Capítulo Segundo
KARDEC E O CORPO FLUÍDICO (IV)
O Cristo com corpo fluídico, segundo Kardec (*),
explicaria certas situações mas não chega a convencer. "O seu nascimento,
a sua morte e todos os actos materiais de sua vida não teriam sido mais que uma
aparição. E dizem que assim se explica que o seu corpo, retornado ao estado
fluídico, pôde desaparecer do sepulcro, e foi com este mesmo corpo que ele se
teria mostrado depois da sua morte."
A partir daqui, Kardec entra no mérito da questão.
Observemos como ele assesta os seus instrumentos de maneira a discutir sobre os
próprios argumentos utilizados pelos fluidistas.
"Sem dúvida, – diz – um facto destes não é radicalmente
impossível, segundo o que hoje se sabe sobre as propriedades dos fluidos; porém
seria pelo menos inteiramente excepcional e em oposição formal com o carácter
dos agéneres. A questão é, pois, de se saber se tal hipótese é admissível, se
ela é confirmada ou contraditada pelos factos."
Note-se que Kardec afirma que este caso seria
"excepcional e em oposição formal com o carácter dos agéneres",
porque o agénere não é somente o ser incriado, mas uma aparição tangível de
curta duração. Jesus, se tivesse tido um corpo fluídico, seria a excepção à
regra, o agénere perfeito de longa duração, no dizer de um certo autor (**),
um caso de "seres que se mostram materializados aos olhos humanos, às
vezes por longos períodos". Não é essa a conclusão a que chegou Kardec
sobre os agéneres. Mas, como ele mesmo disse, é preciso verificar se tal
hipótese "é confirmada ou contraditada pelos factos". Ele, pois,
prossegue nas suas considerações.
"A permanência de Jesus sobre a Terra apresenta dois
períodos: aquele que precede e aquele que segue a sua morte. No primeiro, desde
o momento da concepção até ao nascimento, tudo se passa com sua mãe como nas
condições comuns da vida. A partir do nascimento e até à sua morte, tudo, nos
seus actos, na sua linguagem e nas diversas circunstâncias da vida, apresenta
os caracteres inequívocos da sua corporeidade. Os fenómenos de ordem psíquica
que se produzem nele são acidentais, e nada têm de anormal, pois explicam-se
pelas propriedades do perispírito (i), e são
encontrados em diferentes graus em outros indivíduos. Depois da sua morte, ao
contrário, tudo revela nele o ser fluídico. A diferença entre esses dois
estados é tão fundamentalmente traçada que não é possível assemelhá-los."
Nessa linha de raciocínio, o Cristo de depois da morte é um
agénere perfeito, pois aparece e desaparece em curtos espaços de tempo e pode
ser reconhecido com perfeição. Na estrada de Emaús aparece a dois discípulos,
caminha com eles, demora mas é reconhecido, depois se esvai; a Tomé,
materializa-se a ponto de produzir impressões fortes e o convencer. Enfim, este
é o ser fluídico, tangível, numa palavra: o agénere! O outro, de antes da
morte, é o Cristo de carne, o homem com todas as necessidades do homem. Ninguém
o confunde nem duvida da sua realidade palpável, permanente.
"O corpo carnal – prossegue Kardec – tem as
propriedades inerentes à matéria propriamente dita, as quais diferem
essencialmente dos fluidos etéreos; a desorganização ali se opera pela ruptura
da coesão molecular. Um instrumento cortante, penetrando no corpo material,
divide os seus tecidos; se os órgãos essenciais à vida são atacados, o seu
funcionamento se detém, e a morte será a consequência, isto é, a morte do
corpo. Essa coesão não existe nos corpos fluídicos; a vida, neles, não repousa
no funcionamento dos órgãos especiais, e neles não se podem produzir desordens
análogas; um instrumento cortante ou qualquer outro ali penetra como num vapor,
sem lhe ocasionar lesão alguma. Eis por que os seres fluídicos designados sob o
nome de agéneres não podem ser mortos."
Depois do suplício de Jesus, o seu corpo lá ficou, inerte e
sem vida; foi sepultado como os corpos comuns, e todos puderam vê-lo e tocá-lo.
Depois da ressurreição, quando ele deixa a Terra, não morre; o seu corpo se
eleva e desaparece, sem deixar nenhum sinal, prova evidente de que esse corpo
era de outra natureza que não aquele que pereceu na cruz; de onde será forçoso
concluir que se Jesus pôde morrer é que tinha corpo carnal.
"Em consequência das suas propriedades materiais –
continua Kardec – o corpo carnal é a sede das sensações e das dores
físicas que repercutem no centro sensitivo ou Espírito; não é o corpo
que sofre, é o Espírito que recebe o contragolpe das lesões ou
alterações dos tecidos orgânicos. Num corpo privado de Espírito, a
sensação é absolutamente nula; pela mesma razão, o Espírito que não tem corpo
material não pode experimentar os sofrimentos que são o resultado da alteração
da matéria; daí será preciso igualmente concluir que se Jesus sofreu
materialmente, como não será possível duvidar, é que tinha um corpo material,
de natureza idêntica à de todos."
Até aqui, Kardec se atém ao aspecto físico e consequências.
Tira, porém, conclusões que para si são as únicas possíveis. Ora, o agénere não
pode morrer, não pode ser ferido. Jesus, no entanto, morreu, o seu corpo foi
sepultado, todos viram, tocaram. Só quem tem um corpo material – é Kardec quem
diz – pode passar por esses lances! Mas o Cristo era assistido por uma equipe
de Espíritos que poderiam muito bem simular todo o drama, inclusive o sangue a
jorrar dos ferimentos causados pela coroa de espinhos, pela cruz e pelas lanças
dos soldados, afirmam alguns. Sim, repetindo Kardec, nisso nada há de
materialmente impossível, porém é preciso convir que isso seria bem mais
antinatural do que se Jesus tivesse tido corpo material. Por mais que os
Espíritos possam fazer, o bom senso leva a ver que esta teoria é complicada
demais para ser verdadeira.
/…
(*) A Génese , cap. XV, item 64.
(**) "Universo e Vida", cap. VII.
Wilson
Garcia, O Corpo Fluídico, Capítulo Segundo – KARDEC E O CORPO
FLUÍDICO 4 de 5, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Sem título, pintura de Josefina Robirosa)
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