Resta-me tomar em consideração,
uma última obra literária, recebida pela mediunidade há
algum tempo, que despertou, na Inglaterra, imenso interesse, assim como
suscitou vivas discussões em revistas metapsíquicas, espíritas,
religiosas e mesmo em jornais políticos, de forma tal que a primeira edição se
esgotou em cinco meses. A obra, que tem o título de Os Escritos de
Cléofas, é apresentada como uma “crónica sacra” complementar dos “Actos
dos Apóstolos”, que chegaram até nós mutilados em algumas partes,
em consequência das perseguições de que foram vítimas os primeiros cristãos.
Os Escritos de Cléofas teriam sido transmitidos
directamente (ou, para melhor dizer, “inspirados”) pelo discípulo deste
nome, um dos dois ao qual o Cristo apareceu
no caminho de Emaús, três dias após a sua morte, e com o qual se sentara
para comer na cidade homónima de Emaús.
O médium, por intermédio do qual essa notável obra foi
ditada, é a srta. Geraldine Cummins, filha do prof. Ashley Cummins, de Cork,
Irlanda, doutor em medicina.”
A srta.
Cummins é uma escritora elegante, autora de um romance e duas comédias
escritas em colaboração com terceiros; é, ao mesmo tempo, hábil jogadora
de lawn-tenis.
Cito isto com o fim único de mostrar o perfeito equilíbrio de
seu corpo e do seu espírito. Em 1923 ela começou a exercitar-se na escrita
automática com a sua amiga srta. Gibbes, e em 1925 obtiveram, repentinamente,
os primeiros ditados relativos à história do primeiro século da igreja cristã.
A entidade que os ditava assinava “O Mensageiro” e a sua
escrita mediúnica se
processava com a médium em
estado de meio-transe.
O lápis corria muito rapidamente sobre o papel; 1.400 a
1.500 palavras eram ditadas, sem interrupção, numa hora. O ditado, uma vez
terminado, era imediatamente retirado, na ignorância do seu conteúdo, com o fim
de se evitarem interferências possíveis de sua subconsciência.
Essa medida de precaução não impedia, entretanto, que o
escrito continuasse, invariavelmente, no ponto preciso em que fora
interrompido. As pessoas que assistiam ao ditado mediúnico não
exerciam nenhuma influência sobre ele. A médium acolhia,
amavelmente, todos os que desejavam vê-la psicografar e
daí as sessões se realizarem, constantemente, na presença de médicos, padres
católicos, pastores protestantes, teólogos, historiadores, jornalistas, assim
como na de alguns membros das duas sociedades de pesquisas psíquicas: a inglesa
e a americana.
A sensação experimentada pela médium,
durante o ditado, era a de uma pessoa que sonha, sem ter qualquer
influência sobre o desenvolvimento das fantasias sonhadas. Além desta,
ela experimentava a impressão de que o seu cérebro era empregue por outra
individualidade que dele se servia, de modo análogo ao telegrafista com o seu
aparelho ou ao dactilógrafo com a sua máquina de escrever. (*)
(*) Nota de publicação: Pequeno excerto do início do Capítulo, repetido,
para melhor contextualização.
Eis pormenores de aparência insignificante e que são,
todavia, muito importantes para as pesquisas acerca da natureza da
personalidade mediúnica que transmitiu Os Escritos.
Escreve a srta. Gibbes:
“Em diferentes ocasiões, o “Mensageiro” afirmara que “Cléofas”
se valia de numerosas crónicas da época. Seria, então, interessante
a descoberta de alguma prova tendente a confirmar essa asserção do
“Mensageiro”. Estávamos embaraçados com o caso, quando, nos
primeiros tempos da transmissão das “mensagens apostólicas”, uma dessas, ora
inclusa no capítulo IV, começou, contra o que era hábito, na “primeira pessoa”.
A mensagem dizia: “Estive longamente com Pedro e ouvi-lhe
atentamente todas as palavras. Ele tinha o poder de transmitir a outros a
faculdade das visões e dos sonhos, por intermédio do poder radioso de sua
palavra”. Quinze meses depois, quando se preparava a publicação da
primeira série de Os Escritos, pediram-se explicações à
personalidade comunicante a respeito da frase que acabo de citar. Foi-nos
respondido: “É preciso que saibas que, quando estas palavras foram
ditadas, a nossa intenção era a de traduzir para a vossa língua, palavra por
palavra, uma antiga crónica daquela época, transmitindo-a ao mundo por
intermédio desta mão. O nosso intento, porém, se modificou desde que
descobrimos que os corpos espirituais das duas senhoras, de que nos servimos,
continham poderes suficientes para receber de nós o ditado dos acontecimentos
contidos em várias crónicas. Nessas condições, as palavras da introdução,
que ditamos há vários meses, não devem ser entendidas como tendo relação
connosco, mas com o autor das crónicas de que tiramos as presentes informações
que são constituídas de imagens que “Cléofas” colhia na grande “Árvore das
Recordações” para transmiti-las em seguida a nós, seus mensageiros,
encarregados de transformá-las em termos acessíveis aos homens de vossa
geração. De qualquer maneira, seria conveniente suprimir no texto as
palavras de introdução, a fim de evitar toda a confusão possível entre as
pessoas que lerem essas crónicas.”
A srta. Gibbes continua, dizendo:
“As palavras da introdução foram então suprimidas do texto
publicado. Saliento que a explicação acima era absolutamente inesperada por
todos nós. Aliás, a julgar pelo imenso material de factos que foi, em
seguida, ditado à srta. Cummins,
podemos reconhecer o bom fundamento da afirmação supra, segundo a qual se
mudará de intenção desde que se verificou a capacidade mediúnica do
“instrumento” que se empregava, isto é, que se decidiu ditar à médium uma
história dos tempos apostólicos, infinitamente mais longa e mais completa da
que antes se havia combinado.” (Light, 1929, pág. 152).
No que concerne aos fins a que se propuseram os espíritos
comunicantes, ditando as crónicas em questão, eis o que eles dizem a respeito:
“A nossa intenção é a de semear, no coração dos homens de
vossa geração, o gérmen da fé no Divino Mestre, de modo que essa fé possa
reflorescer. Esperamos que o coração dos homens de hoje receba a nossa
semente! Entre eles, alguns há que julgam que o Cristo está morto!
Absolutamente. Isto não é verdade. Ele vive mais do que nunca e reviverá nos
corações e nos espíritos das gerações futuras com mais esplendor do que antes!” (Light,
1929, pág. 147).
Tais são as suas intenções, tais as suas esperanças.
Todavia, curioso e interessante é saber, a esse respeito, a opinião de um outro
espírito-guia da srta. Cummins,
ao qual esta última se dirigiu para ter informações referentes ao “Mensageiro”
que ditava as crónicas sacras. O espírito-guia respondeu:
“Desde há muito que uma falange de espíritos envidava
esforços para descobrir um sensitivo capaz de receber, através do mecanismo de
seu cérebro, a história das origens do cristianismo. Os membros desse
grupo pensavam que não poderia haver expediente melhor para encher o horrível
vácuo espiritual que existe nas almas da actual geração, vácuo horrível quando
é observado do mundo espiritual. Cléofas e os seus auxiliares se
propuseram, então, enviar aos humanos o remédio de que tinham necessidade,
revelando-lhes a história do período apostólico. Na minha opinião, eles
não consideraram, suficientemente, que os horizontes mentais da humanidade se
modificaram bastante depois da época em que viveram na Terra. Não
perceberam que, na presente sociedade humana, não há quase lugar para a fé,
pois a humanidade quer atingir o espiritual através do material.” (Light, 1928,
pág. 149).
Resulta daí que o espírito-guia da srta. Cummins duvida
do sucesso da nobre tentativa de Cléofas e dos seus coadjutores, que se
propuseram transmitir aos humanos crónicas autênticas dos tempos apostólicos,
na esperança de salvar, assim, a presente humanidade, reconduzindo-a à fé dos
cristãos primitivos no seu Mestre. Muitos dos meus leitores
compartilham, sem dúvida, da opinião do espírito-guia da srta. Cummins,
mas isto não tem importância alguma para o nosso ponto de vista e, unicamente,
serve para confirmar uma verdade conhecida desde há muito, isto é, que ninguém
se torna omnisciente porque desencarnou, mas
que o espírito fica, intelectualmente, no ponto em que estava por ocasião da
morte. Não tardam esses seres em assimilar grande número de conhecimentos
relativos ao meio espiritual em que se encontram, mas não se despojam, senão
muito lentamente, das concepções intelectuais que possuíam e só vagamente
entrevêem as verdades espirituais a respeito das quais, assim no além como no
mundo dos vivos, cada um tem o dever de exercer livremente o seu
discernimento. Tal facto dá lugar, como na Terra, a várias opiniões
mais ou menos em desacordo entre si.
Com isto, espero ter citado e comentado, suficientemente, o
caso em questão, para dele fazer sobressair o grande valor teórico a favor
da interpretação espírita dos
factos. O caso é, aliás, semelhante ao de Patience Worth e
não lhe é, de modo algum, inferior quanto à natureza maravilhosa do texto
obtido mediunicamente. A
diferença entre os dois casos é de natureza secundária e
consiste em que nas comunicações de Patience Worth se
encontram dados – como a sua conversa constante em um dialecto arcaico – que
podem servir indirectamente, mas eficazmente, para provar a independência
intelectual e, em certo ponto de vista, a própria identificação intelectual da
entidade comunicante, ao passo que, no caso de Cléofas, não se vêem
aparecer dados desta natureza.
Em todo o caso, isso não apresenta uma importância teórica
apreciável, porque, nos dois casos, a eficácia demonstrativa dos factos nada
tem que ver com a questão de identificação pessoal, para se concentrar,
unicamente, na natureza intrínseca do material psicográfico obtido,
cuja proveniência é inexplicável perante toda a hipótese naturalista. Com
efeito, mesmo no caso de Cléofas, as hipóteses da telepatia, da criptomnesia,
da psicometria, não chegam, de maneira alguma, a considerar o conjunto dos
factos, sobretudo se considerando-se não se tratar de indicações isoladas ou de
acontecimentos fragmentários susceptíveis de serem atribuídos às emergências da
subconsciência da médium (criptomnesia) ou bem ao facto de a
médium tê-las captado nas subconsciências dos assistentes ou dos ausentes (clarividência
telepática).
Não se trata de “visões psicométricas” em relação com um
objecto apresentado ao médium sensitivo e, por consequência, circunscritas
pelas “influências” existentes em estado latente no próprio objecto, mas,
ao contrário, trata-se de crónicas orgânicas, isto é, de uma narração ordenada
de acontecimentos, com numerosas noções geográficas, topográficas, históricas,
filológicas, ignoradas da médium e das quais se verificou, em seguida, a
autenticidade.
Trata-se, finalmente, em grande parte, de episódios que,
referidos obscuramente nos “Actos dos Apóstolos”, agora, ao contrário, são
narrados minuciosamente em Os Escritos de Cléofas, o que
torna, pela primeira vez, inteligível o
texto escriturístico.
Em suma, trata-se de uma obra histórica ordenada, completa,
vital, que já se compõe de três grossos volumes e ainda não está
terminada. Não é certamente na subconsciência da médium que
se deverá buscar a génese de um trabalho que apresenta uma importância
real, histórica e religiosa, no qual se encontram dados, indicações, minúcias,
que ninguém poderia focalizar sem ser especializado nas ciências histórica,
geográfica, teológica e filológica.
Nestas condições, só resta uma coisa a fazer: aceitar, ainda
esta vez, em nome da lógica e do bom senso, as explicações fornecidas
pelas personalidades mediúnicas que
ditaram a obra em questão, isto é, concordar que essas personalidades são
espíritos de defuntos que relatam os acontecimentos dos quais foram testemunhas
ou que se produziram na época e na região em que viveram.
/…
Ernesto Bozzano, Literatura do
Além-túmulo – Capítulo VIII (2 de 2) 12º
fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac | 1900, tempera
no painel de Edgard Maxence)

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