quarta-feira, 14 de março de 2018

~~~Párias em Redenção~~~


O TESTAMENTO (II)

Passados os dias mais angustiantes do luto, as autoridades se reuniram no Palácio di Bicci para a leitura do testamento. Foram convidadas algumas famílias e compareceram, também, convocados pela Justiça, alguns remanescentes da família di Bicci di M., vinculados ao Senhor duque.

Os archotes fumegantes voltaram a arder em brasas vivas no solar e, embora todos se encontrassem em pesado luto, o vinho capitoso escorria abundante, por ordem de Girólamo, que contratara alguns áulicos novos para ajudar os fâmulos remanescentes.

O inverno rigoroso ainda não amainara de todo. Após as chuvas torrenciais e as trovoadas retumbantes, o frio cortava e as estradas se apresentavam quase intransitáveis. De quando em quando, uma pancada de água caía inesperada, ameaçando de interrupção total as péssimas vias de comunicação.

Todos, portanto, desejavam libertar-se daquele desagradável dever para o qual foram convocados, excepto os interessados. Por uma hábil manobra, Girólamo convidara especialmente Sua Excelência Reverendíssima o Senhor Bispo de Siena para presidir à solenidade, de forma a sentir-se amparado pela velha astúcia do mau e cobiçoso sacerdote, que o defenderia diante da família do extinto, caso os que viessem aventurar-se criassem dificuldades em face do vasto espólio, ou para qualquer outra inesperada emergência.

Com a intuição da possível vantagem, o prelado se fez acompanhar do séquito que o acolitava e antes que a Justiça terrena realizasse o seu mister apresentou-se como representante da Justiça Divina, abençoando o remanescente da família devorada pela tragédia e rogando a todos conformação ante os desejos do duque extinto. Terminada a oração, sem qualquer tónica de inspiração e autenticidade, o juiz convocou o notário à leitura do testamento, que, apresentado às testemunhas, estas declararam serem autênticos os selos e o documento, reconhecendo ter sido aquele que assinaram por solicitação de Dom Giovanni di Bicci di M.

Estavam presentes, também, diversos membros do clã dos M., recém-chegados de várias cidades da Toscana: Florença, Siena, Pisa…, interessados na descoberta de qualquer haver que pudessem arrojar aos excessos e desperdícios a que se encontravam e, que igualmente examinaram o documento.

Após pigarrear grotesco e asmático, o notário deu início à leitura, com voz fanhosa:

“Eu, abaixo assinado, Giovanni di Bicci di M., duque pertencente ao grão-ducado da Toscana, viúvo e morador no Palácio di Bicci, nos arredores de Siena, achando-me com saúde, em meu perfeito juízo e livre de toda e qualquer coação, faço meu testamento do modo seguinte: Primeiro – Declaro que sou natural de Florença, donde procedem os meus ancestrais, todos eles comerciários e homens públicos, já falecidos; Segundo – Que me tendo consorciado com Ângela Venturi di Bicci, já falecida, tive do matrimónio três filhos: Grazziella, Carlo e Juliana, todos menores, vivos; Terceiro – Que me sendo permitido por lei dispor de minha terça e desejando favorecer aqueles que me têm servido e a quem amo, aos quais sempre tenho protegido e, não desejando que fiquem pela minha morte privados dos recursos necessários para a subsistência, resolvi utilizar da minha terça pela forma abaixo declarada; e nesta conformidade: Quarto – Determino que uma terça parte do que me pertence e de que posso dispor seja entregue à Catedral de Siena, para obras de piedade e celebração de missas pela minha e pela alma da Senhora duquesa, ficando as partes restantes para Lúcia, que serviu admiravelmente à minha esposa e a mim me tem servido com devoção. Deixo a cada um dos meus criados, quando eu vier a falecer e, que ainda estiverem ao meu serviço, a importância de mil escudos, moeda toscana que lhes será entregue dentro de trinta dias, a contar da minha morte; Quinto – Como pelo falecimento de minha mulher os meus filhos já são possuidores das duas terças que lhes pertencem, a eles peço manter os meus desejos, já que lhes não fará falta o de que disponho, sendo esta a minha vontade; Sexto – Se, todavia, alguma desgraça vier a suceder aos meus filhos, de que lhes resulte a morte, todos os meus pertences devem passar à propriedade da aia de minha mulher, Lúcia di Francesco Felsina, a quem nomeio, desde já, tutora dos referidos menores, pela minha exclusiva vontade e com permissão da Justiça; Sétimo – Para Girólamo, a quem a minha extinta mulher tanto queria, este espólio somente lhe chegará às mãos por extinção das pessoas citadas neste testamento; e quando ele falecer, tudo será encaminhado à Ordem da Penitência, em Florença, sendo metade para obras de arte e a outra metade para missas pelos meus familiares; Oitavo – Excluo deste testamento quaisquer pessoas que se apresentem como meus familiares, aqui não referidos e que não necessitam do meu auxílio; Nono – E por esta forma tenho feito o meu testamento, pelo qual revogo todos os outros que fiz; e como me seria penoso escrevê-lo, pedi-o ao notário Dom Germano Victorio, a quem nomeio meu testamenteiro desta cidade, para que o fizesse por mim e, eu vou rubricar depois de lido e certificado de que está tal qual eu ditei e quero. Siena, doze de Janeiro de mil setecentos e quarenta e três.”

– Devidamente assinado e aprovado, como pode ser visto – arrematou o tabelião –, devemos atender às exigências de Dom Giovanni.

Irromperam entre os assistentes diversas exclamações de ódio e violência, surgindo alterações entre membros da família, que se acreditavam ludibriados. Revoltados, informaram que apelariam para a Justiça da Capital.

Girólamo, abraçado pelo Bispo, chorava ou fazia crer que chorava. Dizia desconhecer o documento, no que foi ratificado pelo notário, que informou jamais o ter revelado a alguém – conquanto fosse conhecido dipsomaníaco, na cidade –, e pelo prelado da diocese, que se sentia ufano de ter sido a Igreja lembrada pelo falecido. Rejubilava-se, acreditando poder receber, também, um largo quinhão de Girólamo, quando este entrasse na posse dos bens, tendo em vista serem amigos e ter-se transformado em seu protector desde os aziagos acontecimentos já narrados.

O Senhor Bispo, tomando a palavra no tumulto geral, tornando-se juiz da questão, levantou a voz e bradou:

– Como os demais herdeiros – as crianças de di Bicci e a criminosa Lúcia – se encontram mortos, todo o espólio por lei e direito pertence, desde este momento, a Girólamo, a quem cumpre o dever de atender os desejos do seu tio e pai adoptivo, Dom Giovanni – que Deus lhe guarde a alma, nos Céus!

– Não posso receber nada, – falou o rapaz. – Esta casa está manchada pelo sangue de inocentes vítimas e esse dinheiro é amaldiçoado. Não posso, não posso!

– Acalme-se, meu filho! – redarguiu o Bispo. – Celebraremos algumas missas aqui e abençoaremos o solar. Você ajudará a Igreja, terá o que merece e o que lhe pertence pela vontade de Deus e do Senhor di Bicci.

Os familiares di Bicci di M., talvez recordando o antigo prestígio de que gozavam até há pouco, ameaçaram, furibundos, tudo retomar, utilizando-se do fastígio que lhes aureolava o nome, junto a Francisco de Lorena, da Áustria, e prometeram regularizar a situação posteriormente, expulsando a espadas o usurpador. Blasfemando, encolerizados, saíram em direcção a Siena…

Asserenadamente, deixaram-se ficar alguns convidados, as testemunhas, que assinaram o documento, o notário e o Senhor Bispo, para uma demorada comemoração em família.

Girólamo, aparentando uma emoção, uma tristeza que estava longe de sentir, solicitou ao testamenteiro e ao Senhor Bispo que cuidassem das questões legais, enquanto ele se afastaria com destino a Florença para um justo repouso, a fim de reorganizar as ideias, muito violentadas nos últimos tempos. Voltaria um mês depois, quando, de posse dos haveres, saberia recompensá-los devida, regiamente.

Os olhos dos comensais espúrios do favor nefando brilharam e a noite continuou sombria, piscando estrelas no alto.

/…


VICTOR HUGO, ESPÍRITO “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 3. O TESTAMENTO (2 de 3), 9º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

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