domingo, 28 de dezembro de 2025

literatura do além-túmulo ~


Capítulo VIII
 (II)

Resta-me tomar em consideração, uma última obra literária, recebida pela mediunidade há algum tempo, que despertou, na Inglaterra, imenso interesse, assim como suscitou vivas discussões em revistas metapsíquicas, espíritas, religiosas e mesmo em jornais políticos, de forma tal que a primeira edição se esgotou em cinco meses. A obra, que tem o título de Os Escritos de Cléofas, é apresentada como uma “crónica sacra” complementar dos “Actos dos Apóstolos”, que chegaram até nós mutilados em algumas partes, em consequência das perseguições de que foram vítimas os primeiros cristãos.

Os Escritos de Cléofas teriam sido transmitidos directamente (ou, para melhor dizer, “inspirados”) pelo discípulo deste nome, um dos dois ao qual o Cristo apareceu no caminho de Emaús, três dias após a sua morte, e com o qual se sentara para comer na cidade homónima de Emaús.

médium, por intermédio do qual essa notável obra foi ditada, é a srta. Geraldine Cummins, filha do prof. Ashley Cummins, de Cork, Irlanda, doutor em medicina.”

srta. Cummins é uma escritora elegante, autora de um romance e duas comédias escritas em colaboração com terceiros; é, ao mesmo tempo, hábil jogadora de lawn-tenis.

Cito isto com o fim único de mostrar o perfeito equilíbrio de seu corpo e do seu espírito. Em 1923 ela começou a exercitar-se na escrita automática com a sua amiga srta. Gibbes, e em 1925 obtiveram, repentinamente, os primeiros ditados relativos à história do primeiro século da igreja cristã.

A entidade que os ditava assinava “O Mensageiro” e a sua escrita mediúnica se processava com a médium em estado de meio-transe.

O lápis corria muito rapidamente sobre o papel; 1.400 a 1.500 palavras eram ditadas, sem interrupção, numa hora. O ditado, uma vez terminado, era imediatamente retirado, na ignorância do seu conteúdo, com o fim de se evitarem interferências possíveis de sua subconsciência.

Essa medida de precaução não impedia, entretanto, que o escrito continuasse, invariavelmente, no ponto preciso em que fora interrompido. As pessoas que assistiam ao ditado mediúnico não exerciam nenhuma influência sobre ele. A médium acolhia, amavelmente, todos os que desejavam vê-la psicografar e daí as sessões se realizarem, constantemente, na presença de médicos, padres católicos, pastores protestantes, teólogos, historiadores, jornalistas, assim como na de alguns membros das duas sociedades de pesquisas psíquicas: a inglesa e a americana.

A sensação experimentada pela médium, durante o ditado, era a de uma pessoa que sonha, sem ter qualquer influência sobre o desenvolvimento das fantasias sonhadas. Além desta, ela experimentava a impressão de que o seu cérebro era empregue por outra individualidade que dele se servia, de modo análogo ao telegrafista com o seu aparelho ou ao dactilógrafo com a sua máquina de escrever. (*)

(*) Nota de publicação: Pequeno excerto do início do Capítulo, repetido, para melhor contextualização.

Eis pormenores de aparência insignificante e que são, todavia, muito importantes para as pesquisas acerca da natureza da personalidade mediúnica que transmitiu Os Escritos.

Escreve a srta. Gibbes:

“Em diferentes ocasiões, o “Mensageiro” afirmara que “Cléofas” se valia de numerosas crónicas da época. Seria, então, interessante a descoberta de alguma prova tendente a confirmar essa asserção do “Mensageiro”. Estávamos embaraçados com o caso, quando, nos primeiros tempos da transmissão das “mensagens apostólicas”, uma dessas, ora inclusa no capítulo IV, começou, contra o que era hábito, na “primeira pessoa”. A mensagem dizia: “Estive longamente com Pedro e ouvi-lhe atentamente todas as palavras. Ele tinha o poder de transmitir a outros a faculdade das visões e dos sonhos, por intermédio do poder radioso de sua palavra”. Quinze meses depois, quando se preparava a publicação da primeira série de Os Escritos, pediram-se explicações à personalidade comunicante a respeito da frase que acabo de citar. Foi-nos respondido: “É preciso que saibas que, quando estas palavras foram ditadas, a nossa intenção era a de traduzir para a vossa língua, palavra por palavra, uma antiga crónica daquela época, transmitindo-a ao mundo por intermédio desta mão. O nosso intento, porém, se modificou desde que descobrimos que os corpos espirituais das duas senhoras, de que nos servimos, continham poderes suficientes para receber de nós o ditado dos acontecimentos contidos em várias crónicas. Nessas condições, as palavras da introdução, que ditamos há vários meses, não devem ser entendidas como tendo relação connosco, mas com o autor das crónicas de que tiramos as presentes informações que são constituídas de imagens que “Cléofas” colhia na grande “Árvore das Recordações” para transmiti-las em seguida a nós, seus mensageiros, encarregados de transformá-las em termos acessíveis aos homens de vossa geração. De qualquer maneira, seria conveniente suprimir no texto as palavras de introdução, a fim de evitar toda a confusão possível entre as pessoas que lerem essas crónicas.”

A srta. Gibbes continua, dizendo:

“As palavras da introdução foram então suprimidas do texto publicado. Saliento que a explicação acima era absolutamente inesperada por todos nós. Aliás, a julgar pelo imenso material de factos que foi, em seguida, ditado à srta. Cummins, podemos reconhecer o bom fundamento da afirmação supra, segundo a qual se mudará de intenção desde que se verificou a capacidade mediúnica do “instrumento” que se empregava, isto é, que se decidiu ditar à médium uma história dos tempos apostólicos, infinitamente mais longa e mais completa da que antes se havia combinado.” (Light, 1929, pág. 152).

No que concerne aos fins a que se propuseram os espíritos comunicantes, ditando as crónicas em questão, eis o que eles dizem a respeito:

“A nossa intenção é a de semear, no coração dos homens de vossa geração, o gérmen da fé no Divino Mestre, de modo que essa fé possa reflorescer. Esperamos que o coração dos homens de hoje receba a nossa semente! Entre eles, alguns há que julgam que o Cristo está morto! Absolutamente. Isto não é verdade. Ele vive mais do que nunca e reviverá nos corações e nos espíritos das gerações futuras com mais esplendor do que antes!” (Light, 1929, pág. 147).

Tais são as suas intenções, tais as suas esperanças. Todavia, curioso e interessante é saber, a esse respeito, a opinião de um outro espírito-guia da srta. Cummins, ao qual esta última se dirigiu para ter informações referentes ao “Mensageiro” que ditava as crónicas sacras. O espírito-guia respondeu:

“Desde há muito que uma falange de espíritos envidava esforços para descobrir um sensitivo capaz de receber, através do mecanismo de seu cérebro, a história das origens do cristianismo. Os membros desse grupo pensavam que não poderia haver expediente melhor para encher o horrível vácuo espiritual que existe nas almas da actual geração, vácuo horrível quando é observado do mundo espiritual. Cléofas e os seus auxiliares se propuseram, então, enviar aos humanos o remédio de que tinham necessidade, revelando-lhes a história do período apostólico. Na minha opinião, eles não consideraram, suficientemente, que os horizontes mentais da humanidade se modificaram bastante depois da época em que viveram na Terra. Não perceberam que, na presente sociedade humana, não há quase lugar para a fé, pois a humanidade quer atingir o espiritual através do material.” (Light, 1928, pág. 149).

Resulta daí que o espírito-guia da srta. Cummins duvida do sucesso da nobre tentativa de Cléofas e dos seus coadjutores, que se propuseram transmitir aos humanos crónicas autênticas dos tempos apostólicos, na esperança de salvar, assim, a presente humanidade, reconduzindo-a à fé dos cristãos primitivos no seu Mestre. Muitos dos meus leitores compartilham, sem dúvida, da opinião do espírito-guia da srta. Cummins, mas isto não tem importância alguma para o nosso ponto de vista e, unicamente, serve para confirmar uma verdade conhecida desde há muito, isto é, que ninguém se torna omnisciente porque desencarnou, mas que o espírito fica, intelectualmente, no ponto em que estava por ocasião da morte. Não tardam esses seres em assimilar grande número de conhecimentos relativos ao meio espiritual em que se encontram, mas não se despojam, senão muito lentamente, das concepções intelectuais que possuíam e só vagamente entrevêem as verdades espirituais a respeito das quais, assim no além como no mundo dos vivos, cada um tem o dever de exercer livremente o seu discernimento. Tal facto dá lugar, como na Terra, a várias opiniões mais ou menos em desacordo entre si.

Com isto, espero ter citado e comentado, suficientemente, o caso em questão, para dele fazer sobressair o grande valor teórico a favor da interpretação espírita dos factos. O caso é, aliás, semelhante ao de Patience Worth e não lhe é, de modo algum, inferior quanto à natureza maravilhosa do texto obtido mediunicamenteA diferença entre os dois casos é de natureza secundária e consiste em que nas comunicações de Patience Worth se encontram dados – como a sua conversa constante em um dialecto arcaico – que podem servir indirectamente, mas eficazmente, para provar a independência intelectual e, em certo ponto de vista, a própria identificação intelectual da entidade comunicante, ao passo que, no caso de Cléofas, não se vêem aparecer dados desta natureza.

Em todo o caso, isso não apresenta uma importância teórica apreciável, porque, nos dois casos, a eficácia demonstrativa dos factos nada tem que ver com a questão de identificação pessoal, para se concentrar, unicamente, na natureza intrínseca do material psicográfico obtido, cuja proveniência é inexplicável perante toda a hipótese naturalista. Com efeito, mesmo no caso de Cléofas, as hipóteses da telepatia, da criptomnesia, da psicometria, não chegam, de maneira alguma, a considerar o conjunto dos factos, sobretudo se considerando-se não se tratar de indicações isoladas ou de acontecimentos fragmentários susceptíveis de serem atribuídos às emergências da subconsciência da médium (criptomnesia) ou bem ao facto de a médium tê-las captado nas subconsciências dos assistentes ou dos ausentes (clarividência telepática).

Não se trata de “visões psicométricas” em relação com um objecto apresentado ao médium sensitivo e, por consequência, circunscritas pelas “influências” existentes em estado latente no próprio objecto, mas, ao contrário, trata-se de crónicas orgânicas, isto é, de uma narração ordenada de acontecimentos, com numerosas noções geográficas, topográficas, históricas, filológicas, ignoradas da médium e das quais se verificou, em seguida, a autenticidade.

Trata-se, finalmente, em grande parte, de episódios que, referidos obscuramente nos “Actos dos Apóstolos”, agora, ao contrário, são narrados minuciosamente em Os Escritos de Cléofas, o que torna, pela primeira vez, inteligível o texto escriturístico.

Em suma, trata-se de uma obra histórica ordenada, completa, vital, que já se compõe de três grossos volumes e ainda não está terminada. Não é certamente na subconsciência da médium que se deverá buscar a génese de um trabalho que apresenta uma importância real, histórica e religiosa, no qual se encontram dados, indicações, minúcias, que ninguém poderia focalizar sem ser especializado nas ciências histórica, geográfica, teológica e filológica.

Nestas condições, só resta uma coisa a fazer: aceitar, ainda esta vez, em nome da lógica e do bom senso, as explicações fornecidas pelas personalidades mediúnicas que ditaram a obra em questão, isto é, concordar que essas personalidades são espíritos de defuntos que relatam os acontecimentos dos quais foram testemunhas ou que se produziram na época e na região em que viveram.

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Ernesto Bozzano, Literatura do Além-túmulo  Capítulo VIII (2 de 2) 12º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac | 1900, tempera no painel de Edgard Maxence)

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