O TESTAMENTO (II)
Passados os dias mais angustiantes do luto, as autoridades
se reuniram no Palácio di Bicci para a leitura do testamento. Foram convidadas
algumas famílias e compareceram, também, convocados pela Justiça, alguns
remanescentes da família di
Bicci di M., vinculados ao Senhor duque.
Os archotes fumegantes voltaram a arder em brasas vivas no
solar e, embora todos se encontrassem em pesado luto, o vinho capitoso escorria
abundante, por ordem de Girólamo, que contratara alguns áulicos novos para
ajudar os fâmulos remanescentes.
O inverno rigoroso ainda não amainara de todo. Após as
chuvas torrenciais e as trovoadas retumbantes, o frio cortava e as estradas se
apresentavam quase intransitáveis. De quando em quando, uma pancada de água caía
inesperada, ameaçando de interrupção total as péssimas vias de comunicação.
Todos, portanto, desejavam libertar-se daquele desagradável
dever para o qual foram convocados, excepto os interessados. Por uma hábil
manobra, Girólamo convidara especialmente Sua Excelência Reverendíssima o
Senhor Bispo de Siena para presidir à solenidade, de forma a sentir-se amparado
pela velha astúcia do mau e cobiçoso sacerdote, que o defenderia diante da
família do extinto, caso os que viessem aventurar-se criassem dificuldades em
face do vasto espólio, ou para qualquer outra inesperada emergência.
Com a intuição da possível vantagem, o prelado se fez
acompanhar do séquito que o acolitava e antes que a Justiça terrena realizasse
o seu mister apresentou-se como representante da Justiça Divina, abençoando o
remanescente da família devorada pela tragédia e rogando a todos conformação
ante os desejos do duque extinto. Terminada a oração, sem
qualquer tónica de inspiração e autenticidade, o juiz convocou o notário à
leitura do testamento, que, apresentado às testemunhas, estas declararam serem
autênticos os selos e o documento, reconhecendo ter sido aquele que assinaram
por solicitação de Dom Giovanni di Bicci di M.
Estavam presentes, também, diversos membros do clã dos M.,
recém-chegados de várias cidades da Toscana: Florença, Siena, Pisa…, interessados
na descoberta de qualquer haver que pudessem arrojar aos excessos e
desperdícios a que se encontravam e, que igualmente examinaram o documento.
Após pigarrear grotesco e asmático, o notário deu início à
leitura, com voz fanhosa:
“Eu, abaixo assinado, Giovanni di Bicci di M., duque pertencente
ao grão-ducado da Toscana, viúvo e morador no Palácio di Bicci, nos arredores
de Siena, achando-me com saúde, em meu perfeito juízo e livre de toda e
qualquer coação, faço meu testamento do modo seguinte: Primeiro – Declaro que
sou natural de Florença, donde procedem os meus ancestrais, todos eles
comerciários e homens públicos, já falecidos; Segundo – Que me tendo
consorciado com Ângela Venturi di Bicci, já falecida, tive do matrimónio três
filhos: Grazziella, Carlo e Juliana, todos menores, vivos; Terceiro – Que me
sendo permitido por lei dispor de minha terça e desejando favorecer aqueles que
me têm servido e a quem amo, aos quais sempre tenho protegido e, não desejando
que fiquem pela minha morte privados dos recursos necessários para a
subsistência, resolvi utilizar da minha terça pela forma abaixo declarada; e
nesta conformidade: Quarto – Determino que uma terça parte do que me pertence e
de que posso dispor seja entregue à Catedral de Siena, para obras de piedade e
celebração de missas pela minha e pela alma da Senhora duquesa,
ficando as partes restantes para Lúcia, que serviu admiravelmente à minha
esposa e a mim me tem servido com devoção. Deixo a cada um dos meus criados,
quando eu vier a falecer e, que ainda estiverem ao meu serviço, a importância
de mil escudos, moeda toscana que lhes será entregue dentro de trinta dias, a
contar da minha morte; Quinto – Como pelo falecimento de minha mulher os meus
filhos já são possuidores das duas terças que lhes pertencem, a eles peço
manter os meus desejos, já que lhes não fará falta o de que disponho, sendo
esta a minha vontade; Sexto – Se, todavia, alguma desgraça vier a suceder aos
meus filhos, de que lhes resulte a morte, todos os meus pertences devem passar
à propriedade da aia de minha mulher, Lúcia di Francesco Felsina, a quem
nomeio, desde já, tutora dos referidos menores, pela minha exclusiva vontade e
com permissão da Justiça; Sétimo – Para Girólamo, a quem a minha extinta mulher
tanto queria, este espólio somente lhe chegará às mãos por extinção das pessoas
citadas neste testamento; e quando ele falecer, tudo será encaminhado à Ordem
da Penitência, em Florença, sendo metade para obras de arte e a outra metade
para missas pelos meus familiares; Oitavo – Excluo deste testamento quaisquer
pessoas que se apresentem como meus familiares, aqui não referidos e que não
necessitam do meu auxílio; Nono – E por esta forma tenho feito o meu
testamento, pelo qual revogo todos os outros que fiz; e como me seria penoso
escrevê-lo, pedi-o ao notário Dom Germano Victorio, a quem nomeio meu
testamenteiro desta cidade, para que o fizesse por mim e, eu vou rubricar
depois de lido e certificado de que está tal qual eu ditei e quero. Siena, doze
de Janeiro de mil setecentos e quarenta e três.”
– Devidamente assinado e aprovado, como pode ser visto –
arrematou o tabelião –, devemos atender às exigências de Dom Giovanni.
Irromperam entre os assistentes diversas exclamações de ódio
e violência, surgindo alterações entre membros da família, que se acreditavam
ludibriados. Revoltados, informaram que apelariam para a Justiça da Capital.
Girólamo, abraçado pelo Bispo, chorava ou fazia crer que
chorava. Dizia desconhecer o documento, no que foi ratificado pelo notário, que
informou jamais o ter revelado a alguém – conquanto fosse conhecido
dipsomaníaco, na cidade –, e pelo prelado da diocese, que se sentia ufano de
ter sido a Igreja lembrada pelo falecido. Rejubilava-se, acreditando poder
receber, também, um largo quinhão de Girólamo, quando este entrasse na posse
dos bens, tendo em vista serem amigos e ter-se transformado em seu protector
desde os aziagos acontecimentos já narrados.
O Senhor Bispo, tomando a palavra no tumulto geral,
tornando-se juiz da questão, levantou a voz e bradou:
– Como os demais herdeiros – as crianças de di Bicci e a
criminosa Lúcia – se encontram mortos, todo o espólio por lei e direito
pertence, desde este momento, a Girólamo, a quem cumpre o dever de atender os
desejos do seu tio e pai adoptivo, Dom Giovanni – que Deus lhe
guarde a alma, nos Céus!
– Não posso receber nada, – falou o rapaz. – Esta casa está
manchada pelo sangue de inocentes vítimas e esse dinheiro é amaldiçoado. Não
posso, não posso!
– Acalme-se, meu filho! – redarguiu o Bispo. – Celebraremos
algumas missas aqui e abençoaremos o solar. Você ajudará a Igreja, terá o que
merece e o que lhe pertence pela vontade de Deus e do Senhor di Bicci.
Os familiares di Bicci di M., talvez recordando o antigo
prestígio de que gozavam até há pouco, ameaçaram, furibundos, tudo retomar,
utilizando-se do fastígio que lhes aureolava o nome, junto a Francisco de
Lorena, da Áustria, e prometeram regularizar a situação posteriormente,
expulsando a espadas o usurpador. Blasfemando, encolerizados, saíram em
direcção a Siena…
Asserenadamente, deixaram-se ficar alguns convidados, as
testemunhas, que assinaram o documento, o notário e o Senhor Bispo, para uma
demorada comemoração em família.
Girólamo, aparentando uma emoção, uma tristeza que estava
longe de sentir, solicitou ao testamenteiro e ao Senhor Bispo que cuidassem das
questões legais, enquanto ele se afastaria com destino a Florença para um justo
repouso, a fim de reorganizar as ideias, muito violentadas nos últimos tempos.
Voltaria um mês depois, quando, de posse dos haveres, saberia recompensá-los
devida, regiamente.
Os olhos dos comensais espúrios do favor nefando brilharam e
a noite continuou sombria, piscando estrelas no alto.
/…
VICTOR HUGO, ESPÍRITO “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO,
3. O TESTAMENTO (2 de 3), 9º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado
a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898,
tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)
Sem comentários:
Enviar um comentário