As sete proposições
(2)
A segunda proposição – que o corpo
é um instrumento – depende, de certa forma, da primeira proposição e
serve de refutação ao argumento muitas vezes apresentado pelos anatomistas e
fisiologistas de que cérebro e espírito são a mesma coisa, de modo que uma
lesão no cérebro imprime, ipso facto, uma lesão correspondente no
espírito e que a destruição de um equivale à destruição do outro.
Essa hipótese pode ser considerada como base da filosofia
materialista e está, evidentemente, de acordo com a experiência ordinária de
que uma lesão cirúrgica do cérebro implica num defeito mental correspondente.
Desnecessário é dizer que todos esses factos de verificação corrente são
inteiramente admitidos por mim, porém acho que a dedução proposta ultrapassa o
que é legítimo. Tudo o que está realmente provado é que, se o instrumento ficar
avariado, o poder de desenvolver a actividade mental ficará igualmente
avariado, mas não se segue desse facto indubitável que temos o direito de
deduzir o que quer que seja relativamente ao espírito, a menos que não
suponhamos que cérebro e espírito sejam um “só”.
Se o cérebro deixa de funcionar, não há, naturalmente, mais
comunicação: a manifestação do espírito, na falta de função do mecanismo,
cessou. A afasia talvez
se tenha declarado, as ideias já não podem ser expressas se a porção do cérebro
em função ficou avariada. Os acontecimentos passados não podem já ser retidos
pela memória se as células cerebrais ou as suas vias de comunicação ficaram
incapazes de estimular os músculos da mão ou da laringe. Dizer, porém, que
a memória ficou aniquilada porque o seu órgão de reprodução não pode já
funcionar é uma dedução que ultrapassa o que é lógico. Aqueles que
consideram que o cérebro não é apenas um instrumento do espírito, mas o próprio
espírito, se vêem forçados a emitir suposição estranha, gratuita e
intrinsecamente absurda de que a massa de matéria encerrada no crânio é capaz
de conceber, de olhar para o passado e o futuro, de urdir grandes obras
literárias e artísticas, de compor grandes poemas, de explorar o mecanismo do
universo, de sentir a dor, de ter afeições, de praticar acções, numa palavra,
de não apenas manifestar, mas, na realidade, de sentir em si todos os sentimentos
associados às palavras: Fé, Esperança e Amor.
Deve-se, todavia, admitir que o cérebro não pode mais que a
vista. A vista e o cérebro não constituem senão um instrumento único graças ao
qual a visão se torna uma possibilidade. O ouvido é, indubitavelmente, um
instrumento físico que nos permite ouvir, mas é bem verdade que é o
espírito quem vê e ouve, é ele quem interpreta a significação da visão e da
audição, quem extrai uma impressão mental ou uma emoção das imagens, poemas
e músicas – resposta psíquica inteiramente estranha aos atributos da matéria.
O sentimento do belo, por exemplo, pode ser despertado por
um conjunto de partículas materiais, mas nenhum conjunto dessas partículas pode
admirar a sua própria beleza. Não se pode supor tampouco que uma porção de
matéria, por animada que seja, é capaz de tomar a iniciativa de uma série de
acções, de imaginar uma obra de arte, de conceber uma teoria científica ou de
praticar uma acção espontânea qualquer. As partículas materiais são
inteiramente subordinadas a forças mecânicas que agem sobre elas. Não
têm vontade própria, pois são absolutamente dóceis. Isto não é verdade acerca
dos átomos da matéria orgânica quanto sobre a matéria inorgânica, porque a
Ciência tende a abolir a distinção entre o orgânico e o inorgânico e a acentuar
o facto, algo excepcional, tal como o modo de agir dos organismos, de
que as partículas estão inteiramente subordinadas a leis da Física e da Química
e não podem produzir fenómenos vitais e mentais senão em função de controlo
vital e mental.
Encontrei um singelo enunciado deste princípio numa obra do
professor Wincenty Lutolawski, filósofo polaco, intitulada O
Mundo dos Espíritos, obra que parece ter sido escrita em 1899, só foi
publicada na Inglaterra em 1924 e que não é suficientemente conhecida, apesar
da apreciável recomendação que dela fez o professor William James.
Eis o trecho a que me refiro:
“Para compreender a relação que existe entre o pensamento e
o cérebro, basta admitir que o cérebro é o órgão através do qual recebemos
todas as nossas impressões exteriores e graças ao qual produzimos todos os
movimentos, particularmente a palavra. A evidência consiste apenas em
manifestar essas funções do cérebro e toda a asserção que atribui a ele o poder
de pensar é baseada num sofisma semelhante ao de atribuir ao coração todas as
emoções, porque as emoções tem certa influência sobre a acção do coração... Assim,
o pensamento fica conhecido, não como processo fisiológico, mas como um facto
de consciência, pela nossa experiência mental, e não temos razão alguma para
supor que possa ele identificar-se com uma actividade corpórea qualquer
visível. A vossa alma outra coisa não é além daquilo de que tens
consciência... É por uma falsa analogia de linguagem que dizemos “a minha
alma”, como dizemos “o meu cérebro”, “o meu corpo” e assim
sucessivamente. Com efeito, és uma alma e não deves dizer possuir uma
alma como se a alma diferisse de vós mesmos.”
(3)
Muitos
fenómenos conhecidos permitem ilustrar a terceira proposição que
estabelece que as coisas desaparecidas não perdem a sua existência.
A indestrutibilidade da matéria não deixa de ser um facto que salta aos olhos,
mas é preciso prová-lo cientificamente.
Acredita-se
geralmente que uma coisa queimada está destruída, que o leite derramado na
terra está perdido, que a nuvem se evaporou devido ao calor solar, etc. Todo a
gente sabe, porém, hoje, que qualquer que seja a dispersão da matéria, as suas
partículas são indestrutíveis, que existe igualmente o vapor de água, ainda que
invisível, mesmo quando a nuvem se evaporou. Desnecessário é insistir,
detalhadamente, sobre tal facto. Poder-se-ia, porém, replicar que a
admissão disso depõe contra a sobrevivência individual; superficialmente
sim, mas, no fundo, de modo algum. A nuvem não tinha individualidade,
não era mais do que uma reunião de partículas que, por acaso, possuem poder de
afectar os raios luminosos, de forma a torná-los visíveis aos nossos olhos. Uma
multidão pode ser dispersa, um exército desmobilizado, mas a sua existência foi
corporal até à sua dispersão. A realidade dessa existência, durante a
sua permanência, encontra-se no estimulante mental que unia as partes
constituintes e não no próprio grupo. Os componentes da multidão
afastaram-se por ocasião da separação, porque nada é duradouro na justaposição.
Um exército ou uma armada obedecem às ordens de homens de Estado, transmitidas
a seguir por meio de oficiais graduados. Os componentes desses grupos
assemelham-se a partículas do nosso próprio corpo, reunidas por algum
agente superior, obedecendo a ordens durante certo tempo, até ao momento do
licenciamento. Eles deixam de existir ao mesmo tempo que o corpo, mas a
entidade dirigente, que os comandava e dirigia, já nada de comum tem com eles,
que eram apenas o instrumento de que se servia o agente transmissor para
possuir certos efeitos.
O poder
dirigente pode continuar a funcionar muito tempo depois do abandono do
mecanismo subordinado, porém sem instrumento não o pode fazer. Deus não
produz resultados sem os meios convenientes. O espiritual e o material parecem
continuamente em relação. Em resumo: deve ser sempre verdade que a
Divindade age por meio dos seus agentes. O que chamamos leis da natureza
são as nossas fórmulas de reconhecimento de algum dos seus agentes operadores.
Supõem os teólogos que os anjos e outros seres sobrenaturais se contam entre os
agentes e mensageiros divinos, ao passo que se reconhece como verdade corrente
que somente o homem pode executar certas coisas. O homem é um
instrumento das forças superiores e ele próprio tem necessidade de
instrumentos para o exercício e para a manifestação das suas faculdades.
Da mesma
maneira que um fabricante de instrumentos pode rejubilar-se quando um exímio
artista faz bom uso dele, do mesmo modo o Altíssimo pode alegrar-se com o uso
benéfico das faculdades e talentos dos seus filhos.
(4)
A quarta proposição – que um
indivíduo é uma encarnação temporária de algo imortal – toca o
problema mais difícil da identidade pessoal. Que entendemos nós por
“individualidade pessoal”? Deve supor-se que o homem sempre existiu? Podemos,
em suma, compreender que isso não é necessário. Um poema e um drama podem ser
imortais, mas viram o dia num tempo definido e circunstâncias especiais os
fizeram nascer.
Parece-me hoje provável que a individualidade se formou
durante o isolamento na matéria, do que podemos chamar substância psíquica
bruta, não experimentada. O corpo é gradualmente saturado pela psique ou alma
não identificada, segundo as suas capacidades de recepção, porção infinitesimal
no começo do processo, aumentando pouco a pouco numa medida certa em razão dos
esforços e das oportunidades do ser. O afluxo é às vezes de tal modo
importante que forma o que chamamos um “grande homem”, se bem que, na maior
parte dos casos, a acção pára muito tempo antes de chegar a esse resultado.
Depois de certo intervalo no desenvolvimento, a alma, agora
identificada, retorna ao seu ponto de partida, quer gradual e naturalmente,
quer bruscamente, em caso de acidente, mas em ambos os casos ela conserva as
suas capacidades, as aptidões, os gostos, a memória e a experiência adquiridas
durante a vida terrena. Leva esse acréscimo de valor e o faz adicionar ao Todo
que ela junta – qualquer que seja esse Todo – apropriado à sua natureza, todo
esse que pode ser um “ego” subliminar maior cujas porções talvez estejam
submetidas a uma forma modificada da reencarnação numa vida futura. Reservo
a minha opinião a respeito destas questões, mas podemos estar certos de que as
partículas materiais, sempre subordinadas aos fins da pessoa cujo crescimento
era temporário, desempenharam o seu papel e foram definitivamente abandonadas. Essas
partículas provêm de uma nutrição qualquer, são assimiladas durante certo
tempo, depois rejeitadas para dar lugar a outras. As partículas não exercem
nenhuma função; impelidas dali e de acolá, são perpétuamente afluentes. Todo
o organismo, porém, conserva a sua identidade, como a de um rio que é
sempre o Ganges ou o Tibre, ainda que as partículas da água, que passam pelo
seu leito, mudem constantemente. Tais analogias não são, de forma alguma,
exactas, mas simplesmente sugestivas. Uma vez recitado, um poema, este não
deixa de existir. Uma partitura de uma orquestra é a encarnação temporária de
um homem de génio, cujas ideias estão sujeitas à reencarnação.
/…
Oliver
Lodge, Por que creio na imortalidade da Alma, Capítulo
II As sete proposições; proposição segunda (2), proposição
terceira (3) e proposição quarta (4), 5º fragmento
desta obra.
(imagem de contextualização: Luz e Cor (Teoria de
Goethe) - A manhã após o Dilúvio, Moisés escreve o livro a
Génese, pintura de Joseph Mallord William Turner)
Sem comentários:
Enviar um comentário