domingo, 26 de fevereiro de 2023

pensamento espírita argentino ~


CAPÍTULO I 

Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história 

Que somos?  
(XI) 

Aksakof, sábio russo, demonstrou na sua valiosa obra Animismo e Espiritismo, refutando Hartmann, que o animismo prova o Espiritismo, sem o qual este não poderia ser explicado; e isto é muito natural, porquanto, para admitir a persistência do espírito depois da morte, havia que deixar assente antes, que o espírito pode actuar, em casos supranormais, sem o auxílio do organismo somático, ter percepções sem órgãos sensoriais, realizar fenómenos de telecinesia, ideoplastia, telepatia, etc., sem o qual haveria uma impossibilidade lógica para admitir o fenómeno propriamente espírita. 

Frank Podmore, inimigo ferrenho que foi do Espiritismo, estabeleceu também a distinção entre fenómenos anímicos e espíritas e reconheceu que as faculdades supranormais do espírito encarnado “demonstram a existência de outro mundo mais elevado, no qual deverão actuar livremente”. 

Gabriel Delanne, nas suas obras Evolução Anímica e O Espiritismo perante a Ciência, amplia a demonstração de Aksakof e demonstra, baseado em observações e experiências científicas, (i) a existência do corpo astral, que serve de intermediário ao espírito para actuar sobre a matéria e construir, sobre o seu modelo, o organismo humano. 

O eminente psiquista, professor Ernesto Bozzano, demonstra, baseando-se nos factos que o Espiritismo científico regista, na sua refutação a René Sudre (ii) e ao professor Richet, que Metapsíquica, como ciência puramente anímica, é insuficiente para explicar todos os fenómenos e manifestações espíritas e o peso de sua lógica é tão esmagador como a evidência dos factos que cita. 

Por sua parte, Camille Flammarion, que dedicou quase toda a sua vida ao estudo do fenomenismo espírita, estabelece na sua magistral obra A Morte e seu Mistério, dentro de uma ordem lógica e rigorosamente científica, a conjugação e continuidade de todos esses fenómenos, que começam no mais rudimentar animismo e se elevam até às manifestações espíritas mais comprobatórias e concludentes. 

Não obstante o peso dos factos, da demonstração que estes implicam e dos argumentos que se aduzem em favor da tese espiritista, os metapsiquistas refractários ao Espiritismo seguem gravitando entre a dúvida e a negação, entre o “poder ser” e o “não ser” e em vez de sujeitar os seus juízos aos factos, sacrificam os factos aos seus conceitos, forçando-os a entrar ora no estreito marco das explicações anímicas, ora no círculo abstracto das hipóteses antiespíritas, filhas da fantasia materialista, como, por exemplo, a da criptomnésia ou memória ancestral, para explicar alguns fenómenos de xenoglossia que não se encaixam no reduzido marco da explicação estritamente anímica; hipóteses que supõem um médium poliglota falando os idiomas dos seus antepassados longínquos, adquiridos por herança fisiológica, ou dando à criptopsiquia (conjunto de faculdades ocultas do psiquismo) projecções fantásticas que fariam de um médium um ser omnisciente, o qual, segundo esta hipótese, poderia captar a consciência ou a memória que, depois da morte de um ser, andaria, momentaneamente, como a fumaça desprendida da chama, flutuando no éter do espaço, como se a consciência e a memória pudessem conceber-se sem o eu espiritual, consciente e por si só capaz de recordação. 

Sem dúvida, deve-se aos metapsiquistas o novo impulso que tomou o Espiritismo e que muitos homens de ciência se tenham interessado pelo seu estudo, em particular o professor Richet, que com o seu Tratado de Metapsíquica rompeu o hermetismo da Academia de Ciências de Paris e fez da Metapsíquica uma ciência oficial, considerada hoje como um ramo das ciências naturais, assim como o grande psicólogo Frederic Myers, com a sua obra A Personalidade Humana e o doutor Gustave Geley com Do Inconsciente ao Consciente, levaram a teoria espiritista às aulas universitárias. 

A Metapsíquica, como temos dito, é uma disciplina científica tão antiga como o Espiritismo, posto que não é mais do que este na sua fase experimental; nela há três correntes: uma que podemos chamar de vanguarda, por ser a mais revolucionária na ordem científica e a única perfeitamente definida, como é a corrente espírita, em cuja frente figuram os experimentadores mais eminentes, como WallaceCrookesVarleyde Morgan, Zollner, Podmore, Aksakof, HodgsonBarrettLodgeFlammarionLombroso, Brofferio, Geley, Bozzano, etc; a outra é a corrente centrista, formada pelos sábios indecisos, que vacilam entre a dúvida e a crença, que não se atrevem a negar em absoluto a teoria espírita, nem se arriscam a afirmá-la, temerosos de se equivocarem e que, como o ilustre Charles Richet, longe de negá-la, nela não crêem suficientemente provada e dizem com ele que “é necessário dotá-la de uma base sólida, constituída por factos indiscutíveis”, o que seria muito lógico, se esta base sólida não estivesse, como está, perfeitamente constituída; a retaguarda constitui a corrente conservadora, os não alinhados da ciência, que alimentam as ilusões do paralelismo psicofisiológico e sentem nostalgia do materialismo... 

Aí está, para responder às dúvidas e objecções dos metapsiquistas não-espíritas, a incomparável Katie King, frente a frente com o seu médium, este mostrando-se simultaneamente com ela, perfeitamente visível, tangível e fotografável, vivendo, accionando, pensando, discorrendo, conversando com ela, animando-a e revelando, ambas, duas personalidades física e psicologicamente distintas, duas individualidades biológicas inconfundíveis; aí está Estela de Livermore, manifestando-se durante cinco anos, em 388 sessões, materializando-se e desmaterializando-se à vista de seu esposo e do doutor Juan F. Grau (como o fizera Katie King à vista de William Crookes), beijando aquele, dando-lhe provas de afecto e carinho, falando intimamente com ele, escrevendo com a própria caligrafia que tinha em vida, nas folhas de papel que este lhe dava e perante a sua vista; aí estão estas e outras mil manifestações de espíritos materializados desafiando a absurda hipótese da “prosopopéia-metagnomia” que pretende, arbitrariamente, sejam um produto fantasmal da ideia “plasticizante” do médium; aí estão os fenómenos de correspondência cruzada, que descartam toda a explicação não-sofística, fundada em hipóteses anímicas; os de escrita automática e directa com a caligrafia própria do defunto, com as suas ideias, as suas opiniões e a modalidade própria de cada entidade manifestante; os de voz directa, que constituem, quando o fenómeno é autêntico, a prova mais formidável da comunicação espírita; os de xenoglossia, que, como os observados pelo juiz John W. Edmonds com a sua filha Laura e o obtido pelo médium Valiantini por voz directa, citado por Dennis Bradley, não podem ser explicados pela hipótese metapsíquica de Flournoy e muito menos por revivescências ancestrais; aí estão, enfim, as provas de identidade, obtidas pela mediunidade falante, que, como as expostas por Ernesto Bozzano na obra já mencionada, constituem, com o que expusemos e com o muito que desejamos expor, a base de granito sobre o qual se baseia o Espiritismo. 

O Espiritismo se alça vigoroso e triunfante acima dos ataques e objecções que lhe dirigem os seus inimigos; ergue-se como árvore frondosa, carregada de frutos promissores, frutos que a experiência abonou, que sazonou em quase um século de observação e de estudo e que hoje oferece à humanidade sofrida, como resultado de muitos sacrifícios e dissabores, não para adormecê-la no sono infecundo da quietude, como crêem alguns, mas para estimulá-la com o atractivo da imortalidade, que leva em si mesma todos os nobres anseios da vida e do progresso continuado do espírito, através de vidas sucessivas, de existências sempre renovadas e sempre superadas. 

O Espiritismo é ciência filosófica e ao mesmo tempo filosofia científica: ciência filosófica porque deduz conclusões dos factos que examina e filosofia científica porque repousa nos factos da Psicologia, da Metapsíquica e da ciência em geral, e é também ciência integral e progressiva, porque referindo-se ao espírito humano (sujeito e objecto de seus estudos e sempre perfectível), à sua evolução, ao seu destino, às suas relações com a humanidade e com o universo, nele integra os conhecimentos. 

A sua filosofia é eminentemente dialéctica; a sua concepção da vida, dinâmica; o seu conceito genético (iii) da história. 

Até meados do século passado, o Espiritismo não formou um corpo de doutrina. Os elementos desta ciência profunda do espírito, tanto no que se refere aos fenómenos como aos conceitos filosóficos, achavam-se dispersos por todos os povos da Terra e encontram-se em todas as épocas da história misturados com as mais diversas crenças e práticas religiosas. As pessoas dotadas de faculdades mediúnicas foram consideradas ora como deuses ou adivinhos, ora como demoníacas, bruxos ou feiticeiros. As práticas foram de domínio esotérico das religiões e por isso, em alguns casos, conservam esse selo de misticismo e de superstição do qual o Espiritismo ainda não se tem podido desprender, não obstante os avanços da ciência e da crítica razoável. 

Os fenómenos foram aceitos sem classificação nem ordem, tomando-se as manifestações anímicas por revelações espíritas, ou estas por aquelas, e muitas vezes a charlatanice e a sofisticação, pela verdade. E não é estranho que haja, todavia, muitas pessoas que creiam firmemente que tudo o que sai da boca de um médium é manifestação genuína do além. 

Se isto aconteceu com os fenómenos, que se poderia esperar da teoria? Esta adoeceu e adoece ainda de defeitos análogos, defeitos de interpretação e, portanto, de uniformidade filosófica e ideológica, tudo devido à influência das religiões, ao carácter de revelação providencial, de infalibilidade ou de superioridade que a gente simples ou ignorante atribui às comunicações espíritas e a essa tendência ao sincretismo que tudo quer conciliar – até mesmo os absurdos religiosos maiores, com os factos e conceitos mais claros e verdadeiros –, tendência que se nota em quase todos os autores clássicos e não em poucos modernos, que ainda vivem presos à rocha dos prejuízos da velha escolástica. Eis porque o Espiritismo, como filosofia, resulta numa doutrina heterogénea e em alguns casos contraditória, cujos princípios e preceitos diferem entre si, a tal ponto que originam duas correntes opostas: religiosa e conservadora, outra racionalista e revolucionária, que hoje se manifestam pronunciadamente. 

Em 1857, Léon Hippolyte Denisard Rivail – Allan Kardec –, espírito observador e de uma penetração pouco comum, examinou, compilou e classificou os factos, formulou a teoria e estabeleceu a nomenclatura espírita, criando um vocabulário com o qual expressou os factos e os conceitos doutrinários que deles resultam. Mas a doutrina de Kardec e dos seus colaboradores, mesmo sendo verdadeira nos seus princípios fundamentais, não pôde ultrapassar os limites de sua época nem romper por completo com os moldes religiosos aos quais se ajustou. Kardec buscou conciliar o Espiritismo, por um lado, com a ciência; por outro, com as religiões, usando métodos, procedimentos de lógica, formas de pensamento e de linguagem próprios dos dois. Isto pôde ser conveniente no seu tempo, em que a fé religiosa, à falta de melhor compreensão dos fenómenos espiritistas e do carácter de revelação que se lhes atribuía, desempenhava um papel primordial no ânimo dos adeptos, diferente dos que buscavam a verdade pela experiência e o raciocínio, mesmo sabendo-a possível e demonstrável. Por outro lado, a crença na sobrevivência do espírito ainda não havia sido desalojada da ciência pelo positivismo e pelo materialismo. Hoje, as exigências do espírito científico e filosófico, que abarcam horizontes mais amplos, não se satisfazem com os expedientes religiosos e morais de São Luís, de Santo Agostinho ou de qualquer outro santo filósofo ou teólogo, nem com versículos, preceitos ou parábolas extraídos da Bíblia. 

A moderna concepção do Espiritismo veio elaborando-se com a experiência dos factos, não só no terreno da Psicologia experimental, no fenomenismo metapsíquico e espírita – que lhe serve de base fundamental –, como também abonando este terreno com a contribuição das demais ciências físicas e naturais e com as reflexões filosóficas que estas sugerem. Por outras palavras, podemos afirmar que o Espiritismo, durante o processo de sua evolução, estava em gestação na consciência e na mente dos homens que o levariam a uma nova concepção científica e filosófica, estava formando a nova dialéctica espiritualista ajustada aos factos da Psicologia moderna e da concepção espírita dínamo-genética da vida e da história. 

Os novos tempos, os novos homens, as novas concepções do Universo, as novas ideologias e as novas formas das ideias. 

O sinal do evidente progresso do Espiritismo na actualidade é a sua grandiosa concepção dialéctica, cujos elementos fundamentais expomos nesta obra, bem como enriquecimentos de sua terminologia, que sofreu uma sensível renovação e foi aumentada consideravelmente com neologismos apropriados, necessários para a compreensão e devida classificação dos factos, das ideias e conceitos. 

Não há ciência nem filosofia que, no curso de sua evolução, não sofra modificações, não mude em algum dos seus conceitos e nos limites do conhecimento, à medida que este se faz mais extensivo, mais claro, mais compreensível, mais ajustado à verdade essencial que encarnam os factos ou fenómenos estudados. 

A concepção dialéctica e a sua lógica científica põem de manifesto a renovação e o avanço do Espiritismo, despojando-o de todo o elemento alheio ao seu conteúdo científico e filosófico e reafirmando um dos mais formosos princípios de sua doutrina: O Espiritismo, marchando de acordo com os progressos da ciência, nada tem a temer. 

/... 
(i) Ver também, As Vidas Sucessivas, do mesmo autor. 
(ii) O autor refere-se à obra A Propósito da “Introdução à Metapsíquica Humana”, que teve o objectivo de refutar as teorias de René Sudre em sua obra Introdução à Metapsíquica Humana. (N.E.)
(iii) Ciência filosófica porque estuda e resume na sua vasta filosofia todos os princípios filosóficos relacionados com o ser e o pensar, e filosofia científica porque repousa em factos experimentais e de observação, partindo da Psicologia e da Metapsíquica e estendendo-se às ciências em geral e, por conseguinte, considerado nas suas relações e projecções com as ciências particulares. 


Manuel S. PorteiroEspiritismo Dialéctico, CAPÍTULO I Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história – Que somos? (XI), 11º fragmento da obra. 
(imagem de contextualização: Personajes, Pintura de Josefina Robirosa)

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Corpo fluídico | agénere ou aparição tangível ~


Capítulo Terceiro 

INSTALANDO-SE, AFINAL 

Na intenção de formalizar a obra roustainguista como integrante da Doutrina Espírita, os Autores se cercam de argumentos e citações separadas a dedo. E mais, não deixam passar uma oportunidade sequer em que o nome Roustaing possa ser citado de maneira positiva. 

No volume terceiro da obra "Allan Kardec" está concentrado o principal esforço pró-Roustaing. Um documento, por exemplo, datado de 1904, serve de pretexto para que ele seja citado. É que naquela ocasião se reuniram no Rio de Janeiro espíritas de diversos pontos do Brasil. No final, aprovaram aquilo que se chamou "Bases da Organização Espírita" em decorrência de uma proposta da Federação Espírita Brasileira. As Bases resumiam os esforços que seriam envidados no sentido de criar, nos diversos Estados brasileiros, sociedades moldadas na própria FEB. Depois de se referir às obras "O Livro dos Médiuns" e "O Livro dos Espíritos", diz: "Em todas essas agremiações o programa consistirá (...) c) para a parte moral, no estudo dos Evangelhos, adoptando "O Evangelho segundo o Espiritismo" os que assim o entenderem, ou "Os Quatro Evangelhos" ou "Revelação da Revelação", dada a J.- B. Roustaing os que o preferirem, em todos esses estudos permitindo-se sempre a permuta de opiniões, para perfeito entendimento das questões tratadas". O certo é que, já na época, grandes discussões eram travadas nos meios espíritas brasileiros a propósito da obra de Roustaing. Na reunião de 1904 não deverá ter sido fácil um consenso em torno do programa citado, exactamente por causa do livro "Quatro Evangelhos" defendido pela FEB e contestado por grupos de outros Estados. O "Livro do Centenário", editado pela FEB e que trata da reunião de 1904, diz que "na reunião dos delegados... foram aprovadas, depois de discussão e ligeira rectificação em alguns pontos do projecto original, apresentado pela directoria da Federação, as... Bases da Organização Espírita". Certamente o termo "ligeira rectificação" não deve expressar bem o que houve. A Federação, interessada na expansão do movimento espírita através da fundação de novas sociedades, mas igualmente interessada em fazer crescer o número daqueles que estudariam as obras de Roustaing, com certeza encontrou, como ainda hoje ocorre, resistências muito fortes, o que gerou intranquilidade. Daí a procura de uma fórmula que evitasse a cisão completa, fórmula que muito bem pode ter sido a de deixar que os próprios espíritas decidissem o que estudar. Paliativa, mas não a melhor, sabiam os antiroustainguistas, porque antes de tudo se deve estudar Kardec

Mais adiante, ainda no volume terceiro, os Autores fazem a citação do livro "Universo e Vida", a fim de fundamentar a sua argumentação relativa à obra "A Génese". Ora, "Universo e Vida", livro de origem mediúnica (?), é declaradamente roustainguista. Teve como prefaciador o próprio Sr. Francisco Thiesen, co-autor de "Allan Kardec" e, foi editado pela FEB. Não é obra aceite por boa parte da crítica espírita. Recebeu a contestação de um dos mais ilustres escritores - Hermínio C. Miranda - através de um bem fundamentado trabalho publicado na imprensa espírita (i). Hermínio o criticou a partir do nome do autor espiritual, Áureo. E a obra, realmente, apresenta pontos de vista que não encontram respaldo em nenhuma parte da codificação. Veja-se, para exemplificar, a citação a seguir (ii)

"Os Cristos, Espíritos Puríssimos, não encarnam. Não têm mais nenhuma afinidade essencial com qualquer tipo de matéria, que é o mais baixo estágio da energia universal. Para eles matéria é lama fecunda, que não desprezam, sobre a qual indirectamente trabalham através dos seus prepostos, na sublime mordomia da Vida, mas coisa com que não podem associar-se contextualmente, muito menos em íntimas ligações genéticas. Eles podem ir a qualquer parte dos Universos e actuar onde lhes ordene a Vontade Todo-Poderosa de Deus Pai; podem mesmo mostrar-se visualmente, por imenso sacrifício de amor, a seres inferiores e materializados, indo até ao extremo de submeter-se ao quase-aniquilamento de tangibilizar-se à vista e ao tacto de habitantes de mundos inferiores, como a Terra; mas não podem encarnar, ligar-se biologicamente a um ovo de organismo animal, em processo absolutamente incompatível com a sua natureza e tecnicamente irrealizável." 

Eis aí uma opinião tola da inteira responsabilidade de quem a formulou, como diria Kardec. Além disso, ela se contradiz a si mesma. Não se compreende como pode o Espírito Superior estar incompatibilizado de se ligar à carne, por ser ela "lama". O que confere superioridade é exactamente o facto de poder viver experiências sem as quedas naturais aos Espíritos imperfeitos. Dizer que os Cristos não encarnam é falar sem provas. Kardec, após conviver com uma grande equipe constituída por Espíritos da mais alta envergadura, entendeu exactamente o contrário ao referir-se a Jesus. 

Veja-se esta outra transcrição (iii)

"Há, porém, agéneres e agéneres. Tais seres são, por definição, criaturas fisiologicamente não geradas como o normal dos encarnados. Noutras palavras, seres que se mostram materializados aos olhos humanos, às vezes por longos períodos, que são sempre interrompidos, necessariamente, por variáveis interregnos de tempo. Em casos especiais, a frequência com que aparecem dá uma poderosa impressão de continuidade." 

Aqui não parece ser um Espírito quem fala, mas um encarnado. A definição de não gerado dada aos agéneres partiu da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, na época dirigida por Kardec. O Autor usa a mesma definição, quando poderia tê-la ampliado até. O que ele não explica, porém, é a questão do agénere de longo período de materialização. Para Kardec, a longa duração não excedia de algumas horas. E para o Autor de "Universo e Vida"? Bem, com certeza a sua longa duração ultrapassa a alguns anos, pois só assim se pode conciliar o Cristo agénere... 

Veja-se mais (iv)

"O Cristo-Jesus, Senhor da Verdade e da Inteireza, foi o único Espírito absolutamente completo, com todas as suas faculdades plenamente desenvolvidas e, em perfeito funcionamento, que se materializou totalmente na Terra, assumindo por inteiro a biologia e a morfologia de um Homem, com tudo o que compõe um organismo humano, sem faltar absolutamente nada, personificando o modelo físico e espiritual, perfeito por excelência, do Homo sapiens, na futura e mais elevada conformação biomentofísica que atingirá quando chegar ao seu mais alto grau de evolução terrestre. Foi por essa razão que Jesus se intitulou, com a mais plena verdade e a mais inteira justiça, O FILHO DO HOMEM. Não o fez por mera força de expressão; disse uma soleníssima verdade, da mais extraordinária significação, pois como Homem Ideal, perfeito e íntegro, ninguém teve, com ele, neste mundo, todos os sentidos a funcionar em grau máximo. A sua percepção, mesmo se quiséssemos vê-la do exclusivo ponto de vista da organização psicossomática humana, atingiu o mais alto nível, que outro ser humano, ou de aparência humana, jamais conseguiu." 

Efectivamente, um Cristo privilegiado. É só o que se pode concluir do trecho acima. Um Cristo protagonista do mais espectacular parto de toda a história da humanidade, ou seja, não chegou pelas vias naturais, mas foi detentor do mais perfeito corpo humano, "sem faltar absolutamente nada", em suma o verdadeiro "modelo físico e espiritual". Quanta inveja esta revelação não há de causar aos melhores cientistas que se esfalfam nos seus laboratórios para desvendar os mistérios da vida humana e, de repente, aparece um cristo-roustanguista com o mais surpreendente corpo! 

O pior, porém, é o que vem a seguir. Uma crítica directa e impiedosa a Kardec e a todos os que seguiram a sua opinião. 

"Completamente irreal e terrivelmente injusto é, pois, o argumento de embuste, largamente usado pelos que não compreendem a absoluta impossibilidade da encarnação comum de um Ser Crístico e só conseguem ver uma grosseira pantomima na capacidade de sofrer de um agénere. A verdade, como vemos, é bem outra, incomparavelmente bela, justa, santa, lógica e real; a realidade do sublime amor daquele que é, de facto, o Caminho, a Verdade e a Vida." 

Viu-se como fora preciso criar um agénere distinto, perfeito, tão humano como qualquer encarnado, para explicar que o Cristo sofreu, que não cometeu nenhuma farsa. Eis o absurdo! Mais lógico, mais simples que tudo isso seria nascer pelas vias naturais! Dizer que o agénere sofre com as dores físicas é fechar os olhos à própria realidade do agénere. Então, para fugir a isto inventa-se o agénere do agénere! Eis aí um atalho mais longo que a estrada, por onde se enveredam (e se perdem, não há dúvida...) os infelizes mistificadores. 

Hermínio C. Miranda, já citado, na sua crítica a "Universo e Vida", intitulada "Razões para uma discordância", transcreve e comenta o seguinte trecho: "Já nem queremos insistir no que representa uma redução de radiações gama (que o Cristo teria feito para se materializar na Terra), de 0,0001 milimícrons de comprimento de onda e frequência da ordem 1021 por segundo, a radiações percebíveis pelo olho humano, de 0,8 mícrons a 0,4 mícrons de comprimento de onda e frequência de cerca de 5.1014 por segundo". 

Comenta Hermínio: "Certamente, por causa dos meus escassos conhecimentos de Física isso não me diz nada e nada acrescenta ao Cristo que vejo na serena filosofia do amor nos Evangelhos. Como também não posso entender o tremendo risco que representa para nós, encarnados, a presença de um Espírito Crístico. Segundo depreendo do texto de "Universo e Vida" (pág. 111), qualquer "organismo celular de matéria densa" está sujeito a desintegrar-se "instantaneamente à mais branda vibração bioeletromagnética de um ser daquela categoria". 

A coisa não pára aí. Hermínio estranha, entre outras coisas, a longa adjectivação com que o Autor distingue Maria, mãe de Jesus. E diz: "Lamento informar que também não me agrada a maneira pela qual é tratada a figura de Maria, a despeito dos retumbantes adjectivos escolhidos para exaltá-la. Ou mais precisamente, por isso mesmo. Habituado a uma veneração respeitosa e a uma filial ternura por esse amado Espírito, não a vejo como "base ectoplásmica" ou "ponto de referência e de equilíbrio de todos os processos espirituais, eletromagnéticos e quimiofísicos" destinados a possibilitar "a Presença Crística" na Terra. Os títulos são estes: Virgem Excelsa, Rainha dos Anjos, Santa das Santas, Estrela Divina do Universo das Grandes Almas, a Grande Mãe, a Grande Advogada, Grande Protectora, Augusta Senhora do Mundo ... ". 

Hermínio arremata: "Tenho as minhas dúvidas de que o suave Espírito da Senhora se sinta bem com toda essa exaltação adjectiva..." 

Agora – muito importante – as conclusões de Hermínio C. Miranda sobre "Universo e Vida", no seu todo: "Lamento, pois, declarar que discordo das ideias e conceitos expressos em "Universo e Vida". Não sei mesmo se as dificuldades alegadas quando de sua captação mediúnica resultaram da actuação dos "aborrecidos da luz" ou de companheiros esclarecidos que desejavam alertar os que nele trabalhavam para as suas incongruências e fantasias"

Ora, uma obra que pretende ter o porte do mais profundo trabalho sobre Allan Kardec, como a de Zêus Wantuil e Francisco Thiesen, torna-se altamente suspeita quando recorre a fontes do género "Universo e Vida". 

É certo, porém, que nem os próprios roustainguistas se entendem com relação à sua doutrina. Veja-se o que diz Luciano dos Anjos (adepto declarado de Roustaing): 

"Lendo, recentemente, o livro "Universo e Vida", do Espírito Áureo, para o qual me fora solicitado um prefácio que não fiz, deparei outra vez com esse tipo de erro. Oportunamente, comentarei essa obra. Por enquanto, adianto que o Autor, dizendo-se adepto das ideias de Roustaing, sem dúvida não as entendeu, pois há erros incríveis de interpretação". 

/... 
(i) "Jornal Espírita", outubro de 1980, páginas 9/10. 
(ii) Capítulo VII, página 110. 
(iii) Idem, página 115. 
(iv) Idem, ibidem, página 116. 


Wilson GarciaO Corpo Fluídico, Capítulo Terceiro – INSTALANDO-SE, AFINAL, 10º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Sem Título, pintura de Josefina Robirosa