segunda-feira, 22 de março de 2021

Deus na Natureza ~


A Força e a Matéria ~ 
I Posição do Problema ~ 
(VI de VI) 

A exposição precedente já deixou adivinhar, sem dúvida, a táctica do ateísmo contemporâneo. 

Ele não é fruto directo do estudo científico, mas procura insinuar-se com essa aparência. É evidente a ilusão, nesses filósofos, pois sabemos que há entre eles uns tantos conceitos verdadeiros. É, à força de quererem conjugar à Ciência as suas teorias, que acabaram por embutir no cérebro essa união clandestina. Essas teorias não podem invocar a seu favor qualquer das grandes provas científicas da nossa época e, não obstante, dão-se como resultantes de todo o moderno trabalho científico. 

Isso repetem e, é com essa hermenêutica que abusam dos ignorantes e da juventude desprecavida e entusiasta, tendendo a lhes fazer crer que as ciências, à força de progredirem, acabaram por descobrir e demonstrar que não há Deus nem alma. São eles que fazem a Ciência. 

Dir-se-ia, depois de os ouvir, não haver nada para além deles. Os grandes homens da antiguidade e da Idade Média, tanto como os modernos, são fantasmas e, toda a Filosofia deve desaparecer diante do ateísmo pretensamente científico. 

Torna-se necessário que a imaginação popular não se deixe iludir por simples jogo de palavras, que valem mais, às vezes, por verdadeira comédia. Importa que as criaturas pensem por si mesmas, julguem com conhecimento de causa e adquiram a certeza de que os factos científicos, perquiridos sem prevenção, não comportam as conclusões dogmáticas que lhes querem impor. 

Vista de perto, a pedra angular a grande custo lançada pelo materialismo contemporâneo, deixa entrever, não passar de velho e carcomido tronco de madeira podre que no fundo, os partidários do sistema já não estão seguros do seu cepticismo do que o estariam os calvos discípulos de Heráclito ou de Epicuro

Ainda que queiram convencer-nos do contrário, todo o seu sistema não passa de hipótese, mais vazia e menos fundamentada que muitos romances científicos. 

E uma vez que são eles próprios a declarar que toda a hipótese deve ser banida da Ciência, não há como deixarmos de começar por esse banimento. 

Realmente, com que direito fazem da força atributo da matéria? 

Com que direito afirmam que a força está submetida à matéria, que lhe obedece passivamente aos caprichos, escrava absoluta de elementos inertes, mortos, indiferentes, cegos? Maior e mais fundado é o nosso direito de inverter-lhes a proposição, derrubando-lhes o edifício pela base. 

Terminemos assim esta exposição do problema, decidindo que o discrime se coloca nestes termos fundamentais: é a matéria que domina a força, ou antes esta que domina aquela? 

Trata-se de discutir e escolher uma ou a outra, ou, para falar com mais exactidão – trata-se de observar a Natureza e optar depois. 

E, uma vez que os honrados campeões da matéria afirmam, com tanta segurança, o primeiro enunciado, começamos por revoga-lo em dúvida e propondo a alegação contrária. 

No rosto desta obra inscrevemos, por conseguinte, esta pergunta: 

A força rege ou é regida pela matéria? É este o dilema que os factos por si mesmos devem resolver. 

O panorama geral do Universo vai oferecer-nos uma primeira demonstração de soberania da força e da ilusão dos materialistas. 

Da matéria, nos elevamos às forças que a dirigem; destas, às leis que as governam e, destas, ainda, ao seu misterioso autor. 

A harmonia repleta o mundo dos seus acordes e os ouvidos de alguns ínfimos seres humanos se recusam a escutá-los. A mecânica celeste lança, ousadamente, no espaço, o arco das órbitas e o olho de um parasita desses orbes desdenha a grandeza da sua arquitectura. 

A luz, o calor, a electricidade, pontos invisíveis projectados de uma a outra esfera, fazem circular nos espaços infinitos o movimento, a actividade, a vida, a radiação do esplendor e da beleza e, as imbeles criaturas, apenas desabrochadas à superfície de um parasita desses orbes desdenha a grandeza a confessar a fulgurância celeste! É loucura ou é tolice? É orgulho, ou ignorância? Qual a origem e a finalidade de tão estranha aberração? Porque a força vital, álacre e fecunda, palpita no Sol como na borboleta que morre com a manhã; no carvalho anoso das florestas como na primaveril violeta? – porque a vida magnificante doura as messes de Julho e os cabelos encaracolados da juventude petulante e freme no seio virginal das noivas? – porque negar a beleza, mascarar a verdade e desprezar a inteligência? Porque envenenar as virtudes eternas que sustentam a estrutura do mundo e eclipsar, tristemente, a luz imaculada que desce dos céus? 

Antes de penetrar os mistérios do reino tão rico e interessante da vida, devemos considerar o esboço material do Universo, começando por demonstrar a soberania da força no desenhar desse mesmo esboço. Dividiremos esta primeira em duas partes: o Céu e a Terra, para estabelecer em primeiro lugar, por leis astronómicas e depois pelas terrestres, que, onde quer que exista a matéria, esta nunca deixou de ser escrava servil, universalmente dominada pela energia que a rege. Esta divisão não deve sugerir, de modo algum, a velha comparação do céu com a Terra, que bem sabemos serem termos incomparáveis. Considerado como valor absoluto, o céu é tudo e a Terra não é nada. A Terra é um átomo imperceptível, perdido no seio do infinito; o céu a envolve no ilimitado e a integra na população astral, sem excepção nem privilégio particular. 

Reunir os dois vocábulos, é como dizer: que os Alpes são uma pedrinha e, o Oceano uma gota d’água e o Saará um grão de areia. É comparar o todo a um mínimo do mesmo todo. 

Importa, portanto, não interpretar literalmente a nossa divisão, que só se justifica por dar maior clareza ao assunto. Para nós, terráqueos, este globo é alguma coisa, assim como para a minúscula lagarta, que aflora numa folha, esta folha algo vale, mau grado à sua insignificância no conjunto da pradaria. 

A nossa esfera de observação divide-se também, naturalmente, em duas partes: o que pertence e o que não pertence ao nosso mundo. 

Ora, vamos estabelecer que, fora do nosso mundo, assim como nele, a matéria está em tudo e por toda a parte e não passa de coisa inerte, cega, morta, composta de elementos incapazes de se dirigirem por si sós; que não agem nem pensam por impulsos próprios e que, nas sendas invisíveis do espaço, tanto como nos canais da seiva ou do sangue, o que aglutina em átomos, dirige as moléculas e conduz os mundos, é uma Força na qual transparece o plano, a vontade, a inteligência, a sabedoria e o poder do seu amor. 

/… 

(Referências: – Papel da Ciência na sociedade moderna. – Sua potência e grandeza. – Seus limites e tendências a ultrapassá-los. – As ciências não podem dar nenhuma definição de Deus. – Processo geral do ateísmo contemporâneo. – Objecções à existência divina, inferidas da imutabilidade das leis e da íntima união entre a força e a matéria. – Ilusão dos que afirmam ou negam. – Erros de raciocínio. – A questão geral resume-se em estabelecer as relações recíprocas da força e da substância.) 


Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria / I - Posição do Problema (VI de VI), 10º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva)_1895, pintura de James Jebusa Shannon

domingo, 7 de março de 2021

Diálogos de Kardec ~


CARÁCTER E CONSEQUÊNCIAS RELIGIOSAS DAS MANIFESTAÇÕES DOS ESPÍRITOS ~ 

1. As almas ou Espíritos dos que aqui viveram constituem o mundo invisível que povoa o espaço e no meio do qual vivemos. Daí resulta que, desde que há homens, há Espíritos e que, se estes últimos têm o poder de se manifestar, devem tê-lo tido em todas as épocas. É o que comprovam a história e as religiões de todos os povos. Entretanto, nestes últimos tempos, as manifestações dos Espíritos assumiram grande desenvolvimento e tomaram um carácter mais acentuado de autenticidade, porque estava nos desígnios da Providência pôr termo à praga da incredulidade e do materialismo, por meio de provas evidentes, permitindo que os que deixaram a Terra viessem atestar a sua existência e revelar-nos a situação ditosa ou infeliz em que se encontravam. 

2. Vivendo o mundo visível no meio do mundo invisível, com o qual se encontra em contacto perpétuo, segue-se que eles reagem incessantemente uns sobre os outros, reacção que constitui a origem de uma imensidade de fenómenos, que foram considerados sobrenaturais, por não se lhes conhecer a causa. 

A acção do mundo invisível sobre o mundo visível e reciprocamente é uma das leis, uma das forças da Natureza, tão necessária à harmonia universal, quanto a lei de atracção. Se ela cessasse, a harmonia estaria perturbada, conforme sucede num maquinismo, donde se suprima uma peça. Derivando de uma lei da natureza, semelhante acção, nada têm, evidentemente, de sobrenaturais os fenómenos que ela opera. Pareciam tais, porque desconhecida era a causa que os produzia. O mesmo se deu com alguns efeitos da electricidade, da luz, etc. 

3. Todas as religiões têm por base a existência de Deus e por fim o futuro do homem depois da morte. Esse futuro, que é de interesse capital para a criatura, se encontra necessariamente ligado à existência do mundo invisível, pelo que o conhecimento desse mundo há constituído, desde todos os tempos, objecto das suas pesquisas e preocupações. A atenção do homem foi naturalmente atraída pelos fenómenos que tendem a provar a existência daquele mundo e nenhum houve jamais tão concludente, como os das manifestações dos Espíritos por meio das quais os próprios habitantes de tal mundo revelaram as suas existências. Por isso foi que estes fenómenos se tornaram básicos para a maior parte dos dogmas de todas as religiões. 

4. Tendo instintivamente a intuição de uma potência superior, o homem foi sempre levado, em todos os tempos, a atribuir à acção directa dessa potência os fenómenos cuja causa lhe era desconhecida e que passavam, a seus olhos, por prodígios e efeitos sobrenaturais. Os incrédulos consideram esta tendência uma consequência da predilecção que tem o homem pelo maravilhoso; não procuram, porém, a origem deste amor do maravilhoso. Ela, no entanto, reside muito simplesmente na intuição mal definida de uma ordem de coisas extracorpóreas. Com o progresso da Ciência e o conhecimento das leis da Natureza, estes fenómenos passaram pouco a pouco do domínio do maravilhoso para o dos efeitos naturais, de sorte que o que outrora parecia sobrenatural já não o é hoje e o que ainda o é hoje já não o será amanhã. 

Os fenómenos decorrentes da manifestação dos Espíritos forneceram, pela sua natureza, larga contribuição aos factos reputados maravilhosos. Tempo, contudo, viria em que, conhecida a lei que os rege, eles entrariam, como os outros, na ordem dos factos naturais. Esse tempo chegou e o Espiritismo, dando a conhecer essa lei, apresentou a chave para a interpretação da maior parte das passagens incompreendidas das Escrituras sagradas que a isso aludem e dos factos tidos por miraculosos. 

5. O carácter do facto miraculoso é ser insólito e excepcional; é uma derrogação das leis da Natureza. Desde, pois, que um fenómeno se reproduz em condições idênticas, segue-se que está submetido a uma lei e, então, já não é miraculoso. Pode essa lei ser desconhecida, mas, por isso, não é menos verdadeira a sua existência. O tempo se encarregará de revelá-la. 

O movimento do Sol, ou, melhor, da Terra, sustado por Josué, seria um verdadeiro milagre, porquanto implicaria a derrogação manifesta da lei que rege o movimento dos astros. Mas, se o facto pudesse reproduzir-se em dadas condições é, por que estaria sujeito a uma lei e deixaria, consequentemente, de ser milagre. 

6. É erróneo assustar-se a Igreja com o facto de restringir-se o círculo dos factos miraculosos, porquanto Deus prova melhor o seu poder e a sua grandeza por meio do admirável conjunto das suas leis, do que por algumas infracções dessas mesmas leis. E tanto mais erróneo é o seu medo, quanto ela atribui ao demónio o poder de operar prodígios, donde resultaria que, podendo interromper o curso das leis divinas, o demónio seria tão poderoso quanto Deus. Ousar dizer que o Espírito do mal pode suspender o curso das leis de Deus é blasfémia e sacrilégio. 

Longe de perder qualquer coisa da sua autoridade por passarem os factos qualificados de milagrosos à ordem dos factos naturais, a religião somente pode ganhar com isso; primeiramente, porque, se um facto é tido falsamente por miraculoso, há aí um erro e a religião somente pode perder, se se apoiar num erro, sobretudo se se obstinasse em considerar milagre o que não o seja; em segundo lugar, porque, não admitindo a possibilidade dos milagres, muitas pessoas negam os factos qualificados de milagrosos, negando, consequentemente, a religião que em tais factos se estriba. Se, ao contrário, a possibilidade dos mesmos factos for demonstrada como efeitos das leis naturais, já não haverá cabimento para que alguém os repila, nem repila a religião que os proclame. 

7. Nenhuma crença religiosa, por lhes ser contrária, pode infirmar os factos que a Ciência comprova de modo peremptório. Não pode a religião deixar de ganhar em autoridade acompanhando o progresso dos conhecimentos científicos, como não pode deixar de perder, se se conservar retardatária, ou a protestar contra esses mesmos conhecimentos em nome dos seus dogmas, visto que nenhum dogma poderá prevalecer contra as leis da Natureza, ou anulá-las. Um dogma que se funde na negação de uma lei da Natureza não pode exprimir a verdade. 

O Espiritismo, que se funda no conhecimento de leis até agora incompreendidas, não vem destruir os factos religiosos, porém sancioná-los, dando-lhes uma explicação racional. Vem destruir apenas as falsas consequências que deles foram deduzidas, em virtude da ignorância daquelas leis, ou de as terem interpretado erradamente. 

8. A ignorância das leis da Natureza, com o levar o homem a procurar causas fantásticas para fenómenos que ele não compreende, é a origem das ideias supersticiosas, algumas das quais são devidas aos fenómenos espíritas mal compreendidos. O conhecimento das leis que regem os fenómenos destrói essas ideias supersticiosas, encaminhando as coisas para a realidade e demonstrando, com relação a elas, o limite do possível e do impossível. 

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Manifestações dos Espíritos — CARÁCTER E CONSEQUÊNCIAS RELIGIOSAS DAS MANIFESTAÇÕES DOS ESPÍRITOS, 9º fragmento solto desta obra. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)