domingo, 2 de fevereiro de 2020

~~~Párias em Redenção~~~

O TESTAMENTO
(III)

Ante a efervescência dos convidados do Solar di Bicci e a leitura do testamento, o Espírito atribulado do Senhor duque, que se encontrava entorpecido no vágado demorado, de que fora vítima desde a hora em que Girólamo cometera os crimes sórdidos, despertou e, dominado por inenarrável fúria, acompanhou a leitura e os conchavos maléficos realizados no grande refeitório do solar, explodindo em cólera de louco. Identificando no sobrinho o autor de tantas desgraças, atirou-se sobre ele, punhos cerrados e dentes rilhados, sem, no entanto, conseguir atingi-lo.

À semelhança de um animal ferido, o Espírito do duque ululava, entre sombras espessas, de cujo bojo se destacavam o vulto odiento do sobrinho e o das personagens presentes, indiferentes ao seu próprio estado. Compreendeu, ante a leitura ouvida, que se encontrava definitivamente morto e que o ser sofria e se esganava em superlativa aflição e desconforto era ele mesmo, sim, em espírito vivo e indestrutível…

Embora a dor que o dilacerava, recordou-se dos filhos trucidados, de Lúcia, da esposa, enquanto as lágrimas, como aço derretido, lhe escorriam ardentes, lenhando-o externa e interiormente.

Sem o conforto de uma fé religiosa legítima, acostumado apenas ao culto externo e vazio da tradição, foi dominado pelo furor do ódio, deixando à margem toda a ternura e misericórdia de que ouvira falar e, de que se fizera portador aquele Nazareno Crucificado, em nome do Pai e, que dera a Sua pelas vidas dos homens de todos os tempos, ensinando mansidão e amor, até ao sacrifício supremo.

Em esgares, transformando-se lentamente, porque vencido pela própria desdita, o antigo Senhor di Bicci di M., desde aquele momento, se converteu em obsessor de Girólamo, seguindo-o implacável, tentando uma comunhão psíquica que hoje ou depois se faria, irreversivelmente, pois o ódio – o amor desvairado – vibra, poderoso e, encontra sintonia naquele a quem se dirige por um processo natural de harmonia vibratória, em considerando as baixas faixas mentais e morais em que se demoram os homens. Poderoso, o ódio atrai à sua força imantadora aqueles que se comprazem na invigilância e na irresponsabilidade, pois que somente a abnegação, a humildade, o amor, a caridade – as virtudes clássicas! – são antídoto específico capaz de dissolvê-lo.

sombra de que se supunha seguido, conforme relatara Girólamo, eram os primeiros fios invisíveis do remorso que o atariam à sua vítima central, por cujos liames se apertariam as teias da trama da vingança cega e louca do desafecto nascido pela traição e pelo homicídio múltiplo. Utilizando-se do remorso que teceria as malhas de imantação entre um e o outro, Dom Giovanni penetraria no recesso da consciência anestesiada do jovem e exerceria o seu predomínio em curso longo de obsessão vingadora, a se demorar pela esteira imensa do tempo. Não agora, porém, começariam os primeiros tormentos do criminoso. A Misericórdia Divina concede a bênção do tempo, em mil oportunidades, para o celerado reabilitar-se, mediante o arrependimento honesto em termos de acção pelo trabalho e pelo socorro ao próximo, através da construção do bem, dentro e fora do ergástulo em que se demora na carne. Todavia, soezes e frívolos, os facínoras se esquecem da justiça, e, quando esta não os alcança de imediato, supõem-se livres, prosseguindo na desenfreada cupidez, alucinação e prepotência, adicionando aos antigos novos débitos, acumpliciados com as mais vis manifestações do instinto, não totalmente domado ainda e, que lhes são portas da loucura inominável, em cujo corredor se atiram, sem possibilidade de próxima salvação. Era o que ocorria com Girólamo.

Limitado pelas comportas carnais, podia ver as cenas de primitivismo a que se atirava o pai adoptivo, tentando feri-lo, destruí-lo, exacerbado no próprio desespero. Deambulando pelo imenso solar, agora sem visitas, com os poucos servidores já recolhidos, repassava, o moço, as cenas ali vividas e se sentia o senhor absoluto da herdade, antegozando a hora em que, triunfante, com os documentos de posse, viesse a residir no palácio, demoradamente ambicionado. A realidade daquela hora parecia tirar-lhe a razão: sorria em alegria quase louca e bebia eufórico, seguido pela sombra do perseguidor.

A Senhora Ângela, em espírito, que também estivera presente à leitura do testamento, permanecera orando, tentando penetrar os crepes pesados que envolviam o esposo, de modo a acenar-lhe com as bênçãos do perdão ao infractor, que não jornadearia impune para sempre, libertando-o dos miasmas do ódio, em que se consumia lentamente. Fechado a qualquer comunicação exterior, o lampejo da lembrança dos seres queridos foi logo abafado pelo fervor da paixão odienta e nefasta que o venceu terrivelmente. Assim, a nobre Entidade, que socorria, a seu turno, os filhinhos recém-chegados e a antiga serva, abandonou o recinto, buscando a esfera da paz em que amparava os amores, confiando no Pai de Misericórdia e na Mãe Santíssima, a Eles entregando o esposo perdido nas trevas da ignorância e da vingança…

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VICTOR HUGO, ESPÍRITO “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 3. O TESTAMENTO (3 de 3), 10º fragmento desta obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)