segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Oliver Lodge, por que creio na imortalidade da alma ~


Capítulo II

As sete proposições

(2)

A segunda proposição – que o corpo é um instrumento – depende, de certa forma, da primeira proposição e serve de refutação ao argumento muitas vezes apresentado pelos anatomistas e fisiologistas de que cérebro e espírito são a mesma coisa, de modo que uma lesão no cérebro imprime, ipso facto, uma lesão correspondente no espírito e que a destruição de um equivale à destruição do outro.

Essa hipótese pode ser considerada como base da filosofia materialista e está, evidentemente, de acordo com a experiência ordinária de que uma lesão cirúrgica do cérebro implica num defeito mental correspondente. Desnecessário é dizer que todos esses factos de verificação corrente são inteiramente admitidos por mim, porém acho que a dedução proposta ultrapassa o que é legítimo. Tudo o que está realmente provado é que, se o instrumento ficar avariado, o poder de desenvolver a actividade mental ficará igualmente avariado, mas não se segue desse facto indubitável que temos o direito de deduzir o que quer que seja relativamente ao espírito, a menos que não suponhamos que cérebro e espírito sejam um “só”.

Se o cérebro deixa de funcionar, não há, naturalmente, mais comunicação: a manifestação do espírito, na falta de função do mecanismo, cessou. A afasia talvez se tenha declarado, as ideias já não podem ser expressas se a porção do cérebro em função ficou avariada. Os acontecimentos passados não podem já ser retidos pela memória se as células cerebrais ou as suas vias de comunicação ficaram incapazes de estimular os músculos da mão ou da laringe. Dizer, porém, que a memória ficou aniquilada porque o seu órgão de reprodução não pode já funcionar é uma dedução que ultrapassa o que é lógico. Aqueles que consideram que o cérebro não é apenas um instrumento do espírito, mas o próprio espírito, se vêem forçados a emitir suposição estranha, gratuita e intrinsecamente absurda de que a massa de matéria encerrada no crânio é capaz de conceber, de olhar para o passado e o futuro, de urdir grandes obras literárias e artísticas, de compor grandes poemas, de explorar o mecanismo do universo, de sentir a dor, de ter afeições, de praticar acções, numa palavra, de não apenas manifestar, mas, na realidade, de sentir em si todos os sentimentos associados às palavras: Fé, Esperança e Amor.

Deve-se, todavia, admitir que o cérebro não pode mais que a vista. A vista e o cérebro não constituem senão um instrumento único graças ao qual a visão se torna uma possibilidade. O ouvido é, indubitavelmente, um instrumento físico que nos permite ouvir, mas é bem verdade que é o espírito quem vê e ouve, é ele quem interpreta a significação da visão e da audição, quem extrai uma impressão mental ou uma emoção das imagens, poemas e músicas – resposta psíquica inteiramente estranha aos atributos da matéria.

O sentimento do belo, por exemplo, pode ser despertado por um conjunto de partículas materiais, mas nenhum conjunto dessas partículas pode admirar a sua própria beleza. Não se pode supor tampouco que uma porção de matéria, por animada que seja, é capaz de tomar a iniciativa de uma série de acções, de imaginar uma obra de arte, de conceber uma teoria científica ou de praticar uma acção espontânea qualquer. As partículas materiais são inteiramente subordinadas a forças mecânicas que agem sobre elas. Não têm vontade própria, pois são absolutamente dóceis. Isto não é verdade acerca dos átomos da matéria orgânica quanto sobre a matéria inorgânica, porque a Ciência tende a abolir a distinção entre o orgânico e o inorgânico e a acentuar o facto, algo excepcional, tal como o modo de agir dos organismos, de que as partículas estão inteiramente subordinadas a leis da Física e da Química e não podem produzir fenómenos vitais e mentais senão em função de controlo vital e mental.

Encontrei um singelo enunciado deste princípio numa obra do professor Wincenty Lutolawski, filósofo polaco, intitulada O Mundo dos Espíritos, obra que parece ter sido escrita em 1899, só foi publicada na Inglaterra em 1924 e que não é suficientemente conhecida, apesar da apreciável recomendação que dela fez o professor William James.

Eis o trecho a que me refiro:

“Para compreender a relação que existe entre o pensamento e o cérebro, basta admitir que o cérebro é o órgão através do qual recebemos todas as nossas impressões exteriores e graças ao qual produzimos todos os movimentos, particularmente a palavra. A evidência consiste apenas em manifestar essas funções do cérebro e toda a asserção que atribui a ele o poder de pensar é baseada num sofisma semelhante ao de atribuir ao coração todas as emoções, porque as emoções tem certa influência sobre a acção do coração... Assim, o pensamento fica conhecido, não como processo fisiológico, mas como um facto de consciência, pela nossa experiência mental, e não temos razão alguma para supor que possa ele identificar-se com uma actividade corpórea qualquer visível. A vossa alma outra coisa não é além daquilo de que tens consciência... É por uma falsa analogia de linguagem que dizemos “a minha alma”, como dizemos “o meu cérebro”, “o meu corpo” e assim sucessivamente. Com efeito, és uma alma e não deves dizer possuir uma alma como se a alma diferisse de vós mesmos.

(3)

Muitos fenómenos conhecidos permitem ilustrar a terceira proposição que estabelece que as coisas desaparecidas não perdem a sua existência. A indestrutibilidade da matéria não deixa de ser um facto que salta aos olhos, mas é preciso prová-lo cientificamente.

Acredita-se geralmente que uma coisa queimada está destruída, que o leite derramado na terra está perdido, que a nuvem se evaporou devido ao calor solar, etc. Todo a gente sabe, porém, hoje, que qualquer que seja a dispersão da matéria, as suas partículas são indestrutíveis, que existe igualmente o vapor de água, ainda que invisível, mesmo quando a nuvem se evaporou. Desnecessário é insistir, detalhadamente, sobre tal facto. Poder-se-ia, porém, replicar que a admissão disso depõe contra a sobrevivência individual; superficialmente sim, mas, no fundo, de modo algum. A nuvem não tinha individualidade, não era mais do que uma reunião de partículas que, por acaso, possuem poder de afectar os raios luminosos, de forma a torná-los visíveis aos nossos olhos. Uma multidão pode ser dispersa, um exército desmobilizado, mas a sua existência foi corporal até à sua dispersão. A realidade dessa existência, durante a sua permanência, encontra-se no estimulante mental que unia as partes constituintes e não no próprio grupo. Os componentes da multidão afastaram-se por ocasião da separação, porque nada é duradouro na justaposição. Um exército ou uma armada obedecem às ordens de homens de Estado, transmitidas a seguir por meio de oficiais graduados. Os componentes desses grupos assemelham-se a partículas do nosso próprio corpo, reunidas por algum agente superior, obedecendo a ordens durante certo tempo, até ao momento do licenciamento. Eles deixam de existir ao mesmo tempo que o corpo, mas a entidade dirigente, que os comandava e dirigia, já nada de comum tem com eles, que eram apenas o instrumento de que se servia o agente transmissor para possuir certos efeitos.

O poder dirigente pode continuar a funcionar muito tempo depois do abandono do mecanismo subordinado, porém sem instrumento não o pode fazer. Deus não produz resultados sem os meios convenientes. O espiritual e o material parecem continuamente em relação. Em resumo: deve ser sempre verdade que a Divindade age por meio dos seus agentes. O que chamamos leis da natureza são as nossas fórmulas de reconhecimento de algum dos seus agentes operadores. Supõem os teólogos que os anjos e outros seres sobrenaturais se contam entre os agentes e mensageiros divinos, ao passo que se reconhece como verdade corrente que somente o homem pode executar certas coisas. O homem é um instrumento das forças superiores e ele próprio tem necessidade de instrumentos para o exercício e para a manifestação das suas faculdades.

Da mesma maneira que um fabricante de instrumentos pode rejubilar-se quando um exímio artista faz bom uso dele, do mesmo modo o Altíssimo pode alegrar-se com o uso benéfico das faculdades e talentos dos seus filhos.

(4)

quarta proposição – que um indivíduo é uma encarnação temporária de algo imortal – toca o problema mais difícil da identidade pessoal. Que entendemos nós por “individualidade pessoal”? Deve supor-se que o homem sempre existiu? Podemos, em suma, compreender que isso não é necessário. Um poema e um drama podem ser imortais, mas viram o dia num tempo definido e circunstâncias especiais os fizeram nascer.

Parece-me hoje provável que a individualidade se formou durante o isolamento na matéria, do que podemos chamar substância psíquica bruta, não experimentada. O corpo é gradualmente saturado pela psique ou alma não identificada, segundo as suas capacidades de recepção, porção infinitesimal no começo do processo, aumentando pouco a pouco numa medida certa em razão dos esforços e das oportunidades do ser. O afluxo é às vezes de tal modo importante que forma o que chamamos um “grande homem”, se bem que, na maior parte dos casos, a acção pára muito tempo antes de chegar a esse resultado.

Depois de certo intervalo no desenvolvimento, a alma, agora identificada, retorna ao seu ponto de partida, quer gradual e naturalmente, quer bruscamente, em caso de acidente, mas em ambos os casos ela conserva as suas capacidades, as aptidões, os gostos, a memória e a experiência adquiridas durante a vida terrena. Leva esse acréscimo de valor e o faz adicionar ao Todo que ela junta – qualquer que seja esse Todo – apropriado à sua natureza, todo esse que pode ser um “ego” subliminar maior cujas porções talvez estejam submetidas a uma forma modificada da reencarnação numa vida futura. Reservo a minha opinião a respeito destas questões, mas podemos estar certos de que as partículas materiais, sempre subordinadas aos fins da pessoa cujo crescimento era temporário, desempenharam o seu papel e foram definitivamente abandonadas. Essas partículas provêm de uma nutrição qualquer, são assimiladas durante certo tempo, depois rejeitadas para dar lugar a outras. As partículas não exercem nenhuma função; impelidas dali e de acolá, são perpétuamente afluentes. Todo o organismo, porém, conserva a sua identidade, como a de um rio que é sempre o Ganges ou o Tibre, ainda que as partículas da água, que passam pelo seu leito, mudem constantemente. Tais analogias não são, de forma alguma, exactas, mas simplesmente sugestivas. Uma vez recitado, um poema, este não deixa de existir. Uma partitura de uma orquestra é a encarnação temporária de um homem de génio, cujas ideias estão sujeitas à reencarnação.

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Oliver LodgePor que creio na imortalidade da Alma, Capítulo II As sete proposições; proposição segunda (2), proposição terceira (3) e proposição quarta (4), 5º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Luz e Cor (Teoria de Goethe) - A manhã após o Dilúvio, Moisés escreve o livro a Génese, pintura de Joseph Mallord William Turner

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