quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

O Espiritismo na Arte ~


Parte IV

a França, a sua missão; a alma Céltica ~

(abril de 1922)

O talento da França é feito de equilíbrio e de harmonia. Apesar de certas faltas no passado, pode dizer-se que ele muitas vezes serviu de mediador entre as escolas mais diversas, entre os sistemas mais opostos. Ainda hoje, na ordem política, por exemplo, a França se mantém entre a reacção e a anarquia. Foi frequente assim, no decorrer da sua história, nos domínios da arte e do pensamento.

Vimos que a sua língua, que é uma das expressões do seu talento, apresenta as qualidades de precisão e de flexibilidade que fazem dela um maravilhoso agente de difusão e de propaganda. Ela sabe emprestar às ideias, ao mesmo tempo, a força e a graça e, é por aí que ela pode contribuir largamente para iniciar o mundo no conhecimento das leis superiores.

A literatura e a poesia francesas, melhor que todas as outras, souberam reproduzir todas as nuances do pensamento e do sentimento; a ternura, a energia, o encanto, a doçura infinita do ideal, numa palavra, todos os sonhos sobre-humanos da arte e da beleza.

O luminoso talento da França tem por papel, principalmente, reunir e fundir, numa média equilibrada, os dois talentos diferentes, o do Sul e o do Norte, da raça latina e das raças setentrionais. É, talvez, ao encontro desses elementos opostos, ao fluxo e refluxo dessas correntes diferentes, que se deve a mobilidade do seu espírito e a instabilidade por vezes enfadonha de seus desígnios; porém, sempre após os períodos de crise, em que o equilíbrio nela é alterado, o espírito nacional retorna a sua actividade e ao seu progresso.

A sua missão, portanto, parece ser a de fornecer aos outros povos, de espírito mais lento, as indicações, as directrizes das quais eles tiram uma aplicação prática e fecunda. É nesse sentido que a França é um agente maravilhoso de progresso e de evolução humana, pelo seu cuidado com a verdade e com a luz e, pela beleza das formas com as quais ela se compraz em revesti-las.

São essas qualidades que lhe darão um papel preponderante na difusão do Espiritismo filosófico e moral, enquanto que os países anglo-saxões estão interessados em representá-lo, principalmente sob o seu aspecto científico e experimental.

Após as suas horas de tentativas e de obscuridade, o génio da França, que não é outro senão a alma sempre viva e imortal da Gália, se ergue e, com um vigoroso esforço, se liberta dos atoleiros terrestres e se lança em direcção ao céu, para ali descobrir novos horizontes, novas perspectivas sobre o futuro e mostrá-las como objectivo à humanidade em marcha.

Para todos aqueles que sabem estudar e compreender o génio da nossa raça, sob o véu do cepticismo que por vezes a recobre, a alma céltica reaparece e, nas horas solenes, são os seus impulsos que determinam as resoluções viris, os actos decisivos.

É ela que inspira Jeanne d’Arc e pelas suas mãos livra a França do jugo dos ingleses; ainda é ela que provoca essa poderosa explosão espiritualista que, em época revolucionária, leva a todos a noção essencial de liberdade, assegurando assim o triunfo da alma moderna sobre as teorias deprimentes do determinismo e do fatalismo. É sempre ela que, nos dias sombrios de 1914, revela todas as forças vivas da nação e a conduz, heróica e sublime, diante do despotismo germânico e do militarismo teutónico (i); mais recentemente ainda, a alma céltica coloca a nação como um dique em oposição à onda vermelha do bolchevismo (ii).

A França tem maiores deveres que as outras nações, porque recebeu maiores dons, mais brilhantes qualidades. Assim, as suas responsabilidades são mais pesadas e mais extensas. Hoje, uma tarefa, mais importante do que todas as outras, se desenha para ela no mundo inteiro. Trata-se de iniciar os homens nas belezas de um futuro mais vasto, mais rico que aquele que as concepções filosóficas e religiosas puderam entrever. Trata-se de guiar a ascensão humana em direcção ao grau mais elevado do pensamento, onde se acendem os clarões de um novo dia, a aurora de uma civilização mais nobre e mais digna, livre dos flagelos que, até aqui, entravaram o caminho áspero e doloroso da humanidade.

As outras nações têm, cada uma, a sua tarefa importante, mas a França ultrapassa a todas pela variedade de suas aptidões e de suas actividades. É por isso que o mundo inteiro tem os olhos postos sobre ela, esperando o sinal que traçará a sua nova evolução.

Ó alma viva da França, desliga-te das pesadas influências materiais que ainda te oprimem, eleva-te até esse nobre ideal que é a tua missão adquirir e propagar no mundo! Somente quando a nova revelação for conhecida por todos os povos, quando ela tiver dado à sua expressão a forma magnífica do teu talento, é que os homens compreenderão o seu grande destino, bem como os deveres e os encargos que ele lhes impõe e, a justiça e a paz enfim reinarão sobre a Terra regenerada. E por esse meio o teu papel aparecerá aos olhos de todos. Tu serás respeitada pelas gerações e, a tua glória se iluminará com um brilho que nada poderá mais impedir!

/…
(i) Teutónico: relativo aos teutões, povo antigo da Germânia que habitava as margens do mar Báltico; relativo à Alemanha e aos alemães. (N.T., segundo o D.K.L.)
(ii) Bolchevismo: doutrina da ala esquerda maioritária do Partido Operário Social-Democrata Russo; o mesmo que Comunismo. (N.T., segundo o D.K.L.)


LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte IV – A França, a sua missão; A alma céltica, 15º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Le Livre de la Paix, pintura de Edgard Maxence

terça-feira, 28 de novembro de 2023

literatura do além-túmulo ~


Capítulo VI

 Lembro-me que há alguns anos, tendo consagrado longo estudo à análise das admiráveis provas de identificação pessoal fornecidas pela entidade Oscar Wilde(i) o célebre poeta e dramaturgo inglês, nas suas comunicações por intermédio da médium Hester Dowden, terminei observando que, no caso em questão, foram dadas todas as provas cumulativas que se estava razoavelmente no direito de exigir nestas circunstâncias.

Enumerei, com efeito, a transmissão de numerosas provas pessoais, ignoradas de todos os assistentes e das quais se constatou a autenticidade; a prova memorável da identidade da escrita, seguida, de modo impecável, no decorrer de várias centenas de páginas; a prova mais importante ainda a da identidade do estilo, ou, para melhor dizer, dos dois estilos que caracterizavam a personalidade literária do defunto; enfim, a mais concludente ainda, da emergência da personalidade intelectual e moral de Oscar Wilde com todas as variedades do seu carácter: personalidade complexa, original, inimitável.

Depois do que acrescentei:

“Noto, finalmente, que Oscar Wilde prometeu, por fim, acrescentar às provas fornecidas até aqui uma nova demonstração: a de uma comédia póstuma com o auxílio de sua médium.”

Ele manteve a palavra dada. A comédia foi ditada à médium logo depois da publicação do seu livro: Psychic messages from Oscar WildeHester Dowden (Travers-Smith) dá, a esse respeito, as seguintes informações:

“Eu nunca fui admiradora das obras de Oscar Wilde, nem a sua personalidade nunca me suscitou interesse. Creio concluir racionalmente então que a minha mão tem escrito algo que não provêm de mim. Oscar Wilde vivera numa época que não a minha e, a partir das suas obras literárias exala algo diferente dos dias de hoje. Eu não posso remontar ao passado, ao período de 1880, como ele fizera e, ele não se pode emancipar dos gostos literários e dos costumes do seu tempo, que eu não vou lembrar-me em tudo. Ora, é nesta condição mental que consiste o traço característico mais saliente de todas as suas mensagens mediúnicas e da sua comédia. Quando me ditava, pediu-me que o informasse sobre os gostos literários e costumes da nossa época e eu lhe expliquei as mudanças radicais que tinham ocorrido, mas ele não as levou em conta e veio a emancipar-se do ambiente em que vivia.

Pessoalmente, considero que a prova mais convincente que se pode imaginar em favor da sobrevivência da alma é a que se refere à personalidade intelectual e moral dos defuntos que se comunicam. As indicações relativas à existência terrestre, sobretudo se desconhecidas de todos os assistentes, são importantes e convincentes, mas quase sempre susceptíveis de serem explicadas pela hipótese das reminiscências latentes nas subconsciências dos assistentes (criptomnesia). Nenhuma intenção tenho de contestar a importância desses informes, que constituem a base sobre a qual repousam as pesquisas experimentais concernentes à questão da sobrevivência; sem elas não se poderia considerar como a identificação do defunto tenha sido provada. Entretanto, cada vez que as informações desse género constituem as únicas provas de que dispomos, não podemos considerar-nos autorizados a afirmar que a personalidade do defunto comunicante estava realmente presente ou que o espírito sobrevive à morte do corpo. É a mentalidade do morto que é preciso salientar nas manifestações mediúnicas; é a sua personalidade intelectual e moral, com todos os matizes do seu temperamento e a maneira de compor as frases que o caracterizavam. Eis o que devemos examinar experimentalmente, se queremos chegar a dissipar qualquer dúvida relativamente ao problema do além. Penso que, no domínio das pesquisas psíquicas, não se compreendeu ainda toda a importância decisiva que reveste a personalidade psíquica da entidade que se comunica e que deveria ser o elemento essencial nas provas de identificação espírita.

Quando as mensagens de Oscar Wilde se sucediam diariamente, eu lhe perguntava se não podia ditar-me alguma obra literária, a título de prova ulterior de sua presença. Dirigindo-lhe este pedido, não pensava absolutamente numa produção de teatro mas, antes, nos seus ensaios literários, onde, a meu ver, se encontra o que de melhor o seu talento produziu. Foi o próprio Oscar Wilde que me declarou que ia escrever uma comédia e que se sentia em condições de o fazer. Quanto a mim, fiquei antes céptica a esse respeito: tinha notado, com efeito, que, na mediunidade psicográfica, as sessões curtas são as únicas que dão bons resultados e considerava então como irrealizável o seu projecto de me ditar uma comédia inteira.

As primeiras tentativas pareceram, de facto, justificar o meu cepticismo: Oscar Wilde era um comunicante indeciso, difícil, autoritário, por vezes de um humor muito desagradável. Durante as primeiras cinco ou seis sessões, ele discutiu comigo a respeito das condições mediúnicas; informou-me que já tinha concebido o cenário de uma comédia inteira, que eu nada tinha a preocupar-me; que se sentia em condições de dispor as cenas, de escolher os nomes dos seus personagens, de desenvolver os diferentes caracteres utilizando eficazmente a técnica do drama. Fiz-lhe notar que as antigas modalidades tradicionais dos cenários tinham sofrido, nos nossos dias, grandes mudanças, como, por exemplo, os “à parte” tinham sido abolidos. Ele respondia, da mesma maneira, a todas as minhas observações, isto é, advertindo-me que eu não era autora dramática e que como ele já tinha na sua cabeça todo o entrecho do drama, não poderia desistir...

Com efeito, desde o começo, era manifesto que Oscar Wilde tinha organizado, no seu espírito, todo o enredo da comédia, ainda que não chegasse a desenvolver o seu diálogo do modo que desejava. Devo reconhecer, sinceramente, que a falta era minha, pois estava nessa época sobrecarregada de trabalhos urgentes que me absorviam a actividade.

Durante os meses de junho e julho de 1923, o primeiro ditado do drama foi executado; ele tão-só constituía, entretanto, uma espécie de rascunho que veio a ser posto em causa mais tarde pelo próprio. Não quero com isso dizer que ele tenha depois refeito a ordem das cenas, pois esta ficou tal qual era, mas os caracteres dos personagens foram, ao contrário, sensivelmente reformados.

Depois, no mês de agosto, pude consagrar, regularmente, três ou quatro sessões por semana a Oscar Wilde: isso se dava habitualmente das 11 às 13 horas.

O sistema de trabalho que Wilde tinha adoptado consistia num retorno contínuo para trás. Quando ele tinha ditado um acto de sua comédia, a minha auxiliar, srta. Cummins, devia relê-lo em alta voz e, Oscar Wilde a interrompia a todo o instante, sugerindo correcções que sempre constituíam uma melhoria sensível sobre o que ditara anteriormente. A sua diligência era extraordinária, ela excedia muito a minha força de trabalho. Ele refazia, aperfeiçoava, intercalava um período com cuidados tão meticulosos que se tornava penoso continuar, tal o sentimento pesado de monotonia que, transformando-se em sonolência, me causava.

Tinha resolvido nunca reler o que tinha sido transmitido mediunicamente, a fim de evitar que a minha mente subconsciente pudesse exercer certa influência sobre o ditado em curso; pensava então que não havia nessa comédia nenhuma ideia coerente e me sentiria desencorajada se a srta. Cummins não estivesse aí para garantir-me, de tempos a tempos, que o tema se desenvolvia, diariamente, de maneira precisa e interessante.

A obra dramática foi intitulada pelo seu autor: Uma comédia extraordinária. Se ela devesse ser representada, duvido que os directores de teatro consentissem em conservar tal título, mas creio que Oscar Wilde não veria com bons olhos a modificação.

Oscar Wilde explicou que se propusera delinear na sua comédia a continuidade inalterada da existência humana – nos seus alvos e nas suas aspirações – assim também antes como depois da crise da morte e, que, por consequência, o último acto ia desenrolar-se no mundo espiritual. Quando ele exprimiu esta proposta, voltou-me o desânimo, sabendo eu bem que nada é tão árduo em literatura como inserir cenas do além numa comédia. Quando se quer aí introduzir este elemento, vai-se, inevitavelmente, ao encontro do insucesso. Tais eram as minhas preocupações quando Oscar Wilde anunciou que o último acto de sua comédia se devia desenrolar nas esferas espirituais...

Quando o drama foi terminado, li-o para uma das minhas amigas, que possui grande experiência de teatro. Logo que cheguei ao meio do segundo acto, ela me interrompeu, notando: “Tudo isso é tão mundano que o autor jamais chegará a passar a ponte que separa o visível do invisível. Eis uma tarefa impossível!”

Terminada, porém, a leitura, a minha amiga teve exclamações de surpresa e admiração pela genialidade com a qual o autor tinha sabido vencer o obstáculo. Nenhuma solução de continuidade no desenvolvimento do drama, embora os dois primeiros actos sejam de um género ligeiro, análogo à comédia do mesmo autor: A importância de ser sério.

O drama termina com uma nota consoladora: o amor pode, ou não, existir no além tal como o conhecemos aqui. Nas esferas espirituais, o amor-paixão não deixa de existir, o amor se manifesta na pesquisa da “alma gémea”, complemento de nós mesmos. Nós nos completamos: tal é a aspiração suprema de todo o espírito; quando o fim é atingido, os espíritos casados vêem nítida e luminosamente o caminho ascensional que lhes resta a percorrer, unidos um ao outro.” (Light, 1925, pág. 524).

Tal é a interessante e instrutiva descrição feita pela sra. Hester Dowden a respeito da maneira pela qual foi ditada a comédia de Oscar Wilde. Para completá-la, vou reproduzir uma alínea de um artigo que foi consagrado ao memorável acontecimento pelo Sr. David Gow, director da revista Light. Escreve ele:

“Notarei de passagem que assisti, pessoalmente, ao ditado mediúnico do drama de Oscar Wilde durante o qual o autor morto ocupou a médium e a sua secretária por várias semanas consecutivas, corrigindo, refazendo, suprimindo, dando tantas disposições e ordens que tornava muito penosa a existência das duas damas. Tudo se desenrolou como se o autor invisível, mas absolutamente real, se metesse febrilmente ao trabalho, desenvolvendo alternativamente um temperamento irritável, choramingador, brilhante cínico e, algumas vezes dócil e simpático. A comédia, que veio assim à luz, parece uma obra de arte extraordinária, mas é preciso notar a esse respeito que um director de teatro a quem ela foi oferecida para ser representada, depois de a ter lido, relido e pesado, declarou que ele renunciava a pô-la em cena, não porque não fosse obra de Oscar Wilde, mas porque era dele mesmo! Ele queria, com estas palavras, fazer alusão ao assunto e à técnica do desenvolvimento das comédias de Oscar Wilde, que julgava, para o futuro, fora de moda.” (Light, 1828, pág. 18).

Essa declaração de um director de teatro é verdadeiramente preciosa e muito significativa.

Resumindo o que se acaba de ler e concluindo, noto que, sob o ponto de vista teórico, todas as circunstâncias que acabo de transmitir tomam, cumulativamente, valor enorme em favor da interpretação espírita do caso de que nos ocupamos. Os que leram a comédia póstuma de Oscar Wilde são acordes em afirmar que ela constitui uma obra de arte magistralmente orientada e que é uma reprodução maravilhosa do estilo, da forma, da técnica teatral que caracterizavam, no seu conjunto, um só autor: Oscar Wilde, quando vivo. E se isso não bastar para identificar uma personalidade literária, é preciso ajuntar aí o incidente tão eloquente de um director de teatro ter declarado que a comédia em questão não poderia ser representada com sucesso pelo facto do seu assunto e seu desenvolvimento terem envelhecido meio século. Não se poderia imaginar confirmação mais eficaz em favor da identidade pessoal da entidade comunicante, pois que a reputação de Oscar Wilde atingira o seu apogeu há meio século e os dramas escritos por ele, quando vivo, apresentam todos os mesmos defeitos assinalados pelo director do teatro, ao mesmo tempo que todas as grandes qualidades literárias e as idiossincrasias psíquicas muito especiais de que acabamos de nos ocupar.

Agora, voltando ao que antes fiz notar, lembro que Oscar Wilde tinha, antecipadamente, dado todas as provas de identificação pessoal que se pode razoavelmente exigir de um morto que se comunique. Recordo haver feito notar que a única prova que ele poderia fornecer ainda seria a de demonstrar aos vivos que a sua intelectualidade, o seu temperamento de autor, a sua virtuosidade incomparável de cinzelador de frases e de artista apaixonado das palavras permaneceram intactas depois da morte do corpo. Ora, ele deu também esta prova última, que reveste valor probante superior a qualquer outro, embora não se possa passar pelos outros para atingir a demonstração experimental, sobre a base dos factos, da sobrevivência de uma individualidade pensante.

Noto, enfim, que o valor teórico desta última “prova literária” é a tal ponto eficaz que triunfa mesmo sobre uma objecção apoiada numa hipótese metafísica fundada em memórias de amplidão infinita. Faço alusão à velha hipótese, agora novamente em moda, formulada com um fim puramente especulativo, pelo professor William James, segundo a qual não se poderia teoricamente excluir a possibilidade da existência, no universo, de um “reservatório cósmico de memórias individuais”, do qual os médiuns extrairiam as indicações verídicas relativamente às personificações de defuntos desconhecidos de todos. Não é agora o momento de discutir essa hipótese, que tenho longamente analisado e refutado, mantendo-me no terreno dos factos, numa monografia especial; noto somente aqui que, mesmo concedendo-se à hipótese em questão a extensão incomensurável que lhe conferem os seus defensores, ela não chegaria mesmo a fornecer provas de identificação espírita análogas às que venho a relatar, pois que não se referem ao que se deveria encontrar num “reservatório cósmico de memórias individuais”. É claro, com efeito, que, no nosso caso, não se trata de lembranças de espécie alguma, mas de um trespassado que se manifesta ditando uma obra literária, isto é, executando uma acção que se desenrola no presente e, que não se poderia então encontrar em parte alguma, em estado de vibração latente.

Repito, então, que a circunstância de ter chegado a triunfar também da hipótese metafísica do “reservatório cósmico de memórias individuais” constitui uma circunstância teoricamente muito importante. De facto, ela equivale a afirmar que nenhuma hipótese não-espiritualista chegará jamais a explicar, no seu conjunto, o memorável caso de identificação espírita do qual o falecido escritor Oscar Wilde foi protagonista.

Inútil é acrescentar que isto serve para fazer ressaltar o valor teórico muito especial que podem revestir os casos em geral de comunicações psicográficas na base de “ensaios literários”, ditados por entidades espirituais que afirmam ser autores conhecidos, isto é, “ensaios literários” susceptíveis de serem submetidos aos processos de análise comparada.

/...

(i) Bozzano refere-se ao artigo Le retour d’Oscar Wilde, incluído na obra Cinco Excepcionais Casos de Identificação de Espíritos (Publicações Lachâtre), sob o título “Surpreendente Caso de Identificação Espírita”. (N.E.)


Ernesto Bozzano, Literatura do Além-túmulo  Capítulo VI, 7º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac | 1900, tempera no painel de Edgard Maxence)

domingo, 12 de novembro de 2023

belo maio | bela como os lírios ~


XVI

Jeanne d'Arc e o ideal céltico ~

(I de IV)

Ó terra de granito esmaltada de carvalhos!

Uma noite, o Espírito de J. Michelet, precedendo e anunciando o de Jeanne d'Arc, dirigiu-nos estas palavras, no decorrer de uma das nossas reuniões de estudo:

“Jeanne adquiriu nas suas existências anteriores o sentimento dos grandes deveres que teria de cumprir. Encontrámo-nos muitas vezes nesses longínquos tempos. O laço que desde então se estabeleceu entre nós a atrai. Ela vos inspirará, do mesmo modo pelo qual me inspirou a mim. O meu livro não foi mais do que um eco da sua paixão pela França e pela verdade. Vai agora descer, para vos transmitir uma parcela da verdade divina.”

Jeanne, como todas as almas que connosco percorrem o ciclo imenso da evolução, contou numerosas existências na Terra. Algumas foram brilhantes, vividas sobre os degraus de um trono; outras obscuras; todas, porém, de resultados fecundos para o seu próprio adiantamento e benéficas para os seus semelhantes.

As primeiras transcorreram durante o período céltico, no país de Armor. Lá é que a sua personalidade se impregnou dessa natureza particular, feita de ideal, de intrepidez e de mística poesia, que a caracteriza no décimo quinto século.

Desde a infância em Domremy, aprazia-lhe frequentar os lugares onde se celebraram os ritos druídicos: os bosques de carvalho, testemunhas das antigas evocações das almas, as fontes sagradas, os monumentos de pedras brutas, esparsas aqui e ali, nos arredores da aldeia. Gostava de adentrar-se na espessa floresta, para lhe escutar as harmonias, quando, sacudindo-a, o vento a fazia vibrar qual harpa gigantesca. Com o olhar de vidente, distinguia, por sob as abóbadas verdejantes, as misteriosas sombras dos que presidiam àquelas evocações e aos sacrifícios. Entre os seus guias invisíveis, poder-se-ia deparar com os Espíritos protectores das Gálias, os mesmos que em todas as eras prestaram assistência aos filhos de Artur e de Merlin e dão aos que lutam por uma causa nobre a vontade e o amor que conduzem à vitória.

Feneceu nas ramagens o visco, nos lares apagou-se a chama sagrada; mas, no coração de Jeanne, vívida estará sempre a fé nas vidas inextinguíveis e nos mundos superiores. Os historiadores, que lhe souberam analisar e compreender o carácter, reconheceram nele os influxos de uma dupla corrente – céltica e cristã, cuja origem ela própria nos indicará em breve. Henri Martin, notadamente, a acentuou nas páginas de sua História. Em primeiro lugar, ele assinala, nos seguintes termos, as lembranças deixadas pelos Celtas, ainda vivas no tempo da heroína:

“Próximo da casa de Jeanne d'Arc passava uma vereda que, atravessando tufos de groselheiras, subia o outeiro a cujo cimo, coberto de mata, era dado o nome de Bois Chesnu. A meia encosta, debaixo de grande faia isolada, borbotava uma fonte, objecto de culto tradicional. Nas suas águas claras, desde tempos imemoráveis, buscavam a cura os enfermos que a febre atormentava... Seres misteriosos, anteriores entre nós ao cristianismo e que os camponeses nunca assentiram em confundir com os espíritos infernais da legenda cristã, os génios das águas, das pedras e dos bosques, as senhoras fadasfrequentavam a cristalina fonte e a faia secular, que se chamava o Belo Maio. Ao entrar a primavera, vinham as donzelas dançar em baixo da árvore de Maio, “bela como os lírios” e pendurar-lhe nos galhos, em honra das fadas Celtas, grinaldas que desapareciam durante a noite, segundo era voz geral”. (i)

Descreve em seguida as impressões da virgem Lorena:

“As duas grandes correntes que se haviam juntado para dar nascimento à poesia cavalheiresca, a do sentimento céltico e a do sentimento cristão, misturaram-se de novo para formar essa alma predestinada. A jovem pastora umas vezes sonha ao pé da árvore de Maio, ou sob os robles, doutas, passa horas esquecidas no fundo da pequenina igreja, em êxtase diante das santas imagens que resplandecem nas vidraças... Quanto às fadas, ela nunca as viu ao luar, descrevendo os círculos de suas danças, em volta do Belo Maio. A sua madrinha, porém, outrora as encontrara e Jeanne julga perceber de quando em quando formas imprecisas, nos vapores do crepúsculo: gemem vozes à tarde nos ramos dos carvalhos; as fadas já não dançam – choram: é o lamento da velha Gália que expira!”. (ii)

Finalmente, falando do processo de Ruão, diz ainda o mesmo autor: (iii)

“Jeanne soube opor o livre génio gaulês ao clero romano, que intentava pronunciar-se em definitivo sobre a existência da França. Por seu intermédio, o génio místico reivindica os direitos da personalidade humana, com a mesma força que o génio filosófico; a mesma alma, a grande alma da Gália, desabrochada no Santuário do Carvalho, brota igualmente no livre-arbítrio de Lérins e do Paracleto, na soberana independência da inspiração de Jeanne d'Arc e no Eu de Descartes.”

A própria Jeanne, confirmando esses modos de ver, assim se exprimia numa mensagem que ditou em Paris, no ano de 1898: (iv)

“Remontemos, por instantes, ao curso das idades, a fim de aprenderdes o caminho que percorri, preparando-me para transpor a etapa dolorosa que conheceis.

“Múltiplas foram as existências que contribuíram para o meu progresso espiritual. Decorreram na velha Armorica, debaixo do zimbório dos grandes robles seculares, cobertos do visco sagrado. Foi lá que, lentamente, me encaminhei para o estudo das leis do Espírito e para o culto da pátria.

“Oh! entre todas, benditas as horas em que o bardo, com os seus cantares alegres, nos fazia palpitar os corações e nos abria os olhos para a luz, permitindo-nos entrever as maravilhas do infinito! Ensinava-nos então que o passar da morte à ressurreição gloriosa do Espírito, no espaço, representa uma simples transformação, sombria, ou luminosa, conforme o homem se conduziu nesse mundo: ou seguindo a estrada da justiça e do amor, ou deixando-se dominar pelas forças avassaladoras da matéria. Fazia-nos compreender as leis da solidariedade e da abnegação; instruía-nos sobre o que era a prece, dizendo: “Orar é triunfar; a prece é o motor de que o pensamento se serve, para estimular as faculdades do Espírito, as quais, no espaço, constituem a sua ferramenta. A prece é o ímã poderoso do qual se desprende o fluido magnético espiritual, que, não só pode aliviar e curar, como também descerra ao Espírito horizontes sem fim e lhe dá azo de satisfazer ao desejo de conhecer e aproximar-se continuamente da fonte divina, donde emanam todas as coisas. A prece é o fio condutor que põe a criatura em relação com o Criador e com os seus missionários.”

“Um dia, compenetrada dessas verdades, adormeci e tive a seguinte visão: Assisti, primeiramente, a muitos combates, oh! impossível de serem evitados por efeito do livre-arbítrio de cada um; mas, sobretudo, por motivo do amor ao ouro e à dominação, os dois flagelos da Humanidade. Depois, descortinei claramente a grandeza futura da França e o seu papel de civilizadora no porvir. Deliberei consagrar-me muito particularmente a essa obra.

“Logo me vi rodeada de uma multidão simpática, que na maior parte chorava e deplorava a minha perda. Em seguida, o veneno, o cadafalso, a fogueira passam vagarosamente por diante de mim. Senti as labaredas devorando-me as carnes e desmaiei!... Vozes amigas chamaram-me à vida e me disseram: “Espera! A falange celeste que tem por missão velar sobre esse globo te escolheu para secundá-la nos seus trabalhos e assim acelerar o teu progresso espiritual. Mortifica a tua carne, a fim de que as suas leis não possam ser obstáculo ao teu Espírito. A provação será curta, porém rude. Ora e a força te será dada: colherás da tua obra todas as bênçãos nos tempos vindouros. Assegurarás a vitória da fé arrazoada contra o erro e a superstição. Prepara-te para fazer em tudo a vontade do Senhor, a fim de que, chegada a ocasião, tenhas adquirido bastante energia moral para resistir aos homens e obedecer a Deus! Seguindo estes conselhos, os mensageiros do céu virão a ti, ouvirás as suas vozes, eles te guiarão e aconselharão; podes ficar tranquila, não te hão de abandonar!”

“Como descrever o supremo anelo que se apoderou de mim! Senti o aguilhão do amor penetrar todo o meu ser. Já não tive outro objectivo que não fosse trabalhar pela libertação espiritual deste país abençoado, em que acabava de saborear o pão da vida e de beber pela taça dos fortes. Essa visão foi para a minha alma um celestial viático.”

/... 
(i) Henri Martin – Histoire de France, t. VI, páginas 138 e 193.
(ii) Ibidem, pág. 140.
(iii) Ibidem, t. VI, pág. 302.
(iv) Ver: Revue Seientifique et Morale du Spiritisme, Janeiro de 1898.


Léon Denis, Jeanne d’Arc Médium, Segunda Parte – As missões de Jeanne d'Arc, XVI Jeanne d’Arc e o ideal céltico (I de IV) 1º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: L'Annonciation, óleo sobre painel (1901), de Edgard Maxence

terça-feira, 17 de outubro de 2023

~ nas garras do pensamento crítico


Situações novas ~

Essas possibilidades se tornam cada vez mais visíveis, graças à aceleração do processo histórico no século actual (XX). A teoria marxista da luta de classes, comprovada pelos factos, caminha, entretanto, dentro das novas condições da evolução técnica e do progresso científico, para formas inteiramente novas. A ideia da revolução proletária já não parece tão nítida e precisa como nos fins do século XIX e nos princípios do século XX. Os derradeiros movimentos revolucionários, inclusive o maior deles, a revolução chinesa, apenas teoricamente se basearam no proletariado. As forças em luta foram antes populares do que proletárias e, não somente no conjunto das massas, mas também nos organismos dirigentes. Por outro lado, nos países de maior desenvolvimento industrial, ao contrário do que pressupõe a tese marxista, a revolução proletária se torna mais difícil, como nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Alemanha, em França e na Itália. Nos três últimos países, o Partido Comunista tem crescido, não em virtude das condições específicas da vida proletária, mas das condições gerais, com indiscutível predominância da situação camponesa e pequeno-burguesa.

Podemos perguntar, diante disso: Onde se encontra a “consciência de classe” do proletariado norte-americano ou do inglês – este o mais antigo e o mais impenetrável ao marxismo –, para o golpe de libertação no capital acumulado em escala jamais vista? As condições sociais evoluem com rapidez vertiginosa. Os progressos da técnica, aliados ao desenvolvimento intelectual e psíquico do homem, geram situações inteiramente novas e, os marxistas se esquecem dos princípios dialécticos da sua própria filosofia, continuando apegados a dogmas já superados pelo processo histórico. Pietro Ubaldi, em A Grande Síntese, emite este conceito, em que os materialistas dialécticos deviam meditar: “Se a luta foi, a um tempo, de natureza física, hoje é económica e nervosa e, amanhã será espiritual e ideal, muito mais digna de ser travada.”

O choque apocalíptico ~

Marx viu, na sua época, a necessidade de se construir uma filosofia de classe para o proletariado, a fim de que este, tomando consciência da sua missão histórica, se colocasse à altura da mesma. A filosofia foi construída e tornou-se um dos grandes momentos do conhecimento humano, mas o proletariado não a absorveu, senão em doses mínimas. Criou-se, por isso mesmo, a teoria das “minorias dirigentes” e, o exemplo do bolchevismo, na Rússia, tornou-se clássico. As minorias, entretanto, só podem vencer, não pela violência, mas pelo excesso de violência e, só podem manter o seu domínio pela opressão crescente. O tempo se encarregou de nos mostrar quanto estas duras realidades colocaram o sonho do socialismo científico distanciado das suas raízes revolucionárias.

Surge, assim, uma nova situação mundial. As minorias marxistas criam as potências orientais, enquanto as minorias capitalistas se entrincheiram no ocidente. O nosso grão de areia é dividido nos hemisférios antípodas que hoje se digladiam, ameaçados de mútua destruição, pelas perspectivas da guerra atómica. Para lutar contra o imperialismo, contra os trustes imperialistas, a Rússia Soviética teve também de construir o seu próprio poder imperialista, criar o seu estatismo absorvente. O que Marx não previa aconteceu.

A violência dirigida, metódica, intencional, revelou-se fonte inesgotável de novas formas de violência, em escala incalculável. E a força das ideias mostrou-se mais poderosa do que a própria luta de classes, mais criadora e destruidora do que os próprios antagonismos da produção capitalista. A lei da “negação da negação” lançou-se, como o monstro Frankenstein, contra o próprio criador, pois o idealismo marxista superou em muito, na sua própria aplicação, a realidade proletária dos princípios do século. O marxismo negou-se a si mesmo, para dar nascimento ao poder proletário, face a face com o poder capitalista. Não são, por acaso, a tese e a antítese da dialéctica hegeliana que se defrontam, neste momento, em proporções apocalípticas, no panorama internacional? E a síntese não virá do novo choque mundial, já em pleno desenvolvimento?

Hora de libertação ~

Essa conclusão tem de ser a seguinte: os marxistas cometeram um dos grandes equívocos da história, ao oferecerem à força a resistência de outra força. Não é do choque dos “semelhantes”, mas dos “contrários” que resulta a progresso e, os “contrários” não são determinados pela forma, pela aparência, mas pela substância.

A forma proletária da violência não modifica a substância própria da violência e, os “contrários”, traduzidos apenas numa expressão formal, não podem produzir o progresso substancial. Por outro lado, o proletariado não é uma substância, mas uma eventualidade, pois a divisão da sociedade em classes é artificial. Armando-se o proletariado de poderes semelhantes aos da burguesia, transformamo-lo em massa burguesa, da mesma maneira por que esta, em muitos países, inclusive no Brasil, armada com os poderes do feudalismo, se tornou um poder feudal, a antítese da burguesia francesa que derrubou a Bastilha. Pois o homem é o mesmo, tanto numa classe como noutra e, a influência das condições sociais não tarda a se fazer sentir, na sua atitude perante a sociedade. Esquecer a substância humana no processo económico é fugir para a abstracção de uma economia autónoma, solta no espaço e no tempo. Nem foi por outro motivo que a jovem revolucionária polaca Larissa Reissner, a grande autora de Homens e Máquinas, ao ver os seus antigos camaradas transformados nos comissários económicos, verdadeiros “negociantes oficiais do partido”, temeu pelo naufrágio da revolução no pântano burguês e preferiu deixar o território da revolução para voltar ao inferno de sua génese, na Alemanha burguesa.

Nesta altura, poderíamos surpreender o sorriso irónico dos materialistas-dialécticos, a nos perguntarem: “Mas o que deveríamos então, opor à força e ao poder do capitalismo?” Não, não responderemos “o que deveriam”, pois palavras foram deturpadas, perderam o seu verdadeiro sentido e, não queremos que os interlocutores, mesmo imaginários, nos dêem as costas sem mais aquela. Responderemos que tudo quanto se fez até agora tinha de ser feito, estava nas linhas do determinismo-histórico, na exigência das próprias condições sociais, não poderia fugir às contingências de um mundo em fermentação, impulsionado pelo instinto e pela paixão. Voltemos a Ubaldi, que mais uma vez nos esclarece o problema: “Não sois ainda uma sociedade, mas apenas uma grei, um desencadeamento de forças psíquicas primordiais, explodindo confusamente.”

Mas responderemos, também, que a hora chegou – e agora é – em que as coisas devem tomar novo rumo. Esse rumo o Espiritismo aponta com clareza, a todos os que tiverem “olhos de ver”. É o rumo do Espírito, da solução espiritual e, só ela nos livrará do torniquete da força contra a força, da violência contra a violência, do jogo cego e inconsequente do poder material. RuskinTolstóiTagore e Gandhi avultam neste momento da história humana.

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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, Situações novas, O choque apocalíptico, Hora de libertação, 13º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Fotografia de Rabindranath Tagore)

domingo, 8 de outubro de 2023

Victor Hugo | uma chama de fogo a iluminar os longínquos dias das idades


Victor Hugo e o Sentido da História ~

Victor Hugo acreditava e sabia que a história temporal, não obstante a sua objectividade material, está destinada a voltar ao seio da história divina. Ou seja, que o efeito histórico deverá reintegrar-se no seio do divino para pôr termo a um ''tempo defeituoso'', onde o Ser se debate atacado por duas contradições existenciais.

O poeta francês compreendeu que a verdadeira poesia é uma emanação do mundo interno da natureza e que a sua essência se traduz por uma voz que sobe dos abismos da alma. Descobriu na história uma sucessão de factos cuja finalidade têm a sua raiz nos séculos palingenésicos do Ser. Viu assim que a história das existências se refunde na história dos seres espirituais, em cujo seio está a realidade divina do mundo dos espíritos.

Para Victor Hugo, o apocalipse terreno desembocava num apocalipse espiritual, dois processos que só se explicam pela lei da reencarnação. A história morre, mas renasce com os espíritos; a sua objectividade está determinada pelo encarnar e desencarnar dos seres espirituais, ou seja, pela alma dos homens, antes espíritos, que encarnam e desencarnam. Kant tembém pressentiu este mesmo fenómeno ao reconhecer a realidade de um mundo invisível com a possibilidade de se comunicar com o mundo dos homens.

A reencarnação dos espíritos é a verdadeira base da história humana, a que se mostra como processo visível na causa da história espiritual e divina que a rege. Victor Hugo acreditou nesta dualidade histórica, numa "história humana" fundada na história divina e transcendental".

A reencarnação dos espíritos é uma penetração da história divina temporal e humana. O processo de encarnação e desencarnação a que estão submetidos os espíritos é a base real de todo o mistério histórico. E a poesia de Hugo foi como uma revelação através da qual a beleza contribuiu com o desenvolvimento da história em relação com a história espiritual e divina.

A inspiração do grande poeta francês captou nas suas bases mediúnicas que não haverá história natural e humana sem história espiritual e divina. O seu génio se transfigurou de tal modo que pôde compreender que todo o humano é um processo determinado pela reencarnação dos espíritos, ou seja, que a História e Reencarnação são dois fenómenos movidos pelo mundo invisível.

Espiritismo como manifestação objectiva do Espírito de Verdade é a noção mais positiva para deixar demonstrado que o mundo dos espíritos é a base real do mundo dos homens. Opera-se assim uma transfiguração da morte pela força religiosa da mediunidade. De contrário, o que seria a história sem a potência escatológica da mediunidade? Resultaria um fenómeno sem sentido e um processo caótico destinado à morte e ao nada.

Portanto, se a poesia de Victor Hugo foi profética é porque foi religiosa, apocalíptica porque mediúnica. Ela se uniu ao Espírito de Verdade para proclamar que Deus existe e que tudo avança progressivamente com o fim de se instalar na Cidade dos Espíritos Puros. Os críticos esqueceram que se Hugo foi genial é porque dentro de seu ser imortal estava a luz do mundo invisível e que se a sua poesia determinou um romantismo filosófico e religioso original é porque os tripés da ilha de Jersey lhe abriram as janelas do infinito. Porque o génio de Victor Hugo sem o fenómeno mediúnico resultaria num enigma, do mesmo modo que uma nova visão histórica sem a lei da reencarnação do ser se tornaria um caos entremeado de horror e beleza.

Victor Hugo acreditava na sua espiritualidade pessoal. Achou no seu próprio ser as bases de todo um esquema metafísico e religioso do universo. Sentia-se uma força ultra-material por cujo motivo a sua carne se transfigurava. Era um vidente que via continuamente o para além das coisas, o que o fez não se deter nos caminhos puramente materiais da vida. A existência para o poeta foi uma senda que conduz ao conhecimento dos grandes enigmas da natureza.

O seu génio nunca repeliu o cristianismo; pelo contrário, viu na doutrina de Jesus a mais alta e acabada expressão das revelações divinas. Por isso, a sua criação poética e literária difere da dos seus colegas, que consideravam o homem somente um fenómeno fisiológico. O seu lema era: "Existir para a Verdade", mas este existir não se apoiava na vida efémera material. Ele pressentiu um existir infinito relacionado com o mistério do universo. A vida para o poeta era uma espiritualidade invencível e triunfante.

Acreditava no eterno porque via na natureza e na história um princípio imortal, o que o fez ter fé nessa verdade inalterável procedente de Deus. Acreditou nos "espíritos" da terra e do ar, da água e do vento, como os iniciados medievais. Desde a sua infância, cultivou uma filosofia espiritualista, que confirmou experimentalmente ao conhecer a mensagem que lhe ditaram os tripés na ilha de Jersey.

Auguste Vacquerie, no seu livro As migalhas da história, disse afirmativamente que Victor Hugo era espírita, como o foram Théophile GautierVictorien SardouGiuseppe MazziniCamille Flammarion e outros pensadores dos finais do século XIX. Acreditou realmente na imortalidade da alma e na sua evolução palingenésicaÉmile de Girardin e Eugène Nus deram também testemunho de suas convicções espíritas, como foi confirmado na edição de 7 de maio de 1899 do "Les Annales Politique et Litteraire''.

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Humberto Mariotti (i)Victor Hugo Espírita, Victor Hugo e o Sentido da História, 12º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

domingo, 24 de setembro de 2023

a pedra e o joio ~


Quem não pode | o menos ~

Os investigadores científicos dos fenómenos espíritas operam no campo da matéria. Não são espíritas, mas cientistas interessados pela fenomenologia que dá base concreta à doutrina. Por isso já dissemos, há tempos, a respeito, que a ciência espírita, no que toca às manifestações materiais do espírito, vêm sendo construída pelos adversários do Espiritismo. É este um facto único na história do conhecimento e, uma das maiores glórias da doutrina espírita. CrookesRichetGeleyCrawford, ao iniciarem as suas pesquisas, não eram espíritas, como PriceRhine e Bjorkhem, das Universidade de Oxford, de Duke (EE. UU.) e, de Upsala (Suécia), respectivamente, não são espíritas. Mas todos contribuem para a ciência espírita.

Não cabe a nós, espíritas, formular nenhuma teoria científica para investigação dos fenómenos supranormais ou para demonstração da realidade da sobrevivência. O Espiritismo, nos seus três aspectos, o científico, o filosófico e o religioso, possui métodos próprios de observação e investigação, e já provou há muito a realidade da sobrevivência. Os cientistas materialistas, ou pelo menos cépticos, é que devem tratar de provar, através de suas teorias e de seus métodos, que o Espiritismo se encontra em erro. Querer, pois, dotar o Espiritismo de “teorias que lhe facultem o avanço seguro na estrada da pesquisa metódica de laboratório”, como pretende o Sr. Guimarães Andrade, na sua Teoria Corpuscular do Espírito, é invadir atribuições alheias. E dizer que o Espiritismo não possui teorias orientadoras de pesquisas científicas é negar a própria doutrina e esquecer os seus efeitos no mundo científico.

Humberto Mariotti, o conhecido escritor espírita argentino, encerra o seu livro Dialéctica e Metapsíquica, réplica a um livro materialista de Emílio Troise, com esta advertência: “A filosofia espírita, sempre pronta a renovar-se, espera, pois, para o fazer, uma prova científica de seu opositor: o materialismo. Enquanto isso, continuará forjando o aço desse novo mundo espiritual, que vem lançando por entre os factos da psicologia supranormal, até que a prova mencionada seja produzida”. A teoria espírita, como a chamaram os cientistas, não é apenas teoria, mas toda uma doutrina, solidamente construída sobre um vasto e profundo alicerce de factos, comprovados por adeptos e adversários, crentes ou descrentes. Ela se impõe por si mesma, ou “pela força mesma das coisas”, como dizia Allan Kardec. Não espera as nossas elaborações teóricas para cumprir a sua missão.

Grande e belo exemplo é o que nos dá Charles Richet, na carta que dirigiu a Ernesto Bozzano, rendendo-se à evidência espírita. Construtor, ele mesmo, de uma teoria, exclama, diante dos argumentos espíritas de Bozzano: “Eles formam um estranho contraste com as nebulosas teorias que atravancam a nossa ciência”. Ao contrário disso, o Sr. Guimarães Andrade pretende que deixemos de lado, considerando-os obsoletos, os conceitos clássicos da doutrina, para construirmos mais uma teoria nebulosa e, com ela aumentarmos o atravancamento científico.

Nós, espíritas, temos por acaso alguma dúvida a respeito da sobrevivência do espírito e da sua possibilidade de acção sobre a matéria? Precisamos de novas teorias para investigar os fenómenos impropriamente chamados de supranormais? Não. Logo, não nos compete a formulação de teorias novas. Por outro lado, duvidamos da solidez das provas e do acervo gigantesco de factos da biblioteca espírita, sempre aberta ao possível interesse dos materialistas? Também não. Logo, a estes é que compete e, não a nós, quebrar a cabeça de encontro à rocha em que nos firmamos. O nosso papel, pelo contrário, é o de continuarmos firmes sobre a rocha, que tem resistido, até aqui, a todos os cabeçudos.

Pergunta o confrade Guimarães: “Será que já conhecemos tudo a respeito do fascinante problema do espírito, das suas relações com o mundo físico, das suas propriedades, da sua natureza real?” Podemos responder com outra pergunta: “Conhecem os materialistas tudo o que se relaciona com o fascinante problema da matéria, das suas relações com forças desconhecidas, das suas propriedades, da sua natureza real?” Estamos e, eles também o estão, absolutamente certos de que não. Então, como pretendermos colocar, na mesma mesa da ciência materialista, servindo-nos dos seus instrumentos rudimentares, ainda em elaboração, o problema espiritual? Se ela é impotente para dizer tudo a respeito da matéria, como querermos que o diga a respeito do espírito? O mais certo, o mais prudente, é admitirmos a explicação de Kardec: “O Espiritismo não é da alçada da ciência”. Sê-lo-á mais tarde. Mas, para tanto, a ciência precisa concluir a sua tarefa no terreno material, o que ainda está longe de fazer.

Poderão objectar-nos que as pesquisas dos sábios materialistas concorreram para a comprovação da doutrina. Mas não dizemos o contrário. O que dizemos é que isso compete a eles. Quando os sábios, operando no campo da matéria, comprovam os princípios da ciência espírita, contribuem para esta e, só temos que agradecer-lhes. Aquilo que chamamos, com Allan Kardec, a Ciência Espírita, não é mais do que o aspecto científico da doutrina. Neste aspecto, há uma zona fronteiriça, em que a ciência material pode comprovar os factos espíritas. A da fenomenologia mediúnica. Nesta zona é que o materialismo vem construindo, sem querer, a contragosto, a ciência espírita acessível à compreensão materialista.

O confrade Guimarães Andrade quer que ajudemos os sábios oferecendo-lhes uma teoria espírita que eles possam aceitar. A intenção é boa, mas conduz a desvios perigosos, como já vimos e ainda veremos, na análise de A Teoria Corpuscular do Espírito. Além disso, é conveniente lembrarmos o velho adágio: “Cada macaco no seu galho”. O Espiritismo, como diz Mariotti no mesmo livro acima citado, “é uma estrela de amor”. Essa estrela brilha sobre o atravancamento de hipóteses nebulosas da ciência materialista e, ainda, segundo o mesmo autor, “ilumina os caminhos de todos os peregrinos que vão em busca da verdade”. Não basta isso? Queremos também acompanhar os peregrinos, oferecendo-lhes cajados que eles não nos pedem e, até mesmo rejeitam com desprezo?

O livro do Sr. Guimarães Andrade é simplesmente um equívoco. E como tal, só pode fazer mal à doutrina e ao movimento espírita. Pedimos desculpa ao confrade, por esta rude franqueza. Mas, em questões doutrinárias, é preferível a dureza da verdade. Pensamos já haver demonstrado, até aqui, os vários enganos do autor. Mas prosseguiremos ainda, para que não digam amanhã, como disseram certa vez, a respeito de outra crítica, que passamos ao de leve sobre o assunto.

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José Herculano Pires (i) – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. Quem não pode o menos, fragmento 13º desta obra.
(imagem de contextualização: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Oliver Lodge, por que creio na imortalidade da alma ~


Capítulo II

As sete proposições

(2)

A segunda proposição – que o corpo é um instrumento – depende, de certa forma, da primeira proposição e serve de refutação ao argumento muitas vezes apresentado pelos anatomistas e fisiologistas de que cérebro e espírito são a mesma coisa, de modo que uma lesão no cérebro imprime, ipso facto, uma lesão correspondente no espírito e que a destruição de um equivale à destruição do outro.

Essa hipótese pode ser considerada como base da filosofia materialista e está, evidentemente, de acordo com a experiência ordinária de que uma lesão cirúrgica do cérebro implica num defeito mental correspondente. Desnecessário é dizer que todos esses factos de verificação corrente são inteiramente admitidos por mim, porém acho que a dedução proposta ultrapassa o que é legítimo. Tudo o que está realmente provado é que, se o instrumento ficar avariado, o poder de desenvolver a actividade mental ficará igualmente avariado, mas não se segue desse facto indubitável que temos o direito de deduzir o que quer que seja relativamente ao espírito, a menos que não suponhamos que cérebro e espírito sejam um “só”.

Se o cérebro deixa de funcionar, não há, naturalmente, mais comunicação: a manifestação do espírito, na falta de função do mecanismo, cessou. A afasia talvez se tenha declarado, as ideias já não podem ser expressas se a porção do cérebro em função ficou avariada. Os acontecimentos passados não podem já ser retidos pela memória se as células cerebrais ou as suas vias de comunicação ficaram incapazes de estimular os músculos da mão ou da laringe. Dizer, porém, que a memória ficou aniquilada porque o seu órgão de reprodução não pode já funcionar é uma dedução que ultrapassa o que é lógico. Aqueles que consideram que o cérebro não é apenas um instrumento do espírito, mas o próprio espírito, se vêem forçados a emitir suposição estranha, gratuita e intrinsecamente absurda de que a massa de matéria encerrada no crânio é capaz de conceber, de olhar para o passado e o futuro, de urdir grandes obras literárias e artísticas, de compor grandes poemas, de explorar o mecanismo do universo, de sentir a dor, de ter afeições, de praticar acções, numa palavra, de não apenas manifestar, mas, na realidade, de sentir em si todos os sentimentos associados às palavras: Fé, Esperança e Amor.

Deve-se, todavia, admitir que o cérebro não pode mais que a vista. A vista e o cérebro não constituem senão um instrumento único graças ao qual a visão se torna uma possibilidade. O ouvido é, indubitavelmente, um instrumento físico que nos permite ouvir, mas é bem verdade que é o espírito quem vê e ouve, é ele quem interpreta a significação da visão e da audição, quem extrai uma impressão mental ou uma emoção das imagens, poemas e músicas – resposta psíquica inteiramente estranha aos atributos da matéria.

O sentimento do belo, por exemplo, pode ser despertado por um conjunto de partículas materiais, mas nenhum conjunto dessas partículas pode admirar a sua própria beleza. Não se pode supor tampouco que uma porção de matéria, por animada que seja, é capaz de tomar a iniciativa de uma série de acções, de imaginar uma obra de arte, de conceber uma teoria científica ou de praticar uma acção espontânea qualquer. As partículas materiais são inteiramente subordinadas a forças mecânicas que agem sobre elas. Não têm vontade própria, pois são absolutamente dóceis. Isto não é verdade acerca dos átomos da matéria orgânica quanto sobre a matéria inorgânica, porque a Ciência tende a abolir a distinção entre o orgânico e o inorgânico e a acentuar o facto, algo excepcional, tal como o modo de agir dos organismos, de que as partículas estão inteiramente subordinadas a leis da Física e da Química e não podem produzir fenómenos vitais e mentais senão em função de controlo vital e mental.

Encontrei um singelo enunciado deste princípio numa obra do professor Wincenty Lutolawski, filósofo polaco, intitulada O Mundo dos Espíritos, obra que parece ter sido escrita em 1899, só foi publicada na Inglaterra em 1924 e que não é suficientemente conhecida, apesar da apreciável recomendação que dela fez o professor William James.

Eis o trecho a que me refiro:

“Para compreender a relação que existe entre o pensamento e o cérebro, basta admitir que o cérebro é o órgão através do qual recebemos todas as nossas impressões exteriores e graças ao qual produzimos todos os movimentos, particularmente a palavra. A evidência consiste apenas em manifestar essas funções do cérebro e toda a asserção que atribui a ele o poder de pensar é baseada num sofisma semelhante ao de atribuir ao coração todas as emoções, porque as emoções tem certa influência sobre a acção do coração... Assim, o pensamento fica conhecido, não como processo fisiológico, mas como um facto de consciência, pela nossa experiência mental, e não temos razão alguma para supor que possa ele identificar-se com uma actividade corpórea qualquer visível. A vossa alma outra coisa não é além daquilo de que tens consciência... É por uma falsa analogia de linguagem que dizemos “a minha alma”, como dizemos “o meu cérebro”, “o meu corpo” e assim sucessivamente. Com efeito, és uma alma e não deves dizer possuir uma alma como se a alma diferisse de vós mesmos.

(3)

Muitos fenómenos conhecidos permitem ilustrar a terceira proposição que estabelece que as coisas desaparecidas não perdem a sua existência. A indestrutibilidade da matéria não deixa de ser um facto que salta aos olhos, mas é preciso prová-lo cientificamente.

Acredita-se geralmente que uma coisa queimada está destruída, que o leite derramado na terra está perdido, que a nuvem se evaporou devido ao calor solar, etc. Todo a gente sabe, porém, hoje, que qualquer que seja a dispersão da matéria, as suas partículas são indestrutíveis, que existe igualmente o vapor de água, ainda que invisível, mesmo quando a nuvem se evaporou. Desnecessário é insistir, detalhadamente, sobre tal facto. Poder-se-ia, porém, replicar que a admissão disso depõe contra a sobrevivência individual; superficialmente sim, mas, no fundo, de modo algum. A nuvem não tinha individualidade, não era mais do que uma reunião de partículas que, por acaso, possuem poder de afectar os raios luminosos, de forma a torná-los visíveis aos nossos olhos. Uma multidão pode ser dispersa, um exército desmobilizado, mas a sua existência foi corporal até à sua dispersão. A realidade dessa existência, durante a sua permanência, encontra-se no estimulante mental que unia as partes constituintes e não no próprio grupo. Os componentes da multidão afastaram-se por ocasião da separação, porque nada é duradouro na justaposição. Um exército ou uma armada obedecem às ordens de homens de Estado, transmitidas a seguir por meio de oficiais graduados. Os componentes desses grupos assemelham-se a partículas do nosso próprio corpo, reunidas por algum agente superior, obedecendo a ordens durante certo tempo, até ao momento do licenciamento. Eles deixam de existir ao mesmo tempo que o corpo, mas a entidade dirigente, que os comandava e dirigia, já nada de comum tem com eles, que eram apenas o instrumento de que se servia o agente transmissor para possuir certos efeitos.

O poder dirigente pode continuar a funcionar muito tempo depois do abandono do mecanismo subordinado, porém sem instrumento não o pode fazer. Deus não produz resultados sem os meios convenientes. O espiritual e o material parecem continuamente em relação. Em resumo: deve ser sempre verdade que a Divindade age por meio dos seus agentes. O que chamamos leis da natureza são as nossas fórmulas de reconhecimento de algum dos seus agentes operadores. Supõem os teólogos que os anjos e outros seres sobrenaturais se contam entre os agentes e mensageiros divinos, ao passo que se reconhece como verdade corrente que somente o homem pode executar certas coisas. O homem é um instrumento das forças superiores e ele próprio tem necessidade de instrumentos para o exercício e para a manifestação das suas faculdades.

Da mesma maneira que um fabricante de instrumentos pode rejubilar-se quando um exímio artista faz bom uso dele, do mesmo modo o Altíssimo pode alegrar-se com o uso benéfico das faculdades e talentos dos seus filhos.

(4)

quarta proposição – que um indivíduo é uma encarnação temporária de algo imortal – toca o problema mais difícil da identidade pessoal. Que entendemos nós por “individualidade pessoal”? Deve supor-se que o homem sempre existiu? Podemos, em suma, compreender que isso não é necessário. Um poema e um drama podem ser imortais, mas viram o dia num tempo definido e circunstâncias especiais os fizeram nascer.

Parece-me hoje provável que a individualidade se formou durante o isolamento na matéria, do que podemos chamar substância psíquica bruta, não experimentada. O corpo é gradualmente saturado pela psique ou alma não identificada, segundo as suas capacidades de recepção, porção infinitesimal no começo do processo, aumentando pouco a pouco numa medida certa em razão dos esforços e das oportunidades do ser. O afluxo é às vezes de tal modo importante que forma o que chamamos um “grande homem”, se bem que, na maior parte dos casos, a acção pára muito tempo antes de chegar a esse resultado.

Depois de certo intervalo no desenvolvimento, a alma, agora identificada, retorna ao seu ponto de partida, quer gradual e naturalmente, quer bruscamente, em caso de acidente, mas em ambos os casos ela conserva as suas capacidades, as aptidões, os gostos, a memória e a experiência adquiridas durante a vida terrena. Leva esse acréscimo de valor e o faz adicionar ao Todo que ela junta – qualquer que seja esse Todo – apropriado à sua natureza, todo esse que pode ser um “ego” subliminar maior cujas porções talvez estejam submetidas a uma forma modificada da reencarnação numa vida futura. Reservo a minha opinião a respeito destas questões, mas podemos estar certos de que as partículas materiais, sempre subordinadas aos fins da pessoa cujo crescimento era temporário, desempenharam o seu papel e foram definitivamente abandonadas. Essas partículas provêm de uma nutrição qualquer, são assimiladas durante certo tempo, depois rejeitadas para dar lugar a outras. As partículas não exercem nenhuma função; impelidas dali e de acolá, são perpétuamente afluentes. Todo o organismo, porém, conserva a sua identidade, como a de um rio que é sempre o Ganges ou o Tibre, ainda que as partículas da água, que passam pelo seu leito, mudem constantemente. Tais analogias não são, de forma alguma, exactas, mas simplesmente sugestivas. Uma vez recitado, um poema, este não deixa de existir. Uma partitura de uma orquestra é a encarnação temporária de um homem de génio, cujas ideias estão sujeitas à reencarnação.

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Oliver LodgePor que creio na imortalidade da Alma, Capítulo II As sete proposições; proposição segunda (2), proposição terceira (3) e proposição quarta (4), 5º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Luz e Cor (Teoria de Goethe) - A manhã após o Dilúvio, Moisés escreve o livro a Génese, pintura de Joseph Mallord William Turner