quarta-feira, 30 de agosto de 2017

teremos que modificar o nosso conceito da morte?

A NEUROFISIOLOGIA DE UM CÉREBRO EM FUNCIONAMENTO NORMAL

Durante décadas foi feita uma extensa investigação para localizar as memórias no interior do cérebro, até ao presente sem êxito. Também nos deveríamos interrogar como uma actividade não material tal como a atenção concentrada e o pensamento podem corresponder a reacções observáveis (materiais) sob forma mensurável de actividade eléctrica, magnética e química, num determinado lugar do cérebro; mesmo um aumento no fluxo sanguíneo no cérebro (Roland, 1981) é observado durante uma tal actividade não material como o pensamento. Estudos neurofisiológicos revelaram as já citadas actividades através de EEG (electro encefalograma), MEG (magneto-encefalografia), RMFI (neuro imagem por ressonância magnética) e PET-Scannnig (tomografia computorizada) (Desmedt e outros, 1977; Roland e Friberg, 1985; Eccles, 1988).

Foi demonstrado que certas áreas do cérebro se mostravam metabolicamente activas em resposta ao pensamento e à sensação. Contudo, embora dando provas pelas funções das redes neurais como intermediárias para a manifestação de pensamentos (correlatos neurais), esses estudos não implicam necessariamente que tais células também produzam os pensamentos.

Está ainda por provar a suposição de que a consciência e as memórias resultam das funções cerebrais, porque até agora não há provas científicas para correlatos neurais de todos os aspectos da experiência subjectiva. 

Falta no presente prova directa de como os neurónios ou as redes neurais poderiam possivelmente produzir a essência subjectiva da mente e dos pensamentos. 

E como poderia a matéria “inconsciente” como o nosso cérebro produzir consciência, sendo o cérebro apenas composto de átomos, moléculas e células, com uma quantidade de processos químicos e eléctricos?

Não há exemplos conhecidos de emparelhamentos neuro-perceptivos, portanto há razões para duvidar que qualquer sistema neuro-perceptivo poderia emparelhar a experiência perceptiva em conteúdo, e daqui razões para duvidar da veracidade da teoria do “emparelhamento de conteúdos”.

A activação neural reflecte apenas o uso de estruturas. É difícil entender como padrões de activação neural poderiam por si mesmos originar os aspectos qualitativos das sensações registadas. 

Isso poderia ser como um rádio: pode activar-se ligando-o, sintonizar um certo comprimento de onda, mas não é possível influenciar o conteúdo do programa que se vai ouvir. Ligar um rádio não influencia o conteúdo do programa. 

A suposição feita com base na doutrina do “emparelhamento de conteúdos” é de que a seguir à activação de certas redes neurais, os pensamentos e sensações irão ser do mesmo conteúdo. Isto parece extremamente inexplicável, incrível e improvável porque a activação neural é simplesmente activação neural; é simplesmente uma forma de codificar informação. Como é que diferenças de código poderão alguma vez originar diferenças nos pensamentos e nas sensações?

O cérebro contém cerca de 100 biliões de neurónios, 20 biliões dos quais estão localizados no córtex. Vários milhares de neurónios morrem por dia e há uma contínua renovação das proteínas e lípidos que constituem as membranas celulares, numa base temporal que varia entre dias e poucas semanas (Romijn, 1997). Cada neurónio projecta impulsos na direcção de centenas de sinapses, que podem estimular ou inibir outros neurónios e, durante a vida, o córtex cerebral modifica e adapta continuamente a sua rede neural, incluindo a troca de mudanças e de lugares das sinapses. O transporte de informação ao longo dos neurónios sucede predominantemente por acção dos seus potenciais de acção e durante a actividade cerebral a soma de todos os campos electromagnéticos de milhões de neurónios muda continuamente cada micro segundo.

Nem o número de neurónios, nem a exacta configuração das dendrites, nem a posição das sinapses, nem a activação dos neurónios parecem ser cruciais para as propriedades de processamento das informações. Mas são-no os padrões derivados, passageiros e altamente ordenados destes campos electromagnéticos gerados ao longo das árvores dendríticas das redes neurais especializadas. 

Estes padrões deveriam ser considerados como o produto final duma auto-organização caótica e dinâmica, que pode ser considerada como fenómeno biológico com coerência quântica (Romijn, 2002). Esta auto-organização pode ser considerada tal como um vórtice de água corrente.


A PROCURA DA CONSCIÊNCIA

Como poderia a consciência ser baseada nestes variáveis campos electromagnéticos ou relacionada com eles? Ao tentar encontrar resposta para esta questão, a influência (inibição e estímulo) de campos magnéticos e eléctricos localizados exteriormente sobre campos electromagnéticos em mutação constante das redes neurais durante o funcionamento normal do cérebro deveria ser agora discutida.

A pesquisa neurofisiológica está a ser posta em prática usando estímulos magnéticos transcranianos (TMS - Transcranial Magnetic Stimulation), durante os quais são produzidos campos magnéticos localizados (Hallett, 2000). A TMS pode estimular ou inibir diferentes partes do cérebro, dependendo da quantidade fornecida de energia, permitindo que faça uma cartografia funcional das regiões corticais e a criação de lesões funcionais passageiras.

Permite avaliar a função em regiões determinadas do cérebro à escala de milissegundos e pode estudar a contribuição das redes corticais em funções cognitivas específicas. Pode interferir com a percepção visual e motora interrompendo a processamento durante 80 a 100 milissegundos. O estímulo e a inibição intracortical conseguida durante o estudo de impulsos combinados com TMS reflecte a actividade interneural do córtex (Hallett, 2000).

A interrupção dos campos eléctricos de redes neurais locais em partes do córtex também prejudica o funcionamento normal do cérebro. Pela estimulação eléctrica do lobo temporal e parietal durante cirurgia para epilepsia, o neuro cirurgião e Prémio Nobel Wilder Penfield pôde por vezes induzir instantâneos de lembranças do passado (nunca uma revisão de vida), experiências com luz, som ou música e – apenas uma vez – descreveu uma experiência-fora-do-corpo (Penfield, 1958, 1975).

Estas experiências não produziram transformações na atitude de vida. O efeito do estimulo externo por magnetismo ou electricidade, depende da intensidade e da duração da energia utilizada. Por vezes o efeito estimulante ocorre quando somente uma pequena quantidade de energia é utilizada. Mas, durante estímulos com mais alta energia, sucede a inibição das funções locais do córtex pela extinção dos campos magnéticos e eléctricos das redes neurais do córtex.

Há pouco tempo, um doente operado por epilepsia relatou ter experimentado uma OBE (experiência fora do corpo) devido a inibição da actividade cortical causada por estímulos mais fortes das redes neurais no “Gyrus Angularis” (Blanke e outros, 2002). Outras causas da disfunção das redes neurais no córtex raramente produzem OBE (Blanke e outros, 2004). Teremos que concluir que estímulos artificiais localizados, com fotões reais (energia eléctrica ou magnética) perturbam ou inibem os campos electromagnéticos constantemente mutáveis das nossas redes neurais, por isso influindo e inibindo as funções normais do nosso cérebro.

Poderiam a consciência e as memórias ser o produto ou resultado desses campos electromagnéticos permanentemente mutáveis? Poderiam esses fotões ser os portadores da consciência (Romijn, 2001)? Alguns investigadores procuram criar inteligência artificial por tecnologia computorizada, na esperança de simular programas que evocam a consciência.

O físico quântico Roger Penrose (1996) advoga que as computações algorítmicas não podem simular o raciocínio matemático. 

Propõe hipóteses mecânicas quânticas para explicar as relações entre a consciência e o cérebro (Hameroff and Penrose, 1995). 

E Simon Berkovitch calculou que o cérebro tem uma absoluta incapacidade para produzir e armazenar todos os processos informativos de todas as nossas memórias com os pensamentos de uma vida inteira.

Necessitaríamos de 10 elevado à vigésima quarta potência (atenção: 10 elevado à vigésima quarte potência, um número inconcebível!...) operações por segundo, o que é impossível para os nossos neurónios (Berkovitch, 1993). Dever-se-ia concluir que o cérebro não possui capacidade de computação para guardar todas as memórias e pensamentos associados, não tem capacidade de recuperá-los, e parece não ser capaz de produzir consciência.


NOVO CONCEITO

A ciência, creio eu, é a busca de explicação de novos mistérios muito mais do que ficarmos presos a factos e conceitos velhos. Com as presentes noções médicas e científicas parece impossível esclarecer todos os aspectos das experiências subjectivas relatadas pelos doentes que passaram por EQM durante a perda transitória de todas as funções do cérebro.

Frederik van Eeden, o famoso médico e autor holandês mencionava, já em 1890 numa sua conferência a respeito do progresso científico de então: “Pessoalmente estou mais convencido do que nunca que o principal inimigo do progresso científico é rejeitar e recusar estudar de antemão e livre de preconceitos, factos aparentes, incompreensíveis ou estranhos” (Van Eeden, 1897, p. 226).

Deste modo, representa um desafio científico discutir hipóteses que poderiam explicar:

– a relatada interligação com a consciência íntima de outras pessoas e de parentes falecidos;

– a possibilidade da vivência instantânea e simultânea (“não local”) de uma “revisão de  vida”;

– uma “antevisão” da vida de alguém numa dimensão livre do conceito convencional do espaço e do tempo, a que está ligado o nosso corpo, no qual todos os acontecimentos do  passado, do presente e do futuro coexistem; 

– a possibilidade de ter clara consciência com memórias, com sentido de identidade  pessoal, conhecimento e percepção fora e acima do próprio corpo sem vida.

Durante uma EQM chega-se ao ponto em que se processa o regresso ao corpo da consciência activa, a par com a percepção corporal do confinamento. 

Quase todos os aspectos da disponibilidade da consciência durante a paragem cardíaca têm o aspecto de um fenómeno quântico. Concluiríamos, como muitos outros, que os processos mecânicos quânticos poderiam ter criticamente a ver com a forma como a consciência e as memórias se relacionam com o cérebro e com o corpo durante as actividades diárias normais bem como durante a morte cerebral e a morte clínica.

/...


Dr. Pim van LommelAs Experiências de Quase-Morte, A Consciência e o Cérebro – A NEUROFISIOLOGIA DE UM CÉREBRO EM FUNCIONAMENTO NORMAL, A PROCURA DA CONSCIÊNCIA, NOVO CONCEITO (5º fragmento) tradução para a língua portuguesa de espiritismo cultura, depois de autorizada pelo autor.
(imagem de contextualização: O Hospital Rijnstate, em Arnhem – Holanda)

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

o alvo da vida ~

Por esses dados, em torno de nós se estabelece a ordem; o nosso caminho se esclarece; mais distinto se mostra o alvo da vida. Sabemos o que somos e para onde vamos.

Desde então não devemos mais procurar satisfações materiais, porém trabalhar com ardor pelo nosso adiantamento. O supremo alvo é a perfeição; o caminho que para lá conduz é o progresso. Estrada longa que se percorre passo a passo.

À proporção que se avança, parece que o alvo longínquo recua, mas, em cada passo que dá, o ser recolhe o fruto de seus trabalhos, enriquece a sua experiência e desenvolve as suas faculdades.

Os nossos destinos são idênticos. Não há privilegiados nem deserdados. Todos percorrem a mesma vasta carreira e, através de mil obstáculos, todos são chamados a realizar os mesmos fins. Somos livres, é verdade, livres para acelerar ou para afrouxar a nossa marcha, livres para mergulhar em gozos grosseiros, para nos retardarmos durante vidas inteiras nas regiões inferiores; mas, cedo ou tarde, acorda o sentimento do dever, vem a dor sacudir-nos a apatia e, forçosamente, prosseguiremos a jornada.

Entre as almas só há diferenças de grau, diferenças que lhes é lícito transpor no futuro. Usando do livre-arbítrio, nem todos havemos caminhado com o mesmo passo e isso explica a desigualdade intelectual e moral dos homens; mas todos, filhos do mesmo Pai, nos devemos aproximar d'Ele na sucessão das existências, para formar com os nossos semelhantes uma só família, a grande família dos bons Espíritos que povoam o Universo.

Estão banidas do mundo as ideias de paraíso e de inferno eterno. Nesta imensa oficina, só vemos seres elevando-se por seus próprios esforços ao seio da harmonia universal. Cada qual conquista a sua situação pelos próprios actos, cujas consequências recaem sobre si mesmo, ligam-no e prendem. Quando a vida é entregue às paixões e fica estéril para o bem, o ser se abate; a sua situação se apouca. Para lavar manchas e vícios, deverá reencarnar nos mundos de provas e ali purificar-se pelo sofrimento. Cumprida a purificação, a sua evolução recomeça. Não há provações eternas, mas sim reparações proporcionais às faltas cometidas. Não temos outro juiz nem outro carrasco a não ser a nossa consciência, pois essa consciência, assim que se desprende das sombras materiais, torna-se um julgador terrível. Na ordem moral como na física só há efeitos e causas, que são regidos por uma lei soberana, imutável, infalível. Essa lei regula todas as vidas. O que, na nossa ignorância, chamamos injustiça da sorte não é senão a reparação do passado. O destino humano é o pagamento do débito contraído entre nós mesmos e para com essa lei.

A vida actual é a consequência directa, inevitável das nossas vidas passadas, assim como a nossa vida futura será a resultante das nossas acções presentes, da nossa maneira de viver. Vindo animar um corpo novo, a alma traz consigo, em cada renascimento, a bagagem das suas qualidades e dos seus defeitos, todos os tesouros acumulados pela obra do passado. Assim, na série das vidas, construímos por nossas próprias mãos o nosso ser moral, edificamos o nosso futuro, preparamos o meio em que devemos renascer, o lugar que devemos ocupar.

Pela lei da reencarnação, a soberana justiça reina sobre os mundos. Cada ser, chegando a possuir-se em sua razão e em sua consciência, torna-se o artífice dos próprios destinos. Constrói ou desmancha, à vontade, as cadeias que o prendem à matéria. Os males, as situações dolorosas que certos homens sofrem, explicam-se pela acção desta lei. Toda a vida culpada deve ser resgatada. Chegará a hora em que as almas orgulhosas renascerão em condições humildes e servis, em que o ocioso deve aceitar penosos labores. Aquele que fez sofrer sofrerá a seu turno.

Porém, a alma não está para sempre ligada a esta Terra obscura. Depois de ter adquirido as qualidades necessárias, deixa-a e vai para mundos mais elevados. Percorre o campo dos espaços, semeado de esferas e de sóis. Ser-lhe-á arranjado um lugar no seio das humanidades que os povoam. E, progredindo ainda nesses novos meios, ela, sem cessar, aumentará a sua riqueza moral e o seu saber. Depois de um número incalculável de vidas, de mortes, de renascimentos, de quedas e de ascensões, liberta das reencarnações, gozará vida celeste, tomará parte no governo dos seres e das coisas, contribuindo com as suas obras para a harmonia universal e para a execução do plano divino.

Tal é o mistério da psique – a alma humana –, mistério admirável entre todos. A alma traz gravada em si mesma a lei dos seus destinos. Aprender a soletrar os seus preceitos, aprender a decifrar esse enigma, eis a verdadeira ciência da vida. Cada farrapo arrancado ao céu da ignorância que a cobre, cada faísca que adquire do foco supremo, cada conquista sobre si mesma, sobre as suas paixões e os seus instintos egoístas permite-lhe uma alegria pura, uma satisfação íntima, tanto mais viva quanto maior for o trabalho executado.

Eis aí o céu prometido aos nossos esforços. O céu não está longe de nós, mas, sim, connosco. Felicidades íntimas ou remorsos pungentes, o homem traz, nas profundezas do ser, a própria grandeza ou a miséria consequente dos seus actos. As vozes harmoniosas ou severas que em si percebe são as intérpretes fiéis da grande lei, tanto mais potentes e imperiosas quanto mais elevado ele estiver na escala dos aperfeiçoamentos infinitos. A alma é um mundo em que se confundem ainda sombras e claridades, mundo cujo estudo atento nos faz cair de surpresa em surpresa. Nos seus recônditos todas as potências estão em germe, esperando a hora da fecundação para se desdobrarem em feixes de luz. À medida que ela se purifica, as suas percepções aumentam. Tudo o que nos encanta no seu estado presente, os dons do talento, os fulgores do génio, tudo isso nada é, comparado ao que um dia adquirirá, quando tiver atingido as supremas altitudes espirituais. Já possui imensos recursos ocultos, sentidos íntimos, variados e subtis, fontes de vivas impressões, mas o pesado e grosseiro invólucro embaraça-lhe quase sempre o exercício.

Somente algumas almas eleitas, destacadas por antecipação das coisas terrestres, depuradas pelo sacrifício, sentem as primícias desse mundo; todavia, não encontram palavras para descrever as sensações que as enlevam e os homens, na sua ignorância da verdadeira natureza da alma e das suas potências latentes, têm escarnecido disso que julgam ilusões e quimeras.

/...


LÉON DENIS, Depois da Morte, Parte Segunda / Os Grandes Problemas XII – O Alvo da Vida.
(imagem de contextualização: La Petite Esmeralda_1874, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

a pedra e o joio ~


O método de Kardec

Kardec nasceu no início do século XIX, numa fase de crescimento do processo cultural no mundo. Formou-se na cultura do século, sob a orientação de Pestalozzi, o mestre por excelência. Especializou-se em Pedagogia, que podemos chamar de Ciência da Cultura, e até aos cinquenta anos de idade exerceu intensas actividades pedagógicas, tornando-se o sucessor de Pestalozzi na Europa. Não se fez padre nem pastor, mas cientista e filósofo, na despretensão e na humildade de quem não procurava elevadas posições, mas aprimorar os seus conhecimentos. Adquiriu no estudo, nas actividades teóricas e na prática, o mais amplo conhecimento dos problemas culturais do seu tempo.

Vivendo em Paris, considerado então como o cérebro do mundo, impôs-se ao consenso geral como homem de elevada cultura, um intelectual por excelência. Colocado num momento fundamental da evolução terrena, viu e viveu o drama cultural da época. E só aos 50 anos de idade, maduro e culto, deparou com o problema crucial do tempo e procurou solucioná-lo em termos culturais. Esse problema resumia-se no seguinte: a cultura clássica, religiosa e filosófica, desabava ao impacto do desenvolvimento das Ciências, sem a menor capacidade para enfrentar o realismo científico e salvar os seus próprios valores fundamentais.

Formado na tradição cultural do Século XVIII, herdeiro de Francis BaconRené Descartes e Rousseau, compreendeu claramente que o problema do seu tempo repousava na questão do método. Os fenómenos espíritas se verificavam com intensidade, como uma espécie de reacção natural aos excessos do empirismo, no bom sentido do termo, que era a aplicação do método experimental a todo o conhecimento. A tradição espiritual rejeitava esses excessos, mas não dispunha de armas para combatê-los. Kardec resolveu aplicar o método experimental ao estudo dos fenómenos espíritas.

Logo aos primeiros resultados verificou que o  do problema estava no seguinte: o método experimental aplicava-se apenas à matéria, excluindo-se o espírito que era considerado como imaterial e portanto inverificável.

Mas se havia fenómenos espíritas era evidente que o espírito, manifestando-se na matéria, tornava-se acessível à pesquisa. Tudo dependia, pois, do método. Era necessário descobrir um método de investigação experimental dos fenómenos espíritas. Era claro que esse método não podia ser o mesmo aplicado à pesquisa dos fenómenos materiais, considerados como os únicos naturais. Mas por que os únicos? Porque as manifestações do espírito eram consideradas como sobrenaturais, regidas por leis divinas.

Já Descartes, no Século XVII, lutando contra o dogmatismo escolástico, mostrara a unidade de alma e corpo na manifestação do ser humano e advertira contra o perigo de confusão entre esses dois elementos constitutivos do homem. Kardec se sentia bem amparado na tradição metodológica e conseguiu provar que os fenómenos espíritas eram tão naturais como os fenómenos materiais. Ambos estavam na Natureza, espírito e matéria correspondiam a força e matéria, os dois elementos fundamentais de tudo quanto existe.

Daí a sua conclusão, até hoje não excedida, e confirmada na época pelas manifestações dos próprios Espíritos que o assistiam: a Ciência do Espírito correspondia às exigências da época. Mas era necessário desenvolvê-la segundo a orientação metodológica da Ciência da Matéria, pois essa orientação provara a sua eficiência. A questão era simples: na investigação dos problemas espirituais o método dedutivo teria de ser substituído pelo método indutivo. Mas essa questão tornava-se complexa porque a tradição espiritualista, cristalizada nos dogmas das igrejas, repelia como herética e profana a aplicação da pesquisa científica aos problemas espirituais.

Kardec enfrentou a questão com extraordinária coragem. Enfrentou sozinho, sem o apoio de nenhum poder terreno, todo o poderio religioso da época. Teve então de colocar-se entre os fogos cruzados da Religião, da Filosofia e da Ciência. Os teólogos o atacavam na defesa dos seus dogmas, a Filosofia o considerava um intruso e a Ciência condenava-o como um ressuscitador de superstições que ela já havia praticamente destruído. A vitória de Kardec definiu-se bem cedo. A Ciência Psíquica inglesa, a Parapsicologia alemã e a Metapsíquica francesa nasceram da sua coragem e das suas pesquisas. Mais de cem anos depois, Rhine e Mac Dougall fundariam nos Estados Unidos a Parapsicologia moderna, seguindo a mesma orientação metodológica de Kardec. E a sua vitória confirmou-se plenamente nos nossos dias, quando as pesquisas parapsicológicas endossaram as conclusões de Kardec e logo mais a própria Física e a Biologia fizeram o mesmo. A palavra paranormal, criada por Frederic Myers e hoje adoptada na Parapsicologia, substituiu em definitivo, no campo científico, a classificação errónea de sobrenatural dada aos fenómenos espirituais.

/…


José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. O método de Kardec, 8º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)