terça-feira, 29 de novembro de 2016

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria;
I Posição do Problema (III)

No conjunto de um sistema em movimento, toda a peça que se obstinasse em estacionar recuaria realmente. Nos nossos dias, já não é admissível dizer-se, dogmaticamente, que tal ou tal noção é perfeita e deve guardar o ataque da infalibilidade: ou se faz, ou se não faz parte da marcha progressiva do espírito. No primeiro caso, importa acompanhá-lo integralmente e, no segundo, há que confessar-se em atraso. Eis o que precisa ficar bem claro.

Digamo-lo francamente: em ciência experimental, Deus não pode ser admitido à priori e muito menos a destinação, ou finalidade, que presumimos apreender nas obras da Natureza.

As doutrinas apriorísticas caducaram, já se não admitem.

Confessemo-nos com os materialistas e perguntemos se os que tomaram Deus e não a Natureza como ponto de partida explicaram, algum dia, as propriedades da matéria ou as leis que governam o mundo. Puderam eles dizer-nos da mobilidade ou imobilidade do Sol? – se a Terra era plana ou esférica? – quais os desígnios de Deus, etc.? Absolutamente. Mesmo porque, seria impossível. Partir de Deus para a investigação e o exame da Criação é processo baldo de nexo e de sentido. Esse precário método para estudar a Natureza e inferir consequências filosóficas, no pressuposto de poder, com uma simples teoria, construir o Universo e fixar as verdades naturais, desacreditou-se, felizmente, há muito tempo.

Mas, pelo facto de havermos substituído a hipótese precedente pelos resultados do exame a posteriori, segue-se que devamos fechar os olhos e negar a inteligência, a sabedoria, a harmonia reveladas pela própria observação? Haverá motivo para repudiar toda e qualquer conclusão filosófica e ficar a meio caminho, temerosos de atingir o fim? E deveremos, por isso, rendermo-nos aos cépticos contemporâneos que, não obstante a evidência, rejeitam toda a luz e toda a conclusão?

Pensamos que não. Muito ao contrário, pelo método que preconizam, constatamos as suas recusas e inconsequências.

Antes de qualquer controvérsia, importa determinar as posições recíprocas, para evitar mal-entendidos, esperando nós que as declarações precedentes bastem para esclarecer categoricamente a nossa atitude.

Combateremos francamente o materialismo, não com as armas da fé religiosa, não com os argumentos da fraseologia escolástica, não com as autoridades tradicionais, mas pelos raciocínios que a contemplação científica do Universo inspira e fecunda.

Examinemos preliminarmente, num olhar, de conjunto, o processo geral do ateísmo hodierno.

Esse processo assemelha-se sensivelmente ao de que se utilizou o barão d'Holbach, nos fins do século passado, para fundamentar o seu famoso Sistema da Natureza, obra de um materialismo vulgar, para a qual achava Goethe não haver suficiente desprezo e costumava averbar de – “legítima quintessência da senectude, inepta e insulsa”. O novo processo, mais exclusivamente científico, todavia, consiste principalmente em declarar que as forças que dirigem, não dirigem o mundo, isto é: que em vez de governarem a matéria, antes se lhe escravizam e que é a matéria (inerte, cega, desprovida de inteligência) que, movendo-se de si mesma, se governa mediante leis, cujo alcance ela não pode, todavia, apreciar.

Pretendem os nossos materialistas actuais que a matéria existe de toda a eternidade, revestida de umas tantas propriedades, de certos atributos e que essas propriedades qualificativas da matéria bastam para explicar a existência, estado e conservação do mundo.

Dessarte, substituem um Deus-espírito por um Deus-matéria.

Ensinam que a matéria governa o mundo e que as forças químicas, físicas, mecânicas, não passam de qualidades.

Para refutar um tal sistema, há que tomar, por conseguinte, o partido contrário e demonstrar um Deus-espírito, antes que um Deus-matéria, incompreensível, a reger a matéria; estabelecer que a substância é escrava antes que proprietária da força; provar que a direcção do mundo não cabe às moléculas cegas que o constituem, mas às forças sob cuja acção transparecem as leis supremas.

Fundamentalmente, o problema resume-se nesta demonstração e nós esperamos que ela ressaltará brilhante dos estudos objectivados neste nosso trabalho.

E uma vez que os adversários se apoiam em legítimos factos científicos para estabelecer o erro, cumpre-nos contrabatê-los com esses mesmos factos.

A bem dizer, ainda que se demonstrasse que o Universo não é mais que um mecanismo material, cujas forças não se conjugam a um motor, mas remontam à matéria, subindo e descendo incessantes num sistema de motilidade perpétua, nem por isso a causa divina estaria perdida.

Contudo, desde os primórdios da Filosofia, a partir de Heráclito e Demócrito, o sistema mecânico do mundo constituiu-se o refúgio e o argumento dos ateus, enquanto o sistema dinâmico albergava e escorava os espiritualistas.

Nós, por princípio, filiamo-nos à concepção dinâmica e combatemos o sistema incompleto de um mecanismo sem construtor. Muito judiciosamente, diz Caro: (i) – por um lado o mecanismo tudo explica, mediante combinações e agrupamentos de átomos eternos. Todas as variedades de fenómenos, o nascimento, a vida, a morte, mais não são que o resultado mecânico de composições e decomposições, a manifestação de sistemas atómicos que se reúnem e se separam.

O dinamismo, ao contrário, subordina todos os fenómenos e todos os seres à ideia de força.

O mundo é a expressão, seja de forças opostas e harmoniosas entre si, seja de uma força única, cuja metamorfose perpétua engendra a universalidade dos seres.

Pode constatar-se que, não obstante ser a explicação secundária das coisas, até certo ponto, independente da primária, ou metafísica, a História atesta o facto constante de uma afinidade natural: de um lado, entre a explicação mecânica e a hipótese supressiva de Deus; e, de outro lado, entre a teoria dinâmica e a hipótese que diviniza o mundo no seu princípio.


/…
(i) La Philosophie de Goethe, capítulo 6º.


Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria I – Posição do Problema 3 de 6, 7º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Diálogos de Kardec ~

Causa e natureza da clarividência sonambúlica ~~~ Explicações do fenómeno da lucidez ~

Sendo de natureza diversa das que acontecem no estado de vigília, as percepções que se verificam no estado sonambúlico (i) não podem ser transmitidas pelos mesmos órgãos. É sabido que neste caso a visão não se efectua por meio dos olhos que, aliás, se conservam, em geral, fechados e que até podem ser abrigados dos raios luminosos, de maneira a afastar todo o motivo de suspeita. Ao demais, a visão à distância e através dos corpos opacos exclui a possibilidade do uso dos órgãos ordinários da vista. Forçoso é, pois, se admita que no estado de sonambulismo um sentido novo se desenvolve, como sede de faculdades e de percepções novas, que desconhecemos e das quais não nos podemos aperceber, senão por analogia e pelo raciocínio. Bem se vê que nada de impossível há nisso; mas, qual é a sede desse novo sentido? Não é fácil determiná-la com exactidão. Nem mesmo os sonâmbulos fornecem a tal respeito qualquer indicação precisa. Uns há que, para os verem melhor, colocam os objectos sobre o epigastro, outros sobre a fronte, outros no occipital. O sentido de que se trata não parece, portanto, circunscrito a um lugar determinado; é, todavia, certo que a sua maior actividade reside nos centros nervosos. O que é positivo é que o sonâmbulo vê. Por onde e como? É o que nem ele mesmo pode explicar.

Notemos, porém, que, no estado sonambúlico, os fenómenos da visão e as sensações que o acompanham são essencialmente diferentes do que se passa no estado ordinário, pelo que não nos serviremos do termo ver, senão por comparação e por nos faltar naturalmente um com que designemos uma coisa desconhecida. Um povo composto por cegos de nascença certo careceria de uma palavra para designar a luz e referiria as sensações que ela produz a alguma das que lhe fossem familiares por lhes estar ele sujeito.

Alguém procurava explicar a um cego a impressão viva e deslumbrante da luz sobre os olhos. Compreendo, disse eleé como o som de uma trombeta. Outro, um pouco mais prosaico sem dúvida, ao qual queriam fazer que compreendesse a emissão dos raios luminosos em feixes ou cores, respondeu: Ah! sim, é como um pão de açúcar. Estamos nas mesmas condições, relativamente à lucidez sonambúlica: somos verdadeiros cegos e, do mesmo modo que estes últimos com relação à luz, comparamo-la ao que tem mais analogia com a nossa faculdade visual. Mas, se quisermos estabelecer uma analogia absoluta entre essas duas faculdades e julgar de uma pela outra, forçosamente nos enganaremos, como os dois cegos que acabamos de citar. É esse o erro de quase todos os que procuram pretensamente convencer-se pela experiência: intentam submeter a clarividência sonambúlica às mesmas provas que a vista ordinária, sem ponderarem que entre elas a única relação existente é a do nome que lhes damos. Daí, como os resultados nem sempre lhes correspondem à expectativa, acham mais simples negá-los.

Se procedermos por analogia, diremos que o fluido magnético, disseminado por toda a Natureza e cujos focos principais parece que são os corpos animados, é o veículo da clarividência sonambúlica, como o fluido luminoso é o veículo das imagens que a nossa faculdade visual percebe. Ora, assim como o fluido luminoso torna transparentes corpos que ele atravessa livremente, o fluido magnético, penetrando todos os corpos sem excepção, torna inexistentes os corpos opacos para os sonâmbulos. Tal a explicação mais simples e mais material da lucidez, falando do nosso ponto de vista. Temo-la como certa, porquanto o fluido magnético incontestavelmente desempenha importante papel nesse fenómeno; ela, entretanto, não poderia elucidar todos os factos. Há outra que os abrange a todos; mas, para expô-la, fazem-se indispensáveis algumas explicações preliminares.

Na visão à distância, o sonâmbulo não distingue um objecto ao longe, como o faríamos nós com o auxílio de uma lunetaNão é que o objecto, por uma ilusão de óptica, se aproxime dele, ELE É QUE SE APROXIMA DO OBJECTO. O sonâmbulo vê o objecto exactamente como se este se encontra a seu lado; vê-se a si mesmo no lugar que ele observa; numa palavra: transporta-se para esse lugar. O seu corpo, no momento, parece extinto, a palavra lhe sai mais surda, o som da sua voz apresenta qualquer coisa de singular; a vida animal também parece que se lhe extingue; a vida espiritual está toda no lugar aonde o transporta o seu próprio pensamento: somente a matéria permanece onde estava. Há pois uma certa porção do ser que se lhe separa do corpo e se transporta instantaneamente através do espaço, conduzida pelo pensamento e pela vontade. Evidentemente, é imaterial essa porção; a não ser assim, produziria alguns dos efeitos que a matéria produz. É a essa parcela de nós mesmos que chamamos: a alma.

É a alma que confere ao sonâmbulo as maravilhosas faculdades de que ele goza. A alma é quem, dadas certas circunstâncias, se manifesta, isolando-se em parte e temporariamente do seu invólucro corpóreo. Para quem quer que haja observado com atenção os fenómenos do sonambulismo em toda a sua pureza, é patente a existência da alma, tornando-se-lhe uma insensatez demonstrada até à evidência a ideia de que tudo em nós acaba com a vida animal. Pode, pois, dizer-se com alguma razão que o magnetismo e o materialismo são incompatíveis. Se alguns magnetizadores se afastam desta regra e professam as doutrinas materialistas, é sem dúvida que se hão cingido a um estudo muito superficial dos fenómenos físicos do Magnetismo e não procuram seriamente a solução do problema da visão à distância. Como quer que seja, nunca vimos um único sonâmbulo que não se mostrasse penetrado de profundo sentimento religioso, fossem quais fossem suas opiniões no estado vigíl.

Voltemos à teoria da lucidez. Sendo a alma o princípio básico das faculdades do sonâmbulo, necessariamente nela é que reside a clarividência e não nesta ou naquela parte circunscrita do corpo material. Essa a razão por que o sonâmbulo não pode indicar o órgão dessa faculdade, como designaria os olhos, se se tratasse da visão exterior. Ele vê por todo o seu ser moral, isto é, por toda a sua alma, visto que a clarividência é um dos atributos de todas as partes da alma, como a luz é um dos atributos de todas as partes do fósforo. Onde quer, pois, que a alma possa penetrar, há clarividência; essa a causa da lucidez dos sonâmbulos através de todos os corpos, sob os mais espessos envoltórios e a todas as distâncias.

Uma objecção, como é natural, se apresenta a esse sistema e apressamo-nos a responder a ela. Se as faculdades sonambúlicas são as mesmas da alma desprendida da matéria, por que não são constantes essas faculdades? Por que alguns sonâmbulos são mais lúcidos do que outros? Por que, num mesmo indivíduo, a lucidez é variável? Concebe-se a imperfeição física de um órgão; mas não se concebe a da alma.

Esta se encontra presa ao corpo por laços misteriosos que não nos fora dado conhecer antes que o Espiritismo houvesse demonstrado a existência e o papel do perispírito (i). Tendo sido esta questão tratada de modo especial na Revista Espírita e nas obras fundamentais da doutrina, não nos alargaremos aqui sobre ela, limitando-nos a dizer que é pelos nossos órgãos materiais que a alma se manifesta no exterior. No nosso estado normal, essas manifestações ficam naturalmente subordinadas à imperfeição do instrumento, do mesmo modo que o melhor artífice não pode fazer obra perfeita com utensílios maus. Assim, por muito admirável que seja a estrutura do nosso corpo, qualquer que tenha sido a providência da Natureza, com relação ao nosso organismo, para o exercício das funções vitais, acima desses órgãos sujeitos a todas as perturbações da matéria, há a subtileza da nossa alma. Enquanto, pois, ela se conserva presa ao corpo, sofre-lhe os entraves e as vicissitudes.

O fluido magnético não é a alma; é um liame, um intermediário entre a alma e o corpo. Actuando mais ou menos sobre a matéria é que ele torna mais ou menos livre a alma, donde a diversidade das faculdades sonambúlicas. O sonâmbulo é o homem despojado apenas de uma parte das suas vestiduras e cujos movimentos são embaraçados pelo que lhe resta dessas vestiduras.

Somente quando tem alijado de si os últimos restos da ganga terrena, como a borboleta que abandona a sua crisálida, se encontra a alma na plenitude de si mesma e goza de liberdade completa no uso de suas faculdades. Se houvesse um magnetizador bastante poderoso para dar liberdade absoluta à alma, romper-se-ia o liame terrestre e a morte imediata se seguiria. O sonambulismo, portanto, fez que puséssemos o pé na vida futura; ergueu uma ponta do véu sob que se ocultam as verdades que o Espiritismo nos faz hoje entrever. Não na conheceremos, todavia, em sua essência, senão quando nos houvermos desembaraçado por completo da cobertura material que neste mundo a obscurece.

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Causa e natureza da clarividência sonambúlica, Explicação do fenómeno da lucidez, 6º fragmento solto da obra.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra