VI
O inverno chegou, espessas nuvens se demoram no céu; o vento
ruge por sobre as colinas despojadas, fazendo rodopiar os monturos de folhas
mortas. Maurice, sozinho, vestido de luto, está sentado perto da lareira que
crepita no seu pequeno aposento dominando o lago. Tem um livro aberto
diante dos olhos; mas não o lê; sombrios pensamentos o assediam. Sonha com
aquela que repousa debaixo da terra gelada, ouvindo os gemidos do vento que
chora como uma legião de almas em sofrimento. Por vezes, levanta-se e vai
espreitar, por detrás dos vidros da janela, o cinzento tapete das águas, o
horizonte cujas cores de chumbo se harmonizam com o estado do seu espírito;
depois pegando um bauzinho de madeira esculpida, abre-o e retira dele flores
dessecadas, um laço de fitas, jóias de mulher. Aperta-os debaixo dos lábios,
essas relíquias de amor; o passado evocado se revela na sua memória. E as horas
sucedem-se às horas. Maurice permanece ali, meio inclinado sobre esse fogo que
queima na atmosfera húmida. Ele sonha com a felicidade perdida, as esperanças
desvanecidas. A falta de coragem reavivou-lhe o desgosto da vida, esse desgosto
de amar outra vez, invadiu-o novamente; ideias de suicídio germinam no fundo do
seu pensamento.
Faz-se noite e o fogo se vai apagando, mas Maurice
compraz-se nessa obscuridade mais e mais espessa. Uma ressonância fez-se ouvir
atrás dele. Volta-se de repente e nada vê. Talvez o barulho do vento ou dos
passos da empregada, no quarto vizinho. Junto à chaminé está um piano,
silenciado há muito tempo. De súbito, sons se elevam desse móvel hermeticamente
fechado. Confundido pela surpresa, Maurice presta atenção. Essa ária bem
conhecida é A Canção de Mignon, a canção preferida de Giovanna e, que ela
gostava de tocar à noite, depois da refeição. O coração de Maurice fica
apertado; as lágrimas escorrem-lhe nos olhos. Levanta-se, dá a volta ao piano:
ninguém! O banquinho está vazio. Volta para o seu lugar. Será tudo isto ilusão
sonora tão-só? Uma sombra branca ocupa a poltrona que acabara de deixar.
Tremendo, aproxima-se. Os seus olhos, o seu olhar límpido, os seus cabelos
louros como espigas maduras, essa boca sorridente, esse porte esbelto,
alongado, é a imagem de Giovanna. Oh magia, a tumba devolve então os seus
hóspedes! Uma voz vem acariciar os seus ouvidos: – “Amigo, não
receies nada, sou bem eu, não procures tocar-me, não sou senão um Espírito. Não
te aproximes mais, escuta-me.” Maurice ajoelha-se e chora – “Meu
anjo, minha noiva, és então tu?”
– Sim, sou eu a tua noiva, tua noiva bem antes desta
vida. Escuta, um laço eterno nos une. Nós conhecemo-nos desde há séculos, temos
vivido lado a lado, por muitas vezes percorrido juntos muitas existências. A
primeira vez que te encontrei sobre a Terra, estava muito fraca, bastante
tímida e, a vida então era dura. Tu me seguraste pela mão e, me tens servido de
apoio; desde esse momento, não nos separamos mais. Sempre nos seguimos nas
nossas vidas materiais, andando no mesmo caminho, amando-nos, sustentando-nos um
ao outro. Ocupados com os combates, os empreendimentos guerreiros, tu não
podias realizar os progressos necessários para que o teu espírito livre,
purificado, pudesse deixar esse mundo grosseiro. Deus queria prová-lo;
separou-nos. Eu poderia subir mais altas esferas, mais felizes, enquanto que tu
deverias prosseguir, sozinho, a tua provação aqui em baixo. Então preferi
esperar-te no espaço. Tu cumpriste duas existências desde então e, durante o
seu curso, testemunha invisível dos teus pensamentos, não tenho cessado de
velar por ti. Cada vez que a morte arrancava uma alma da matéria, tu me
encontravas e o desejo de te elevares te fazia tomar com mais ardor o fardo da encarnação. Desta
vez, tendo orado muito, tendo suplicado tanto ao Senhor, ele me tendo permitido
voltar à Terra, aí tomando um corpo, uma voz, para falar-te do bem e da
verdade. Os nossos amigos do espaço aproximaram-nos, reuniram-nos, mas por um
tempo limitado. Eu não podia permanecer por mais tempo sobre a Terra, a minha
missão já estava completa. Não devia ser tua aqui em baixo.
“É chegada a hora em que os Espíritos podem, segundo
permissão divina, comunicar-se com os humanos. Por isso venho, para guiar-te,
encorajar-te, consolar-te. Se quiseres que esta existência terrestre seja a
última para ti; se quiseres que, à tua partida, nos reunamos para não mais nos
separarmos, consagra a tua vida aos teus irmãos, ensine-lhes a verdade.
Diz-lhes que o objectivo das existências não é o de adquirirem bens efémeros,
mas o de aclararem a sua inteligência, de purificarem o seu coração, de se
elevarem para Deus. Revela as grandes leis do Universo, a ascensão dos
Espíritos para a perfeição. Ensine-lhes as vidas sucessivas e solidárias, a
pluralidade dos mundos inumeráveis, as humanidades irmãs. Mostra-lhes a
harmonia moral que rege o infinito. Deixa atrás de ti as sombras da matéria, as
paixões maldosas; dá a todos o exemplo do sacrifício, do trabalho, da virtude.
Tem confiança na justiça divina. Olha para diante, para a luz longínqua que
aclara o objectivo, o objectivo supremo que nos deve reunir no amor e na
felicidade.”
“Sem demora entrega-te à obra; nós te sustentaremos, te
inspiraremos. Estarei próximo de ti na luta, envolver-te-ei num fluido
benfazejo. Assim, nesta noite, me tornei visível aos teus olhos, revelei-te o
que ainda ignoravas. E um dia, quando tudo o que tens em ti, de terrestre e de
menor, se tiver desvanecido, unidos, confundidos, nos elevaremos juntos para o
Eterno, juntando as nossas vozes ao hino universal que sobe de esfera em esfera
até Ele.”
Reencontrei Maurice Ferrand, há alguns anos, numa grande vila, por detrás dos
Alpes. Havia começado a sua obra. Pela escrita, pela palavra, trabalhava
disseminando esta doutrina conhecida sob o nome de Espiritismo. Os sarcasmos e
as zombarias choviam sobre ele de todos os lados. Cépticos, devotos,
indiferentes, todos se uniam para o importunar. Mas, calmo, resignado, não
parava de seguir firme a sua missão. “Que me importa, dizia-me, o desdém desses
homens. Dia virá em que, com o auxílio da provação, compreenderão que esta vida
não é tudo e pensarão em Deus, no seu porvir sem fim. Então talvez se recordem
daquilo que lhes disse. A semente lançada neles poderá germinar. E, aliás, acrescentou
observando o céu – e uma lágrima brilhou nos seus olhos – o que
faço, não é mais que obedecer àqueles que me amam, é para me aproximar
deles!”
/...
Léon Denis, Giovanna_1880, VI 9º fragmento e o último desta obra.
(imagem de contextualização: Retrato, pequena
pintura que especialistas de arte italiana atribuem a Rafael Sanzio)
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