sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

O círculo das coisas terrestres aperta-nos e limita as nossas percepções ~


Alma humana…

A evolução dos mundos e das almas é regida pela vontade divina, que penetra e dirige toda a Natureza, mas a evolução física é uma simples preparação para a evolução psíquica e a ascensão das almas prossegue muito além da cadeia dos mundos materiais.

O que impera nas baixas regiões da vida é a luta ardente, o combate sem tréguas de todos contra todos, a guerra perpétua em que cada ser faz esforço para conquistar um lugar ao Sol, quase sempre em detrimento dos outros. Essa peleja furiosa arrasta e dizima todos os seres inferiores nos seus turbilhões.

O nosso Globo é como uma arena onde se travam batalhas incessantes. (*)

A Natureza renova continuamente esses exércitos de combatentes. Na sua prodigiosa fecundidade, gera novos seres; mas logo a morte ceifa nas suas fileiras cerradas. Essa luta, horrenda à primeira vista, é necessária para o desenvolvimento do princípio da vida, dura até ao dia em que um raio de inteligência vem iluminar as consciências adormecidas. É na luta que a vontade se apura e afirma; é da dor que nasce a sensibilidade.

A evolução material, a destruição dos organismos é temporária; representa a fase primária da epopeia da vida. As realidades imperecíveis estão no Espírito; só ele sobrevive a esses conflitos. Todos esses invólucros efémeros não são mais do que vestuários que vêm ajustar-se à sua forma fluídica permanente. Cobre-os com vestuários para representar os numerosos actos do drama da evolução no vasto palco do universo.

Emergir grau a grau do abismo da vida para tornar-se Espírito, génio superior, e isto pelos seus próprios méritos e esforços, conquistar o futuro hora a hora, ir-se libertando dia a dia um pouco mais da ganga das paixões, libertar-se das sugestões do egoísmo, da preguiça, do desânimo, resgatar-se pouco a pouco das suas fraquezas, da sua ignorância, ajudando os seus semelhantes a se resgatarem por sua vez, arrastando todo o meio humano para um estado superior, tal é o papel distribuído a cada alma. Para desempenhá-lo, tem ela à sua disposição toda a série de existências inumeráveis na escala magnífica dos mundos.

Tudo o que vem da matéria é instável; tudo passa, tudo foge. Os montes se vão pouco a pouco abatendo sob a acção dos elementos; as maiores cidades convertem-se em ruínas, os astros acendem-se, resplandecem, depois apagam-se e morrem; só a alma imperecível paira na duração eterna.

O círculo das coisas terrestres aperta-nos e limita as nossas percepçõesmas quando o pensamento se separa das formas mutáveis e abarca a extensão dos tempos, vê o passado e o futuro se juntarem, fremirem e viverem o presente. O canto de glória, o hino da vida infinita enche os espaços, sobe do âmago das ruínas e dos túmulos. Sobre os destroços das civilizações extintas rebentam florescências novas. Efectua-se a união entre as duas humanidades, visível e invisível, entre aqueles que povoam a Terra e os que percorrem o espaço. As suas vozes chamam, respondem umas às outras, e esses rumores, esses murmúrios, vagos e confusos ainda para muitos, tornam-se para nós a mensagem, a palavra vibrante que afirma a comunhão de amor universal.

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(*) Ver Le Dantec - La Lutte Universelle, I vol., 1906.


LÉON DENIS, O Problema do Ser, do Destino e da Dor,  IX – Evolução e finalidade da alma, fragmento.
(imagem de contextualização: Head of Divine Vengeance, pintura de Pierre-Paul Prud'hon)

domingo, 17 de dezembro de 2017

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria; 
I Posição do Problema (IV)

A teoria mecânica, estabelecendo a pura necessidade matemática nas acções e reacções que formam a vida do mundo, é incompleta, por isso que suprime a causa e dissipa em névoa o mundo moral. A teoria de uma força única, universal, sempre actual e formando a variedade dos seres pelas suas metamorfoses, ajusta essa misteriosa universalidade a uma força primordial.

Poder-se-ia, portanto, acusar simplesmente o processo geral dos nossos contraditores de um erro gramatical, atribuindo à matéria um poder só cabível à força e pretendendo não passar esta de mero adjectivo qualificativo, quando lhe cabem os mesmos direitos daquela, na classe dos substantivos.

Examinemos agora, nesta mesma vista de conjunto, quais os grandes erros que marcham de paralelo e sustentam essa conduta e que havemos de encontrar sob várias formas, no curso das nossas contraditas.

O primeiro erro geral de que abusam os materialistas é imaginarem que, pelo facto de existir Deus, importa atribuir-lhe uma vontade caprichosa e não constante e imutável, na sua perfeição.

Ørsted, por exemplo, sábio escrutador do mundo físico, exprimiu sensatamente as relações de Deus com a Natureza, dizendo que “o mundo é governado por uma razão eterna, cujos efeitos se manifestam nas leis da Natureza”.

O Dr. Büchner opõe a esse conceito a seguinte especiosa objecção: – “Ninguém poderia compreender como uma razão eterna, que governa, se conforme com leis imutáveis. Ou são as leis naturais que governam, ou é a razão eterna. Que umas ao lado de outras entrariam, a cada instante, em colisão. Se a razão eterna governasse, supérfluas se tornariam as leis naturais e se, ao revés, governam as leis imutáveis da Natureza, elas excluem toda a intervenção divina.” – “Se uma personalidade governa a matéria num determinado sentido – opina Moleschott – desaparece da Natureza a lei da necessidade. Cada fenómeno se torna partilha de jogo do acaso e de uma arbitrariedade sem pelas.”

Havemos de convir que esta grave objecção é singularíssima.

É um raciocínio extravagante que cai pela base. A nós nos parece, pelo contrário, que a inteligência notória nas leis da Natureza demonstra, no mínimo, a inteligência da causa a que se devem essas leis, que são, elas mesmas, precisamente a expressão imutável dessa inteligência eterna.

E não será algo ridículo pretender que essa causa deixe de existir, pelo motivo do íntimo acordo com essas mesmas leis?

Vejamos, por exemplo, um excelente harpista: a sua virtuosidade é tão perfeita que os acordes frementes parecem-nos identificados com a poesia da sua alma! Diremos, então, que essa alma não existe, visto que para lhe admitir existência fora preciso que ela estivesse eventual e arbitrariamente em desacordo com as leis da Harmonia! Essa maneira de raciocinar é tão falsa que os próprios autores que a utilizam são os primeiros a reconhecê-lo implicitamente. Assim é que Büchner, referindo-se a milagres e ao facto de haver o clero inglês solicitado a decretação de um dia de jejum e de preces para conjurar a cólera, elogia Palmaraton por haver respondido que o surto epidémico dependia mais de factores naturais, em parte conhecidos, e poderia melhor jugular-se com providências sanitárias, antes que com preces.

Muito bem! O autor, melhor ainda, acrescenta: “Essa resposta lhe acarretou a pecha de ateísmo e o clero declarou pecado mortal não crer pudesse a Providência transgredir, a qualquer tempo, as leis da Natureza.”

Mas, que singular ideia faz essa gente de Deus que por si criou! Um legislador supremo a deixar-se comover por preces e soluços, a subverter a ordem imutável que ele mesmo instituiu, a violar por suas próprias mãos a actividade das forças naturais! – “Todo o milagre, se existisse – diz também Cotta – provaria que a Criação não merece o respeito que lhe tributamos e os místicos deveriam deduzir, da imperfeição do criado, a imperfeição do Criador.”

Aí temos os adversários em contradição consigo mesmos, quando, por um lado, não querem admitir uma razão eterna em concordância de leis imutáveis, e por outro pensam connosco, que a ideia de imutabilidade ou, pelo menos, a regularidade, se identifica muito melhor com a perfeição ideal do ser desconhecido que denominamos Deus, do que a ideia de mutabilidade e arbitrariedade, que umas tantas crenças pretendem impor-lhe.

Um segundo erro geral, não menos funesto que o precedente e que por igual ilude os nossos contraditores, é o de acreditarem que, para existir Deus, importa colocá-lo fora do mundo.

Não vemos pretexto algum racional que possa justificar uma tal necessidade. E antes do mais, que significa essa ideia de uma causa soberana extramundo? Onde os limites do mundo? Pois o mundo, isto é, o espaço no qual se movem estrelas e terras, não é infinito por sua mesma essência?

Imaginais um limite a esse mesmo espaço e supondes que ele se não renova além? Será, então, possível traçar limites à extensão? Onde, pois, imaginar Deus fora do mundo? Será fora da matéria, o que se quer dizer? Mas, que é a matéria em si? – agrupamentos de moléculas intangíveis. Portanto, impossível determinar uma semelhante posição. Deus não pode estar fora do mundo, mas no mesmo lugar do mundo, do qual é o sustentáculo e a vida.

Não fosse temer a pecha de panteísta e ajuntaríamos que Deus é – a alma do mundo. O Universo vive por Deus, assim como o corpo obedece à alma. Em vão pretendem os teólogos que o espaço não pode ser infinito, em vão se apegam os materialistas a um Deus fora do mundo, enquanto sustentamos que Deus, infinito, está com o mundo, em cada átomo do Universo – adoramos Deus na Natureza.

Entretanto, os nossos adversários combatem insensatamente o seu fantasma. “Não há considerar o Universo – diz Strauss – como ordenação regrada por um Espírito fora do mundo, mas, como razão imanente às forças cósmicas e às suas relações.”

A essa razão, chamamo-la Deus, enquanto os modernos ateístas aproveitam essa declaração para sentenciar que, em não existindo fora do mundo, é que Deus não existe.

“Tudo, – diz H. Tuttle – desde a tinha (perdoem a expressão) que baila aos raios do Sol, à inteligência humana, que verte das massas medulosas do cérebro, está submetido a princípios fixos. Logo, não existe Deus.” Logo, existe – dizemos nós – “Livre é cada qual de franquear os limites do mundo visível – pondera Büchner – e de procurar fora dele uma razão que governa, uma potência absoluta, uma alma mundial, um Deus pessoal”, etc. Mas, que é o que vos fala disso? “Nunca, em parte alguma – diz o mesmo literato – nos mais longínquos espaços revelados pelo telescópio, pôde observar-se um facto que fizesse excepção e pudesse justificar a necessidade de uma força absoluta, operando fora das coisas.”

“A força não impelida por um Deus, não é uma essência das coisas isoladas do princípio material” – adverte Moleschott.

Ninguém terá visão tão limitada – afirma ele alhures – para enxergar nas acções da Natureza outras forças não ligadas a um substrato material. Uma força que planasse livremente acima da matéria seria uma concepção absolutamente balda de sentido.

Positivamente, ainda hoje existem cavaleiros errantes, à guisa dos que outrora manobravam em torno dos castelos do Reno, e de bom grado arremetem moinhos de vento. Lídimos heróis de Cervantes, visto que, no fim de contas, qual o filósofo que hoje propugna um Deus ou forças quaisquer fora da Natureza?

Vemos em Deus a essência virtual que sustenta o mundo em cada uma de suas partes microscópicas, daí resultando ser o mundo como que por ele banhado, embebido em todas as suas partes e que Deus está presente na mesma composição de cada corpo.

Dessarte, a primeira trincheira cavada pelos adversários para bloquear o Espiritualismo foi por eles mesmos entulhada; e a segunda nem sequer objectiva a cidadela, e os nossos soldados alemães não fazem mais que bater o campo.

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Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria I - Posição do Problema 4 de 6, 8º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

domingo, 10 de dezembro de 2017

Diálogos de Kardec ~


A SEGUNDA VISTA:
CONHECIMENTO DO FUTURO. ~ 
PREVISÕES ~ 

Desde que no estado sonambúlico as manifestações da alma se tornam, de certo modo, ostensivas, fora absurdo supor que no estado normal ela se encontre confinada, de modo absoluto, no seu envoltório, como o caramujo na sua concha. Não é de maneira alguma a influência magnética que a desenvolve; esta influência nada mais faz do que a tornar patente pela acção que exerce sobre os órgãos corporais. Ora, nem sempre o estado sonambúlico é condição indispensável a essa manifestação. As faculdades que se revelam neste estado desenvolvem-se algumas vezes espontaneamente, no estado normal, em certos indivíduos. Resulta-lhes daí a faculdade de verem as coisas distantes, por onde quer que a alma estenda a sua acção; vêem, se podemos servir-nos desta expressão, através da vista ordinária; e os quadros que descrevem, os factos que narram se lhes apresentam como efeitos de uma miragem. É o fenómeno a que se dá o nome de segunda vista. No sonambulismo, a clarividência deriva da mesma causa; a diferença está em que, neste estado, ela é isolada, independente da vista corporal, ao passo que é simultânea nos que desta faculdade são dotados em estado de vigília. 

Quase nunca é permanente a segunda vista. Em geral, o fenómeno se produz espontaneamente, em dados momentos, sem ser por efeito da vontade e, provoca uma espécie de crise que, algumas vezes, modifica sensivelmente o estado físico. O indivíduo parece olhar sem ver; toda a sua fisionomia reflecte como que uma exaltação. 

É de se notar que as pessoas dotadas desta faculdade não suspeitam possuí-la. Ela se lhes afigura natural, como a de ver com os olhos. Consideram-na um atributo do seu ser e nunca uma coisa excepcional. Cumpre acrescentar que muito amiúde o esquecimento se segue a essa lucidez passageira, cuja lembrança, cada vez mais imprecisa, acaba por desvanecer-se como a de um sonho. 

Há infinitos graus na potencialidade da segunda vista, desde a sensação confusa, até a percepção tão nítida quanto no sonambulismo. Há carência de um termo para se designar este estado especial e, sobretudo, os indivíduos susceptíveis de experimentá-lo. Tem-se empregado a palavra vidente, que, embora não exprima com exactidão a ideia, a adoptaremos até nova ordem, à falta de outra melhor. 

Se agora confrontarmos os fenómenos de segunda vista com os da clarividência sonambúlica, compreenderemos que o vidente possa perceber coisas que lhe estejam fora do alcance da visão ordinária, do mesmo modo que o sonâmbulo vê, à distância, acompanha o curso dos acontecimentos, aprecia-lhes a tendência e, em certos casos, lhes prevê o desenlace. 

Este dom da segunda vista é que, em estado rudimentar, dá a certas pessoas o tacto, a perspicácia, uma espécie de segurança aos actos, o que se pode com justeza denominar: golpe de vista moral. Mais desenvolvido, ele acorda os pressentimentos, ainda mais desenvolvido, faz ver acontecimentos que já se realizaram, ou que estão prestes a realizar-se; finalmente, quando chega ao apogeu, é o êxtase vígil. 

Como já dissemos, o fenómeno da segunda vista é quase sempre natural e espontâneo; parece, entretanto, que se produz com mais frequência sob o império de determinadas circunstâncias. Os tempos de crise, de calamidades, de grandes emoções, tudo, enfim, que sobreexcita o moral, que provoca o desenvolvimento. Dir-se-ia que a Providência, diante de perigos iminentes, multiplica em torno das criaturas a faculdade de prevê-los

Videntes sempre os houve em todos os tempos e em todas as nações, parecendo, no entanto, que alguns povos são mais naturalmente predispostos a tê-los. Dizem que na Escócia é muito comum o dom da segunda vista. Não se lhe nota a existência entre a gente do campo e os que habitam nas montanhas. 

Os videntes têm sido diversamente considerados, conforme os tempos, os costumes e o grau de civilização. Para os cépticos, eles não passam de cérebros desarranjados, de alucinados; as seitas religiosas os arvoraram de profetas, sibilas, oráculos; nos séculos de superstição e ignorância, eram feiticeiros e acabavam na fogueira. Para o homem sensato, que acredita no poder infinito da Natureza e na bondade inesgotável do Criador, a dupla vista é uma faculdade inerente à espécie humana, por meio da qual Deus nos revela a existência da nossa essência espiritual. Quem não reconheceria um dom dessa natureza em Jeanne d’Arc e em toda uma multidão de outras personagens que a história qualifica de inspiradas? 

Muito se tem falado de pessoas que, deitando as cartas, disseram coisas de surpreendente verdade. De modo nenhum pretendemos fazer-nos apologista dos ledores da “buena-dicha” que exploram a credulidade dos espíritos fracos e cuja linguagem ambígua se presta a todas as combinações de uma imaginação abalada; mas, não é de todo impossível que certas pessoas, fazendo disso um ofício, tenham o dom da segunda vista, mesmo mau grado seu. Sendo assim, as cartas, entre as suas mãos, não passam de um meio, de um pretexto, de uma base de conversa. Elas falam de acordo com o que vêem e não com o que indicam as cartas para as quais apenas olham. 

O mesmo se dá com outros meios de adivinhação, tais como as linhas da mão, a clara de ovo e outros símbolos místicos. Os sinais das mãos talvez tenham mais valor do que todos os outros meios, não por si mesmos, mas porque, tomando e palpando a mão do consultante, o pretenso adivinho, se é dotado de dupla vista, estabelece relação mais directa com aquele, como se verifica nas consultas sonambúlicas

Podem incluir-se os médiuns videntes na categoria das pessoas que possuem a dupla vista. Com efeito, do mesmo modo que estas últimas, aqueles julgam ver com os olhos, mas, na realidade, a alma é que vê e por esta razão é que eles vêem tão bem com os olhos abertos como com os olhos fechados. Segue-se, necessariamente, que um cego poderia ser médium vidente, tanto quanto um que tenha perfeita a vista. Constituiria estudo interessante indagar se esta faculdade é mais frequente nos cegos. Somos levado a crê-lo, dado que, como se pode verificar experimentalmente, a privação de se comunicar com o meio exterior, por falta de certos sentidos, confere em geral poder maior à faculdade de abstracção da alma e, consequentemente, maior desenvolvimento ao sentido íntimo pelo qual ela se põe em relação com o mundo espiritual. 

Podem, pois, os médiuns videntes ser identificados por pessoas que gozam da vista espiritual; mas, seria porventura demasiado considerar essas pessoas como médiuns, porquanto mediunidade se caracteriza unicamente pela intervenção dos Espíritos, não se podendo ter como acto mediúnico o que alguém faz por si mesmo. Aquele que possui a vista espiritual vê pelo seu próprio Espírito, não sendo necessário, para o surto da sua faculdade, o concurso de um Espírito estranho. 

Posto isto, examinemos até que ponto a faculdade da dupla vista pode permitir se descubram coisas ocultas e se penetre no futuro. 

Desde todos os tempos, os homens hão querido conhecer o futuro e muitos volumes se poderiam escrever sobre os meios que a superstição inventou para erguer o véu que encobre o nosso destino. Muito sábia foi a Natureza no-lo ocultar. Cada um de nós tem a sua missão providencial na grande colmeia humana e concorre para a obra comum na sua esfera de actividade. Se soubéssemos de antemão o fim de cada coisa, é fora de dúvida que a harmonia geral ficaria perturbada. A segurança de um porvir ditoso tiraria ao homem toda a actividade, pois que nenhum esforço precisaria ele empregar para alcançar o objectivo que sempre colima: o seu bem-estar. Paralisar-se-iam todas as forças físicas e morais. As mesmas consequências produziriam a certeza da infelicidade, em virtude do desânimo que ganharia a criatura. Ninguém se disporia a lutar contra a sentença definitiva do destino. O conhecimento absoluto do futuro seria, portanto, um presente funesto, que nos conduziria ao dogma da fatalidade, o mais perigoso de todos, o mais antipático ao desenvolvimento das ideias. A incerteza quanto ao momento do nosso fim neste mundo é que nos faz trabalhar até ao último batimento do nosso coração. O viajante levado por um veículo se entrega ao movimento que o fará chegar ao ponto demandado, sem pensar em lhe impor qualquer desvio, por estar certo da sua impotência para consegui-lo. O mesmo se daria com o homem que conhecesse o seu destino irrevogável. Se os videntes pudessem infringir esta lei da Providência, igualar-se-iam à Divindade. Por isso mesmo, não é essa a missão que lhes cabe. 

No fenómeno da dupla vista, por se encontrar a alma parcialmente liberta do envoltório material, que lhe limita as faculdades, não há duração, nem distância; visto que lhe é dado abranger o espaço e o tempo, tudo se lhe confunde no presente. Livre dos entraves da carne, ela julga dos efeitos e das causas melhor do que nós, que não podemos fazer outro tanto; vê as consequências das coisas presentes e pode levar-nos a pressenti-las. É neste sentido que se deve entender o dom de presciência atribuído aos videntes. As suas previsões resultam de ter a alma consciência mais nítida do que existe e não de uma predição de coisas fortuitas, sem ligação com o presente. É por dedução lógica do conhecido que ela chega ao desconhecido, dependente muitas vezes da nossa maneira de proceder. Quando um perigo nos ameaça, se somos avisados, ficamos em condições de tentar tudo o que seja preciso para evitá-lo, cabendo-nos a liberdade de fazê-lo ou não. 

Em tal caso, o vidente tem diante de si um perigo que se nos encontra oculto; ele o assinala, indica o meio de afastá-lo, pois de outro modo o acontecimento segue o seu curso. 

Suponhamos que uma carruagem enveredou por uma estrada que vai dar num precipício que o condutor não pode perceber. É evidente que, se nada ocorrer que a desvie, ela ali se precipitará. Suponhamos também que um homem colocado de maneira a divisar a estrada em toda a sua extensão, vendo o perigo que corre o viajante, consegue avisá-lo a tempo de ele se desviar. O perigo estará conjurado. Da sua posição, dominando o espaço, o observador vê o que o viajante, cuja visão os acidentes do terreno circunscrevem, não logra divisar. Pode ele ver se uma causa fortuita obstará à queda do outro; conhece então, previamente, o que se dará e prediz o acontecimento. 

Imaginemos que esse homem, do alto de uma montanha, divise ao longe, pela estrada, uma tropa inimiga dirigindo-se para uma aldeia a que pretende atear fogo. Fácil lhe será, levados em conta o espaço e a velocidade, prever quando a tropa chegará. Se, então, descendo à aldeia, disser apenas: A tal hora a aldeia será incendiada, caso o facto venha a ocorrer, ele passará, aos olhos da multidão ignorante, por adivinho, feiticeiro; entretanto, apenas viu o que os outros não podiam ver e deduziu, do que vira, as consequências. 

Ora, o vidente, como este homem, apreende e acompanha o curso dos acontecimentos; não lhes prevê o resultado porque possua o dom de adivinhar: ele o vê e, desde então, pode dizer-vos se estais no bom caminho, indicar-vos outro melhor e anunciar o que se vos deparará no extremo do que seguis. É, para vós, o fio de Ariadne, mostrando a saída do labirinto. 

Como se vê, longe está isto da predição propriamente dita, conforme a entendemos na acepção vulgar do termo. Nada foi tirado ao livre-arbítrio do homem, que conserva sempre a liberdade de agir ou não, de evitar ou deixar que os acontecimentos se dêem, por sua vontade, ou por sua inércia; indica-se-lhe um meio de chegar ao fim, cabendo-lhe utilizá-lo. Supô-lo submetido a uma fatalidade inexorável, com relação aos menores acontecimentos da vida, é despojá-lo do seu mais belo atributo: a inteligência; é assimilá-lo ao bruto. O vidente, pois, não é um adivinho; é um ser que percebe o que não vemos; é, para nós, o cão do cego. Nada nisso há, portanto, que se contraponha aos desígnios da Providência quanto ao segredo de nosso destino; é ela própria quem nos dá um guia. 

Tal o ponto de vista donde se deve considerar o conhecimento do futuro, por parte das pessoas dotadas de dupla vista. Se fosse fortuito este futuro, se dependesse do a que se chama acaso, se nenhuma ligação tivesse com as circunstâncias presentes, nenhuma clarividência poderia penetrá-lo e nenhuma certeza, neste caso, ofereceria qualquer previsão. O vidente (referimo-nos ao que verdadeiramente o é), o vidente sério e não o charlatão que simula sê-lo, o verdadeiro vidente, não diz o que o vulgo denomina “buena-dicha”; ele apenas prevê as consequências que decorrerão do presente; nada mais e já é muito. 

Quantos erros, quantos passos em falso, quantas tentativas inúteis não evitaríamos, se tivéssemos sempre um guia seguro a nos esclarecer; quantos homens se encontram deslocados na vida, por não se haverem lançado no caminho que a Natureza lhes traçara às faculdades! Quantos sofrem malogros por terem seguido os conselhos de uma obstinação irreflectida! Uma pessoa houvera podido dizer-lhes: “Não empreendais isso, porque as vossas faculdades intelectuais são insuficientes, porque não convém ao vosso carácter, nem à vossa constituição física, ou, ainda, porque não sereis secundados, como fora preciso; ou, então, porque vos enganais sobre o alcance do que pretendeis e topareis com este embaraço que não prevedes.” Noutras circunstâncias, ter-lhes-ia dito: “Sair-vos-eis bem de tal empreendimento, se vos conduzirdes desta ou daquela maneira; se evitardes dar tal passo que não pode comprometer-vos.” Sondando as disposições e os caracteres, poderia dizer: “Desconfiai de tal armadilha que vos querem preparar”, acrescentando, em seguida: “Estais prevenidos, fiz o que me cumpria; mostrei-vos o perigo; se sucumbirdes, não acuseis a sorte, nem a fatalidade, nem a Providência; acusai-vos unicamente a vós mesmos. Que pode fazer o médico, quando o doente não lhe dá atenção aos conselhos?” 

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, A segunda vista – Conhecimento do futuro. Previsões. 7º fragmento solto desta obra. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

domingo, 3 de dezembro de 2017

O peregrino sobre o mar de névoa ~

Natureza Moral da terapia Espírita 

Kardec adverte quanto às relações da moralidade do médium com a sua mediunidade.

Considerada em si mesma como um campo de produção de fenómenos, a mediunidade não depende da moralidade.

Mas considerada como instrumento cognitivo, ou seja, como meio de conhecimento, a mediunidade depende estritamente da moralidade.

Sacerdotes e religiosos de várias seitas se  aproveitaram dessa declaração de Kardec para acusar o Espiritismo de doutrina sem moral. Revelavam com isso apoucada inteligência e falta de moral.

Essa observação de Kardec comprovou-se amplamente nas pesquisas espíritas e nas sociedades de pesquisa psíquicas da Europa e da América. A tese é límpida e precisa. Os fenómenos mediúnicos, como os fenómenos físicos, não dependem da moral do médium ou do físico.

O químico de vida moral mais condenável produz as suas reacções químicas em laboratório sem pensar na moral. Mas quando se trata da busca da verdade ou de processos de cura, a mediunidade divorciada da moralidade não serve, tornando-se mesmo perigosa. A eficácia da terapia espírita depende da integridade moral do médium que lhe serve de instrumento. Esse é um problema de relações humanas no plano das sintonias espirituais.

Desejando acelerar os trabalhos de ordenação da doutrina, na Codificação – no qual trabalhava apenas com as meninas Boudin – Kardec pensou em utilizar-se da boa-vontade de um médium seu conhecido, mas o seu orientador espiritual advertiu-o de que esse médium não tinha condições morais para o trabalho, acrescentando: “A verdade não pode falar pela boca da mentira.” Desse episódio, bem como dos princípios morais da doutrina, ampla e minuciosamente explanados na Codificação, nunca se lembraram nem se lembram os clérigos e materialistas acusadores da suposta amoralidade espírita. Bastaria isso para mostrar a debilidade moral desses acusadores.

Na terapêutica espírita, como nas investigações científicas da mediunidade, a exigência da moral é de importância básica. As constantes denúncias de fraudes mediúnicas nas pesquisas decorrem da falta de escrúpulo dos pesquisadores na escolha de seus instrumentos mediúnicos, no tocante às exigências morais.

No caso de médiuns realmente moralizados as denúncias de fraude são geralmente falsas. Costuma citar-se o caso do médium escocês Daniel Douglas Home, que produzia os fenómenos mais espantosos, como a sua própria levitação e materializações sucessivas e contra as quais só houve acusações sem base nem sentido. A famosa médium Anna Prado, no Pará, cruelmente combatida e caluniada por um clérigo fanático, saiu ilesa de todas as invencionices como Anésio SiqueiraUrbano de Assis XavierLuís Parigot de Souza e tantos outros se mantiveram sempre incólumes de acusações dessa espécie, defendidos pelo seu comportamento moral, que lhes garantia permanente protecção das entidades espirituais superiores. A moral do médium é o seu escudo em todas as circunstâncias. Não a moral social, que pode ser avaliada de fora e não raro de maneira contraditória, mas a moral íntima, pessoal, endógena, ou seja, que nasce da sua própria consciência e não precisa de sanções externas. Essa moral legítima, vivencial, garante a sintonia espiritual do médium com os espíritos elevados – única verdadeira garantia da eficácia de sua terapia. É do próprio Evangelho de Jesus que ressalta esse princípio da moral espírita.

Fala-se muito da importância da fé nas curas espirituais de qualquer sector religioso. A fé se revela, nesses casos, mais como um anseio ardente de cura do que propriamente como fé. O conceito vulgar de fé tem por fundamento a crença. Quem não crê, não tem fé. Mas, como explicou Kardec, a fé verdadeira não prescinde da razão, que a fundamenta no conhecimento e no saber. A fé espírita é racional. A crença é apenas uma aceitação emotiva de um princípio ou de um mito. Herbert Bradley, depois das suas experiências espíritas, sustentava: “Eu não creio, eu sei.” Na terapia espírita a fé representa apenas um estímulo moral ao paciente, para que ele se predisponha melhor, emocionalmente, à acção dos elementos curadores. Kardec acentuou a existência de dois campos da fé, assim divididos: fé humana e fé divina. O homem que confia em si mesmo para as suas realizações fortalece-se na fé humana. Mas aquele que possui a fé divina, resultante do seu conhecimento dos poderes da divindade, dispõe da máxima firmeza na busca dos seus intentos. Na terapia espírita essa fé não se funda nos elementos rituais das religiões, concentrando-se na sintonia do seu pensamento e dos seus sentimentos com as entidades espirituais socorristas.

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José Herculano Pires, Ciência Espírita e as suas implicações terapêuticas, 3 Natureza Moral da Terapia Espírita (1 de 3), 8º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, por Caspar David Friedrich)