quarta-feira, 30 de setembro de 2020

~ nas garras do pensamento crítico


Interpretação do homem ~ 

O homem, segundo o materialismo, seja ele mecanicista dialéctico, é um animal pensante. Para Marx, e portanto para o dialéctico, é ainda o resultado da acção simultânea do trabalho, sobre ele e a natureza. Agindo sobre o meio em que vive, trabalhando-o, ele se modifica a si mesmo. Essa concepção materialista do homem não se enquadraria na doutrina de nenhuma das religiões corporificadas em igrejas. O Espiritismo, entretanto, não a contradiz. Apenas a amplia, ensinando que o princípio inteligente, no homem como no animal, independe do corpo. E por isso é condenado e combatido, ao mesmo tempo e por todos os lados, pelos religiosos e pelos materialistas. 

No capítulo III de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, encontramos esta definição: “O trabalho é lei da natureza, por isso que constitui uma necessidade e, a civilização obriga o homem a trabalhar mais porque lhe aumenta as necessidades e os gozos.” Logo mais adiante: “Sem o trabalho, o homem permaneceria sempre na infância, quanto à inteligência.” 

A lei de causa e efeito é o princípio fundamental da doutrina, a evolução constitui a sua própria essência. Por outro lado, o Espiritismo não se estruturou através de formulações hipotéticas. Todo o seu edifício doutrinário assenta na observação e na experimentação. Charles Richet, que condenava a “credulidade excessiva” de Kardec, já o notara, no Traité. Dialéctico por natureza, em essência e pelos métodos que emprega, o Espiritismo, se bem estudado, revela-se o legítimo e natural herdeiro do título a que se candidata o materialismo dialéctico: a síntese do conhecimento. 

Realmente, o Espiritismo, diante dos mundos em litígio do materialismo e do espiritualismo, não peca por exclusão, não comete o pecado proudhoniano ou marxista da escolha. Na sua estrutura encontraremos aquelas duas concepções, não apenas conjugadas ou ajustadas, mas superadas na transfiguração de um novo corpo – a síntese –, em que a ciência, a filosofia e a religião, as três províncias antagónicas do conhecimento, aparecem encadeadas no verdadeiro “processus” da mais pura dialéctica, uma resultando da outra. 

No Anti-DühringEngels lembra as origens do marxismo e expõe a doutrina como a sequência lógica destas fases: a filosofia, a economia-política e o socialismo. No Espiritismo, a sequência tresdobra-se na ciência, na filosofia e na religião. Partindo da observação e da análise dos fenómenos materiais, de natureza supranormal, criamos a filosofia do ser e, atingimos, logo a seguir, a religião. Esta, porém, não se traduz na organização de uma nova igreja, de um novo culto, de um novo “suborno da divindade”. Nem se traduz no antropomorfismo socialista, erguido no altar da produção. Mas é, ao mesmo tempo, a comunhão de bens, de corações e de espíritos, pela qual todos ansiamos, espiritualistas e materialistas, para a construção do mundo melhor amanhã. 

Porque o homem, para o Espiritismo, não é apenas “o último anel da vida animal na terra” (in A Génese, Kardec), nem o produto quase exclusivo da acção simultânea do trabalho; mas também aquele ser que se mostra nos fenómenos de materialização, de aparição, de visão, de voz directa, de incorporação, de psicografia ou de tiptologia, para demonstrar “aos que ficaram” que ele não se extinguiu com a morte e, que o seu conteúdo moral continua a viver e a desenvolver-se indefinidamente, da multiplicidade das formas, sem prejuízo da identidade substancial. 

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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, Interpretação do homem, 10º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)