesta os seus instrumentos de maneira a discutir sobre os próprios argumentos utilizados pelos fluidistas.

"Sem dúvida, – diz – um facto destes não é radicalmente impossível, segundo o que hoje se sabe sobre as propriedades dos fluidos; porém seria pelo menos inteiramente excepcional e em oposição formal com o carácter dos agéneres. A questão é, pois, de se saber se tal hipótese é admissível, se ela é confirmada ou contraditada pelos factos."

Note-se que Kardec afirma que este caso seria "excepcional e em oposição formal com o carácter dos agéneres", porque o agénere não é somente o ser incriado, mas uma aparição tangível de curta duração. Jesus, se tivesse tido um corpo fluídico, seria a excepção à regra, o agénere perfeito de longa duração, no dizer de um certo autor (**), um caso de "seres que se mostram materializados aos olhos humanos, às vezes por longos períodos". Não é essa a conclusão a que chegou Kardec sobre os agéneres. Mas, como ele mesmo disse, é preciso verificar se tal hipótese "é confirmada ou contraditada pelos factos". Ele, pois, prossegue nas suas considerações.

"A permanência de Jesus sobre a Terra apresenta dois períodos: aquele que precede e aquele que segue a sua morte. No primeiro, desde o momento da concepção até ao nascimento, tudo se passa com sua mãe como nas condições comuns da vida. A partir do nascimento e até à sua morte, tudo, nos seus actos, na sua linguagem e nas diversas circunstâncias da vida, apresenta os caracteres inequívocos da sua corporeidade. Os fenómenos de ordem psíquica que se produzem nele são acidentais, e nada têm de anormal, pois explicam-se pelas propriedades do perispírito (i), e são encontrados em diferentes graus em outros indivíduos. Depois da sua morte, ao contrário, tudo revela nele o ser fluídico. A diferença entre esses dois estados é tão fundamentalmente traçada que não é possível assemelhá-los."

Nessa linha de raciocínio, o Cristo de depois da morte é um agénere perfeito, pois aparece e desaparece em curtos espaços de tempo e pode ser reconhecido com perfeição. Na estrada de Emaús aparece a dois discípulos, caminha com eles, demora mas é reconhecido, depois se esvai; a Tomé, materializa-se a ponto de produzir impressões fortes e o convencer. Enfim, este é o ser fluídico, tangível, numa palavra: o agénere! O outro, de antes da morte, é o Cristo de carne, o homem com todas as necessidades do homem. Ninguém o confunde nem duvida da sua realidade palpável, permanente.

"O corpo carnal – prossegue Kardec – tem as propriedades inerentes à matéria propriamente dita, as quais diferem essencialmente dos fluidos etéreos; a desorganização ali se opera pela ruptura da coesão molecular. Um instrumento cortante, penetrando no corpo material, divide os seus tecidos; se os órgãos essenciais à vida são atacados, o seu funcionamento se detém, e a morte será a consequência, isto é, a morte do corpo. Essa coesão não existe nos corpos fluídicos; a vida, neles, não repousa no funcionamento dos órgãos especiais, e neles não se podem produzir desordens análogas; um instrumento cortante ou qualquer outro ali penetra como num vapor, sem lhe ocasionar lesão alguma. Eis por que os seres fluídicos designados sob o nome de agéneres não podem ser mortos."

Depois do suplício de Jesus, o seu corpo lá ficou, inerte e sem vida; foi sepultado como os corpos comuns, e todos puderam vê-lo e tocá-lo. Depois da ressurreição, quando ele deixa a Terra, não morre; o seu corpo se eleva e desaparece, sem deixar nenhum sinal, prova evidente de que esse corpo era de outra natureza que não aquele que pereceu na cruz; de onde será forçoso concluir que se Jesus pôde morrer é que tinha corpo carnal.

"Em consequência das suas propriedades materiais – continua Kardec – o corpo carnal é a sede das sensações e das dores físicas que repercutem no centro sensitivo ou Espírito; não é o corpo que sofre, é o Espírito que recebe o contragolpe das lesões ou alterações dos tecidos orgânicos. Num corpo privado de Espírito, a sensação é absolutamente nula; pela mesma razão, o Espírito que não tem corpo material não pode experimentar os sofrimentos que são o resultado da alteração da matéria; daí será preciso igualmente concluir que se Jesus sofreu materialmente, como não será possível duvidar, é que tinha um corpo material, de natureza idêntica à de todos."

Até aqui, Kardec se atém ao aspecto físico e consequências. Tira, porém, conclusões que para si são as únicas possíveis. Ora, o agénere não pode morrer, não pode ser ferido. Jesus, no entanto, morreu, o seu corpo foi sepultado, todos viram, tocaram. Só quem tem um corpo material – é Kardec quem diz – pode passar por esses lances! Mas o Cristo era assistido por uma equipe de Espíritos que poderiam muito bem simular todo o drama, inclusive o sangue a jorrar dos ferimentos causados pela coroa de espinhos, pela cruz e pelas lanças dos soldados, afirmam alguns. Sim, repetindo Kardec, nisso nada há de materialmente impossível, porém é preciso convir que isso seria bem mais antinatural do que se Jesus tivesse tido corpo material. Por mais que os Espíritos possam fazer, o bom senso leva a ver que esta teoria é complicada demais para ser verdadeira.

/…
(*) A Génese , cap. XV, item 64.
(**) "Universo e Vida", cap. VII.


Wilson GarciaO Corpo Fluídico, Capítulo Segundo – KARDEC E O CORPO FLUÍDICO 4 de 5, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Sem título, pintura de Josefina Robirosa)

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

do país da luz ~

a Silva Pinto

Uma noite, ao deitar-me, pareceu-me ouvir junto a mim, falar ao Ex.mo Sr. Silva Pinto, e dizer qualquer coisa, em uma frase sintética, para lhe transmitir.

Apurei a atenção; mas não podendo fixar bem a frase, pedi para a repetirem. Acederam; mas não a fixando ainda bem, pedi que a dissessem novamente. Ouvi então dizer-me:

– Tem paciência. Levanta-te e vai escrever.

Obedeci. Fui para o meu escritório, na persuasão de que ia escrever a aludida frase.

Sentei-me e comecei a escrever. Não me levantei sem ter concluído a comunicação inserta na pág. 60, a primeira desta estranha série de escritos.

Devo acrescentar que as minhas relações com o ilustre escritor, Sr. Silva Pinto, ao tempo, eram limitadas a mera cortesia.

Depois de escrita a comunicação (transcrita abaixo), perguntei:

– E a mim quer dizer alguma coisa?

– Não. Melhor do que eu sabes tudo. Quererei sempre ouvir-te, pois que só da tua palavra conheço o carinho e a bondade; só por ti recebo o raio de luz que ilumina a treva do meu viver.

– Não sei se será assim… Em todo o caso não desejo falar de mim. Não é por modéstia nem por falsa modéstia. É porque é coisa mínima e desnecessária.

Diga-me: – concede que eu mostre, como seu, o que deixa dito, a mais alguém do que àquele a quem é dirigido?

– É coisa embaraçosa essa que me propões.

Há, porém, um meio de tudo conciliar. Se o publicares algum dia, e o Silva Pinto for vivo, suprime-lhe o nome.

Cabe bem a toda a gente o que disse; e praza a Deus que a alguém possa produzir o bem que desejo para aquele meu dilécto amigo.

– Creio que não faz justiça a si próprio.

Confesso – e sabe-o muito bem – pouco conheço das suas obras; com vergonha o digo; mas delas o que conheço dá-me a nítida impressão de que era bem melhor do que aquilo porque se quer fazer passar. Quase todas essas obras que conheço traduzem tanta dor que me fazia chorar…

– Pára, pára aqui! A dor que te fazia chorar estava em ti, e não na obra. Tu é que recebias a sensação do sofrimento que eu procurava descrever; e a impressão que ela te causava dava-te dor, ou evocava a dor na tua sensibilidade de bom. Quantos ao lerem essas mesmas passagens que te comoviam até às lágrimas, se rirão e me acharão piegas?

É porque a dor não está no que escrevi, que é frio como o aço de um espelho.

A alma de cada um é que ao mirar-se a esse espelho encontra os caminhantes da sua sensibilidade.

Evoca as tuas recordações.

Quantas vezes um aspecto de miséria e do sofrimento te provoca o repelão, quando em outra oportunidade te compungirá até às lágrimas mais sentidas? Entretanto o aspecto é sempre o mesmo.

Tu é que mudavas; a impressão que recebias é que era diversa em cada um dos momentos que o apreciavas.

– Será assim; mas para descrever a dor é preciso conhecê-la e senti-la bem intensamente, e que dela se esteja bem possuído…

– É verdade. E eu sofri como poucos podem sofrer.

Conheci a dor em todas as suas manifestações; mas por bem a conhecer e a sentir não se segue que ela me modificasse no meu estado espiritual e me conduzisse à bondade e à tolerância. Servia-me dela para agredir os outros, para os torturar, como ela me torturava a mim.

– Sendo Camilo quem escreve, certamente poderia com mais facilidade e brilho expor as suas ideias…

– Não era isso que querias dizer. Querias dizer que sendo eu Camilo poderia versar com mais competência qualquer assunto de subida importância. Não era isso?

– Aproximadamente…

– Não é tanto assim. Nós aqui só podemos trabalhar com o instrumento que se nos depara e nas circunstâncias em que ele se nos depara.

Para falar de coisas que tu não conheces, era necessário que estivesses em estado absolutamente inconsciente, ou ter que empregar, persistentemente, uma grande contensão de vontade sobre ti para nos sobrepormos à tua personalidade.

Assim como estás, não.

Só posso servir-me com os elementos que me forneças. Não posso ir muito além dos teus próprios conhecimentos.

A tua personalidade em estado consciente, impedirá que possa apresentar coisas que te sejam desconhecidas.

Só me prestarás para dizer o que caiba dentro da soma de saber por ti adquirido.

O teu corpo material serve de instrumento a ti e a mim; e eu só poderei empregá-lo no sentido em que o tenhas educado. É como um instrumento preparado para ser utilizado por um indivíduo direito. Um indivíduo esquerdo não poderá trabalhar com ele.

Um médium em estado inconsciente, deixa de ser instrumento de si próprio, mas equivale-se a instrumento para dextros…

(Nesta altura, eu, que ia lendo o que se ia escrevendo, hesitei sobre o emprego da palavra dextro, porque só conhecia destro, e fui ver a um dicionário. Reconhecendo que tinha sido apanhado em ignorância, coloquei a pena em seguida àquela palavra e prossegui) e sinistro.

Não podia esperar nem desejar tão pronto exemplo como o que acabava de passar-se com a palavra dextro.

Eu, consciente da propriedade da palavra, escrevi dextro, como significando um homem direito de manejo, como vulgarmente se diz: –  e a tua ignorância sobre essa propriedade levou-te à hesitação e a buscares a confirmação no dicionário. Vês? Se estivesses em estado inconsciente escreverias essa e quantas outras palavras que eu quisesse escrever. Não teria eu dificuldade alguma nisso. Assim, até a mim embaraças. Não te desconsoles, porém. Na tua ignorância sabes mais do que a quase totalidade dos sábios do mundo, porque sabes o que é preciso saber. O que eles sabem não serve para aqui, e o que serve para aqui não sabem eles.


~


Camilo Castelo Branco
(28 de Outubro de 1906)



Silva Pinto



A tua amizade, a tua saudade, a tua lembrança são elos que ainda me prendem ao mundo. São dos poucos que me recordam raros momentos de felicidade na terra, se na terra há que se possa chamar felicidade.

A minha vida depois da morte, (que estranha heresia te parecerá isto!) tem sido a coroação da vida de sofrimento e de martírio que nesse mundo de lama e pus levei!

Com a minha passagem consegui a certeza da torturante expectativa que dominou toda a minha existência aí: – Haveria Deus? Existiria a alma? Sofri ou continuei a sofrer tanto e tão intensa, tão condensadamente, que, conquanto não pudesse duvidar da persistência da vida, cheguei a descrer da existência de Deus.

Factos que não é oportuno narrar agora trouxeram-me a consoladora certeza de que Ele existia, e de que não desconhecia a minha torturada existência daí e daqui; e então, meu velho, meu querido amigo, alma gémea da minha na amargura, tive a certeza de que a vida na terra seria a antecâmara da felicidade se soubéssemos aproveitá-la.

Assim, como a fazemos, é coisa tão desprezível que não merece o nosso desprezo.

Tu tens levado todo o teu tempo a protestar e a maldizer…

Pobre mártir, pobre vítima da Dor, que não tens conseguido mais que queimar a tua própria alma e despertar o riso daqueles que te não compreendem!

Meu amigo, meu irmão, meu doce e carinhoso irmão: a experiência que tens, estranhamente exagerada, das coisas que te cercam deve servir só para te desprenderes delas.

Deves libertar o teu espírito ao alto; e quando o fizeres verás que tudo que te afadiga e tortura é tão mesquinho, tão insignificante que não merece que por ele vibre a mais grosseira fibra de teu coração!

Águia de talento, espírito de eleição, eleva-te acima do charco em que a fatalidade ou a lei fatal do progresso humano te colocou passageiramente na terra, e terás assombro de ti próprio por teres chegado a indignar-te com as coisas necessárias que não compreendes!

Por amor de mim consegue libertar-te das ideias grosseiras que a vida da matéria te pôde incutir no cérebro privilegiado e deixa que a santa filosofia dos teus cabelos brancos possa ver sem azedume, sem rancor, as misérias dos teus irmãos, e ante-gozarás a maravilha esplendorosa da criação! Lembra-te que os melhores lameiros são os que dão mais pão; que os terrenos mais adubados com a podridão são os que dão mais iriadas e odoríferas flores e os mais deliciosos frutos.

Pensa! Reflecte! Experimenta! Pega em uma planta e dispõe-na em um vaso de terra limpa, lavada, odorífera, e essa planta, se chegar a lançar raízes, estiolará e em breve morrerá. Dispõe planta igual em vaso de terra apodrecida, engordurada com o excremento mais imundo e ela vegetará luxuriantemente, elevará os seus ramos para o céu numa manifestação de vida feliz, e desentranhar-se-á em flores de uma beleza rara, de um aveludado inigualável e de um viço pujante.

Que grande lição te dá Deus na vida dessas duas plantas! Medita! Deixa que a luz do teu talento ilumine a tua razão!

Porque hás-de passar o resto dos teus dias, aí, na calcinante agrura de querer emendar o que está optimamente feito?

Pois se o homem pode modificar a planta selvagem pela cultura; se a base da cultura é a adubação da planta, e a matéria do adubo é a podridão; como queres impedir que Deus se sirva de processo semelhante para aquilatar o mérito da mais complicada obra de toda a criação e para cultivar a mais perfeita e estranha planta de todas que fabricou?

O meu mal foi não ter tido nunca a felicidade de ver a vida por este prisma!

Quando a vi assim… era tarde; e então o pavor de uma vida que nem nos teus momentos mais esmagantes terás podido sonhar!

A resignação em uns é o desprezo pelos outros; em outros é a piedade pelas faltas alheias. Tu não és um resignado. Nunca foste. Tens piedade, mas a piedade ainda te não levou à resignação! Sê benévolo, sê piedoso, e terás atingido aí uma culminância que te permitirá na hora extrema da passagem desferir um voo para a felicidade.

Sabes que os grandes pássaros, os condores por exemplo, precisam subir a eminências para poderem voar largo.

Tu és um condor de bondade e de talento.

Não fiques, não persistas na planície lamacenta da vida mesquinha e material, porque, meu querido, meu queridíssimo amigo dilécto, na hora da despedida, colhido de surpresa pela rajada da morte que o Criador mandar para te fazer mudar de poiso, não terás tempo de formar voo para te alçares ao espaço largo e luminoso; e ficarás, como eu, por sabe Deus quanto tempo, no convívio das corujas e das gralhas. A eminência a que tens que elevar-te é a bondade purificada pelo sofrimento que a linguagem humana classifica de resignação. Educa o teu espírito de revolta. Se for necessário, a tua razão que o iluda, transigindo, convencendo-o de é por desprezo que abandonará o rancor, a fermentação do ódio, que só conduz ao desespero.

Procura convencê-lo de que é tudo tão mau que não merece a consideração da revolta de um justo e um bom como és; e insensivelmente, sem dares por isso, terás adquirido a incomparável felicidade de conheceres que os maus não são tão maus como supões; que são mais desgraçados do que maus, e mais dignos de lástima do que de rancor; que o mal é um bem necessário; que a justiça divina, escrevendo direito por linhas tortas, como aos nossos olhos se afigura, é de uma grandeza e de uma impecabilidade incomensuráveis, e de que a piedade e o perdão são as únicas coisas que aproximam o homem da Divindade!

Pois se basta que o homem ponha lunetas para ver tudo negro; amarelas para ver tudo dourado; rosadas para ver tudo cor-de-rosa; porque é que a vida não há-de mostrar só a faceta que cada um dela quer ver?

Queiras ver a faceta boa e vê-la-ás. Por mais que faças não verás outra, por pior que seja aquilo sobre que fixares a tua vista e a tua análise.

Se quiseres ver pela faceta má tudo verás mau, por mais santo, por mais belo por mais grandioso que seja.

Eu passei a minha vida terrena a ver tudo pelos óculos pretos; e tão preto vi que Deus deu-me aí a escuridão da cegueira. E, meu santo amigo, essa escuridão acompanhou-me horrorosamente aqui, e poucas são as nesgas de luz que conseguem vir quebrá-la ainda!

Medita pois. Experimenta.

Acerca-te de um ramo de lírios brancos, alvos como a neve, puros como a pureza e a bondade de Deus, olha-os através de um vidro fumado, e vê-los-ás negros, sujos, repelentes; aproxima-te de um monte de impurezas, de um cadáver putrefacto, esverdeado, caindo a pedaços pela decomposição, coisa horrenda de pensar quanto mais de ver; olha-o por vidros alaranjados e verás tudo coberto de um delicioso nimbo dourado, como se dessa imundice irradiasse a luz solar.

Porque não fazes a mesma coisa à vida?

Imaginemos…

Não, não imaginemos; vou ao alcance da tua objecção:

– Mas os vidros não mudam a natureza das coisas; 

– Os lírios não deixam de ser brancos por se verem por lentes negras, nem a podridão deixa de ser ascorosa por parecer dourada!

É verdade; parecerá à primeira vista, ou á nossa razão desarmada de reflexão.

Reflexionemos, porém.

Qual é a natureza das coisas na terra?

É a que vimos? É a que nos parece?

Não. É a que é.

E qual é a que é no exemplo citado?

A vista irreflexiva dá ao lírio a alvura e à podridão o asco.

Entretanto a reflexão mudará em breve o asco para o lírio, a causa admirativa para a podridão.

O lírio será a curto trecho putrefacto, nauseante; e o cadáver, o monturo, transformar-se-á benevolamente nos gazes que dão a vida e nos sais que alimentam as rosas e o trigo.

E quando assim não fosse?

As cores, obedecendo à nossa vontade, tinham-nos dado a sensação de que era assim; e tudo na vida tem as sensações que conseguem impressionar-nos. O amor às coisas horrorosas não deixa de ser amor se as amamos; e o ódio às coisas belas não deixa de ser ódio se as detestamos.

Exige a razão ponderada e fria que assim não seja; mas quem pode gabar-se de ser suficientemente justo e equilibrado que consiga ver as coisas sempre como elas realmente são? E não podendo ter a certeza de que tem essa justeza de vista, quem pode afirmar que a sua maneira de ver é a melhor?

Medita, Silva Pinto, medita!

Pensa que as tuas dores te hão-de servir para mais do que para atravessares a vida a maldizê-las!

Mal haja a experiência que nos traz a benevolência e a tolerância!

Sabes tu melhor do que ninguém que eu jamais pensei assim aí. As minhas novelas estão cheias de fel que a amargura fazia destilar à minha vida; e por mor desgraça não tive nunca boca amiga que tivesse autoridade no conselho para me obrigar à reflexão desapaixonada sobre as causas das coisas. Quando muito, sentia-me envolvido na piedade e no dó; e esses sentimentos alheios irritavam-me, feriam-me, feriam o meu orgulho…

Orgulho!!! Fatal e hórrida palavra! Causa suprema do meu, do teu, do mal de todos!

Primacial origem da minha vida de mártir aí e de martírio da minha vida aqui! Fonte de todas as dores; início de todas as maldades; causal de todos os desesperos!!!

Que de coisa trêdas eu podia dizer, evocadas por a lembrança que aquela palavra trouxe aos bicos da pena!

Não era esse o meu propósito, porém, ao escrever-te.

Não quero afastar-me do que me impeliu a dirigir-me a ti.

Havia um sentimento no mundo que poderia ter iluminado a negrura da minha vida: – era a religião de Cristo; – mas esse sentimento era facilmente suplantado pela dúvida torturante da minha vida amargurada e pelo orgulho desmesurado de todo o meu ser atrabiliário e revoltoso.

Para ti… para ti…

Silva Pinto. É bem estranha e bem inacreditável coisa esta de eu te falar, escrevendo pela mão de um quase desconhecido para nós ambos; mas bem estranhas e inacreditáveis coisas têm modificado o mundo e o homem no seu evolucionar progressivo através dos séculos.

Não te detenhas a pensar nisso. Pouco vale. Não queiras descobrir em um momento o que outros não conseguem com o sacrifício da sua vida inteira.

Vê, passa pelo cadinho purificador da tua análise de bom e de homem de coração o que deixo dito.

Lembra-te de que, quando mesmo seja dito pelo homem que escreve, o que ele escreve está sob a égide do meu nome. Para o escrever pensou em mim, no teu amigo, no teu companheiro, no maior de todos, como me chamas. Isto deve ser para ti respeitável.

Quando queiras reagir contra a crença de que sou eu quem te aconselha, quem te suplica, quem te implora numa grande ânsia de obtenção, que desvies a tua vista cansada, quase gasta, quase a desaparecer, do marnel das paixões terrenas e a eleves ao alto, onde reside Deus, a Bondade e o Belo, pensa, vê, que esse faz o abnegado serviço de te dizer coisas estranhas e dedicadas o faz em meu nome e como se de mim fossem.

São boas? São más?

Se são boas aceita-as em lembrança minha; se são más deita-as fora, porque nem em meu nome te dão coisa boa.

Mas pela experiência feita de dores te digo que são boas; e se como tais as não receberes e usares, ai de ti meu querido irmão na tortura, ai de ti, que será sempre tarde de mais para arrepiares caminho, e cedo em demasia para verificares o erro!

Meu querido amigo, meu santo amigo, tu, que és ainda um pouco do meu sofrimento na terra, um pouco obra do meu orgulho, do meu egoísmo, do meu amargor, ouve-me e atende-me.

Não sei se poderei ainda falar-te de novo e a tempo! E não será a menor das dores para mim se tiver de reconhecer que não pude pôr a força de persuasão bastante para fazer-te o bem quando tanta tive para te fazer o mal!

Camilo Castelo Branco

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Fernando de LacerdaDo País da Luz, Comunicações mediúnicas recebidas por este médium – Camilo Castelo Branco (28 de Outubro de 1906) a Silva Pinto, Volume I, 2º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel, detalhe, de Edgard Maxence)

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Inquietações Primaveris ~

Os meios de fuga ~

A prova de que o homem sabe, intuitivamente, que a morte não é o fim do seu ser, da sua personalidade e nem mesmo da sua existência, está na procura desesperada dos meios de fuga a que se entrega de ouvidos tapados a todas as advertências.

Ele não quer morrer, mesmo quando se atira do décimo andar de um edifício sobre a calçada.

Quer apenas fugir, escapar de qualquer maneira à pressão de um mundo que nada mais lhe oferece do que opressão, crimes, atrocidades de toda a espécie.

Mario Mariani, em A Casa do Homem, considerou a casa como uma jaula de que a fera humana luta por evadir-se.

É lá dentro da jaula, na casa que devia ser um recanto de paz, que os atritos familiares e as preocupações da incerteza e da insegurança do mundo convulsionado, bem como as injustiças brutais da estrutura social, pesam esmagadoramente sobre ele. 

Os seus nervos vão cedendo ao martelar incessante das preocupações, ao gemido longínquo dos torturados pelos carrascos, dessa lepra moral que se espalhou por todo o planeta após a última guerra mundial – a tortura

Por todos os lados ele sente a coação e as ameaças de novas coações em perspectiva e, como se as chamas de um incêndio o cercassem por todos os lados, atira-se pela janela. 

Mariani era um sonhador, um ideólogo da liberdade e da paz, da fraternidade humana completa, sem os limites odiosos das discriminações sociais e políticas. 

Escreveu duas séries de romances em que expôs o seu pensamento generoso sobre um mundo mais admirável e generoso que o de Huxley

Fugiu da Itália, a sua pátria, com a família, para os Estados Unidos, quando o Fascismo a dominou. 

Na América livre sentiu-se prisioneiro da miséria, viu de perto e sentiu em sua própria carne os desníveis aviltantes de uma sociedade de nababos e miseráveis. 

Certa noite de fome e frio, em New York, resolveu suicidar-se e matar a esposa e os filhos, para não os deixar nas garras de um mundo cristão sem clemência. 

Um amigo o salvou arranjando-lhe um emprego. 

Na série Os Romances da Destruição ele pôs a nu toda a tragédia dos tempos modernos, e na série Os Romances da Reconstrução toda a beleza dos seus sonhos

Dom Quixote italiano do amor e da liberdade, andou pelo mundo atacando moinhos de vento e veio morrer no Brasil, na década de 30. 

O seu nome se apagou na História, sob a invasão dos nomes de bandoleiros políticos consagrados como heróis. 

Mas os que o conheceram e os que o leram guardam no coração e na memória a imagem do verdadeiro herói, cavaleiro sem jaça da Causa da Humanidade. 

Ele denunciou, por toda a parte, a exploração e a miséria que um poeta modernista italiano traduziu assim: “Itália, parola azzurra bisbilhata su l’Infinito.”

Mariani imaginava a Itália do futuro coberta de casas de vidro, de paredes transparentes (porque ninguém teria nada a esconder nem a temer) cercadas de roseirais perfumados, em que as suas filhas viveriam alegres e felizes, com namorados jovens como elas, livres do perigo do casamento interesseiro com velhotes endinheirados. Um mundo azul e livre, como Plotino sonhara estabelecer na Campanha Itálica, nos moldes da República de Platão. Foi o último cavaleiro errante do mundo das utopias.

Depois dele, desabou sobre o mundo real a tempestade da II Guerra Mundial, desencadeada pelos dragões funambulescos e sanguinários da opressão e da violência. E no rastro de cadáveres, sangue e maldição deixada pela guerra abriram-se as veredas da fuga: o suicídio de Stefan Zwaig no Rio, o assassinato de Gandhi na Índia, a enxurrada dos tóxicos, as revoltas de estudantes, as invasões e destruições vandálicas de Universidades em nome da ordem e da força contra o direito, as aberrações sexuais justificadas pela Psicologia da Libertinagem, a mentira oficializada no plano internacional, os assaltos universais, os sequestros ao serviço da política de extorsão e assim por diante, no rol das monstruosidades sem limites.

De tal maneira o mundo envilecido se desfigurou que teólogos desvairados proclamaram a Morte de Deus e anunciaram fanfarronescos o advento do Cristianismo Ateu nos sofismas de brilhareco escuso dos livros pensados e escritos na pauta do sem-sentido.

As bombas voadoras de Hitler transformaram-se nos foguetes espaciais da maior epopeia moderna: a conquista do Cosmos. E, por sua origem e seus objectivos suspeitos, a epopeia cósmica, nascida das cinzas quentes da guerra, no ninho de ovos explosivos das bombas atómicas e sub atómicas, integrou-se no campo dos meios de fuga. Era a fuga desesperada do homem para as estrelas, não para buscarem a paz e a harmonia, a Justiça e o Direito, a Verdade e a Dignidade, mas para permitirem a mais fácil e segura destruição do planeta através de foguetes criminosos que, em baterias celestes instaladas na Lua e nos planetas mais próximos, pudessem aniquilar a Terra em apenas alguns segundos de explosão nuclear. Já que a morte era o nada, a nadificação possível da vida, era também conveniente que os guerreiros da Era Cósmica dessem realidade efectiva e moderna aos raios de Júpiter disparados sobre o mundo. Não foi da mente supra liminar dos forjadores de foguetes, mas do inconsciente profundo, marcado pelas introspecções do terror, do desrespeito ao homem, do arbítrio e da força, do esmagamento mundial da liberdade, da coação extremada que surgiu e se impôs à consciência supra liminar o projecto da conquista diabólica dos espaços siderais. Na base e no fundo dessas maquinações gloriosas podemos detectar as raízes do desespero e da loucura, a que a simples idealização da morte como nadificação total – roubando ao homem as suas esperanças e os seus anseios –, desencadeou a corrida espacial ao lado da corrida armamentista das grandes potências mundiais.

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Herculano Pires, José – Educação para a Morte, 5 Os Meios de Fuga 1 de 2, 8º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)