sexta-feira, 30 de abril de 2021

Corpo fluídico | agénere ou aparição tangível ~


Capítulo Terceiro 

ROUSTAING E OS SEUS ADMIRADORES ~ 

O roustainguismo tem pequena quantidade de adeptos no Brasil, não obstante ser a Federação Espírita Brasileira o principal núcleo de irradiação dessa doutrina. Eis o paradoxo, pois essa instituição é também o maior núcleo editorial das obras kardequianas e das subsidiárias do Espiritismo. Entretanto, por quê tanto interesse na divulgação das obras dessa doutrina? Em que se baseiam os seus adeptos para entendê-las como obras espíritas? Quais são os principais argumentos de que se utilizam para justificar essa atitude? Quais são os pontos em comum entre Allan Kardec e Jean-Baptiste Roustaing e como se dá a ligação dos dois, segundo o pensamento dos roustainguistas? Em que se apoiam para afirmar com tanta convicção que o roustainguismo é necessário ao Espiritismo? 

Somente um estudo mais ou menos amplo permite que se responda a essas indagações. Várias são as obras, editadas em sua grande maioria pela Federação Espírita Brasileira, que pretendem comprovar os possíveis laços entre as duas doutrinas, embora os seus autores soubessem da posição contrária de Kardec a Roustaing. Esse factor, porém, não os impediu de escrever e pensar pela cartilha roustainguista. Mas é a biobibliografia intitulada "Allan Kardec", por incrível que pareça, que mais permite obter uma ideia dos principais pontos em que se apoiam os roustainguistas para prosseguir na sua crença. Em três volumes, "Allan Kardec" foi editada pela Federação Espírita Brasileira e os seus autores são Zêus Wantuil e Francisco Thiesen, ambos ligados à direcção da Federação. A obra apareceu com a pretensão de ser o mais profundo trabalho de pesquisa sobre o codificador do Espiritismo. Entretanto, no ardor da pesquisa e das interpretações, os autores não puderam evitar que as suas convicções pessoais viessem a influir nas conclusões. Afirmaram, inclusive, que Roustaing é necessário ao Espiritismo. Assim, pois, "Allan Kardec" é, ao mesmo tempo, o melhor trabalho que já se fez sobre a vida e a obra do codificador e o mais duvidoso em matéria de interpretação do pensamento kardequiano. 

"Allan Kardec" tem duas partes distintas: a biobibliografia e os ensaios de interpretação. Para a primeira fora preciso apresentar documentos, caso contrário ficaria sem validade; a segunda navega nas ondas do pensamento dos autores. Entretanto, mesmo para ela, há momentos em que a gravidade do assunto pede provas. É o que acontece quando se pretende afirmar que uma doutrina integra a outra. Mas, no caso de Roustaing, os autores de "Allan Kardec" não se preocuparam com isso. Valeram-se, apenas, do selo editorial pelo qual a obra foi lançada e da posição que ocupavam na Federação, na esperança de que estes factores pudessem pesar decisivamente e – até! – definitivamente na mente dos leitores. E não deixaram de ter razão, pelo menos quanto à parcela daqueles que tudo lêem sem nada comparar, analisar ou criticar. 

A análise dessa obra, especificamente nos aspectos em que toca no roustainguismo, permitirá, pois, responder às indagações acima. 

ABRINDO CAMINHO 

Quando se pretende atingir um destino, tem-se dois caminhos: a estrada e o atalho. Pode ocorrer que o atalho seja até mais longo que a estrada. Isso, porém, não terá a menor importância se ficar provado que a estrada não leva ao destino que se "deseja"; vai-se pelo atalho. Fundamental é chegar ao destino. Pode ocorrer, também, que o atalho obrigue à tomada de iniciativas perigosas em determinados trechos, desvios aqui, saltos ali. Ainda assim, vai-se pelo atalho se o destino da estrada, comprovadamente, não for o do desejo. 

Eis o que ocorre com a obra "Allan Kardec", a partir do seu segundo volume. Ao primeiro volume reservam-se todos os elogios para o trabalho, pois ele se resume ao seu próprio subtítulo: meticulosa pesquisa biobibliográfica e é desenvolvido de maneira inteligente. Já o segundo e terceiro – pesquisa biobibliográfica e ensaios de interpretação – tomam rumos muito discutíveis. O primeiro é a estrada; os outros dois são o atalho. 

Já na introdução do segundo volume, os autores assumem certa posição que, à primeira vista, não teria maiores consequências se não se descobrissem mais tarde as suas intenções. É com relação à condição humana do codificador do Espiritismo. Posição, aliás, que é a de todos os espíritas estudiosos, mas que na obra "Allan Kardec" aparece com destino diferente: "Operando (…) no campo vasto da Codificação do Espiritismo, Allan Kardec sofria as compreensíveis limitações que a condição humana, segundo leis invioláveis, impõem àqueles que vestem a indumentária carnal". E mais: "Com serenidade reconhecemos que no Movimento Espírita hodierno, no País e além-fronteiras, não faltam os afeitos a afirmar que a obra kardequiana está ultrapassada, tanto quanto sobram os não menos temerários que pretendem conferir à figura do Codificador o dom da infalibilidade, nas questões em geral – não apenas nas que se vinculam à Fé, propriamente dita – levando os adeptos ao absurdo de admitir na pessoa de Allan Kardec uma dupla condição falsa de criatura imune ao erro e às imperfeições dos seres terrenos, relativos, condição que ele por várias vezes verberou, francamente, quando na vida física". 

Há dois pontos, aí, a serem destacados: primeiro, a afirmativa de que Kardec "sofria as compreensíveis limitações" do corpo físico. Numa palavra: poderia cometer erros. Sem dúvida, uma possibilidade real. Segundo, a informação de que há adeptos que, a despeito de tudo, consideram que Kardec fora infalível. Mas seria somente esta a intenção dos autores? Não é de se crer, porque mais adiante eles afirmam: "Foi a Roustaing, pois, que o Alto conferiu, na Equipe da Codificação, a organização do trabalho da fé". E o fazem sabedores de que Kardec condenou Roustaing e a sua obra: primeiro, demonstrando que o corpo fluídico de Jesus era a base em que assentava a obra "Os Quatro Evangelhos"; depois, afirmando que Jesus jamais tivera um corpo fluídico. 

É preciso observar que o codificador não considerou Roustaing como membro da "equipe da codificação". Sendo ele chefe no plano dos encarnados dessa equipe, precisaria estar muito enganado para não o reconhecer como colaborador. Não só não o considerou como condenou a sua obra! Surge, pois um impasse: ao mesmo tempo em que Kardec fecha as portas a Roustaing e, os seus biógrafos o consideram como membro da equipe da codificação. Um impasse que não apresenta outra saída senão a de que, no pensamento dos biógrafos, Kardec cometera um erro (que teria de ser considerado, pois, de imensas proporções) com relação a Roustaing e à sua obra. E, convenhamos, para convencer o leitor disto nada melhor do que dar ênfase à falibilidade humana de Kardec… 

Existe ainda, em favor desta tese, o facto de que, muito raramente, a falibilidade de Kardec aparece nas discussões. A sua posição (que ele mesmo assumiu) perante a Doutrina Espírita é tão nítida que até os adeptos iniciantes ou pouco estudiosos vêem eliminada qualquer dúvida relativa à condição humana (portanto, falível) dele. Em qualquer das obras da codificação essa posição aparece com realce (chega a ser com ênfase até), de tal modo que o estudante mais desinteressado não se pode furtar ao conhecimento do facto. Veja-se, por exemplo, este trecho recolhido de "O Livro dos Espíritos", introdução: "Pode-se ter muito espírito e até mesmo muita instrução e, não se ter bom senso; ora, o primeiro indício de falta de senso é a crença na própria infabilidade". Kardec assim fala referindo-se aos cépticos e quem diz dos outros (por consequência) diz de si mesmo. Ele separava a sua participação pessoal, pois, da dos Espíritos, sabedor de que esta participação deveria limitar-se a certos princípios. E dava maior destaque à opinião dos Espíritos quando estes concordavam entre si: "Apesar da parte que cabe à actividade humana na elaboração desta doutrina – diz em "A Génese" – a sua iniciativa pertence aos Espíritos... " Não é possível, portanto, confundir Kardec com alguém que pretendesse ser infalível, daí a raridade com que o assunto surge à discussão. 

Assim, não se compreende bem a finalidade com que os autores trazem a questão à baila com tanto ênfase, senão que isso favoreça interesses ali ainda não revelados. 

Veja-se, também, esta outra discussão em torno da liberdade de pensamento: "A liberdade de pensamento que o Espiritismo sempre reclamou para os seus adeptos… Kardec a entendia dentro do critério da reciprocidade. E, coisa estranha, às vezes se encontram espíritas que fazem restrições aos próprios companheiros de trabalho, enfatizam o seu direito à liberdade de pensar, sobre determinados pontos doutrinários, de forma diferente de outrem, mas não admitem, em contrapartida, o direito de outrem defender ideias diversas das deles, sobre os mesmos pontos". 

Assim como a questão da falibilidade se canaliza para um possível erro do codificador em relação a Roustaing, esse ponto da liberdade de pensamento leva aos opositores de Roustaing, uma vez que eles têm investido de forma segura contra os roustainguistas e as instituições que o divulgam, das quais se destaca a FEB. Apenas isto justificaria também o ênfase aí utilizado. Se assim for (e parece que é), a questão deveria ser analisada sob um outro ângulo, também: a quem atingem e de que forma o fazem os anti-roustainguistas e, se é verdade que eles não admitem "o direito de outrem defender ideias diversas das deles". Antes, porém, que estas respostas sejam dadas faz-se necessário arguir dos motivos reais que estimulam os anti-roustainguistas a porfiarem pela causa. 

Uma coisa muito clara é esta: a discussão em torno da velha tese do corpo fluídico de Jesus nos meios espíritas só teve início depois do lançamento de "Os Quatro Evangelhos", de Roustaing. E mesmo assim porque a obra apareceu como elemento integrante da Doutrina Espírita. Em vista disso, a primeira providência de Kardec foi colocar a questão de molho. Depois, condenou o Cristo agénere. Logo, a obra de Roustaing ficou sem base e perdeu a razão de ser. Esta é uma das principais causas que motivam os espíritas a discordarem dos seguidores de Roustaing. Mas não é a única. Outra causa está no facto de que "Os Quatro Evangelhos" foi levado a exame crítico e não resistiu. Uma coisa, pois, se alia à outra: a condenação de Kardec e a constatação de que a condenação era fundamentada. Isto significa que Roustaing não faz parte da codificação. 

A questão, porém, não pára aí. É curioso verificar que depois de praticamente desaparecido na França e outros países europeus, o roustainguismo apareceu no Brasil e tomou impulso. Muitos roustainguistas vêem neste facto algo semelhante com o Espiritismo, que aqui também tomou grande impulso. Há, porém, diferenças entre um e o outro. Por exemplo, quando o Espiritismo veio para o Brasil estava ainda bastante forte na França. Aqui teve continuidade no seu desenvolvimento e só mais tarde, já no presente século, foi que o Espiritismo perdeu terreno naquele país. Mas o roustainguismo não; quando chegou ao Brasil tinha sido já condenado e relegado ao esquecimento na França e em toda Europa por homens como Léon DenisGabriel DelanneCamile FlammarionErnesto Bozzano, sem citar Kardec, evidentemente. Flammarion, por exemplo, dissera (i) : "Se Kardec é no espaço um astro de infinito esplendor, que eu acompanho como satélite, ainda e sempre, onde resplende o autor da "Revelação das Revelações"? Bozzano: "O caso de J.-B. Roustaing, sob o título absoluto de "A Revelação das Revelações" é, portanto, um facto "dogmático" feliz e universalmente liquidado''. Já Denis afirmara: "Quanto às obras de Roustaing devo dizer-vos que elas não gozam de nenhum crédito no nosso país. Nelas a imaginação teve um papel bem mais preponderante que a mediunidade. Ninguém já pensa nelas, entre nós, há muito tempo". (ii) 

Para Herculano Pires (iii), "o roustainguismo chegou ao Brasil num momento crítico, quando a nossa cultura estava sendo abalada por várias infiltrações europeias. Entre elas, o Espiritismo, que chegara da França e empolgara alguns espíritos cultos na segunda metade do século passado. O roustainguismo se apresentava como integrado no Espiritismo e tocava de perto a sensibilidade mística de alguns ex-católicos. A França era então o centro da civilização e Paris o cérebro do mundo''. O roustainguismo foi adoptado por algumas instituições e, mais tarde, pela FEB, que o divulga até aos nossos dias. Esse facto, ou seja, uma instituição que adquiriu respeito e se arroga do título de "Casa Mater do Espiritismo no Brasil", fez e faz com que os espíritas se lancem contra ela, de várias partes, porque entendem que ela está contra Kardec, contrariando até a sua posição, para dar cobertura a uma doutrina que fere a própria razão. O que os espíritas não entendem é como pode a FEB agir de tal modo. "O prestígio da FEB – é ainda Herculano quem diz – e a sua insistência na divulgação e sustentação do roustainguismo dá certo vigor a este, particularmente no centro e no norte do país". Então, perguntam os espíritas: se Kardec condenou Roustaing, sob que argumento a FEB o defende? E continuam sem entender nada porque é que a FEB não abre mão do seu direito de divulgar Roustaing… 

Na sua gritaria, não nos parece que os espíritas contrariam o direito de livre pensar dos roustainguistas. Aliás, estes pensam livremente desde a elaboração e publicação de "Os Quatro Evangelhos". A coisa toda se prende mais ou menos a isto: Roustaing é, como disse Herculano Pires, "o cavalo de Tróia do Espiritismo"; é um cancro no movimento e dói, dói muito ver a principal instituição espírita do país defendendo uma tese que o Codificador condenou e a condenam grande e expressiva parcela do movimento espírita. Esta é, ademais, uma defesa anti-democrática, autoritária, promovida por uma Casa que reúne as opiniões do movimento espírita nacional mas não lhe dá ouvidos senão naquilo que lhe convém! 

/… 
(i) Conf. o livro "Simulador, o Cristo?", de Mariano Rango d'Atagona, 1.ª edião, 1942, reportando-se a uma comunicação mediúnica recebida do Espírito que, quando encarnado, se opusera a Roustaing. 
(ii) Citadas, respectivamente, em "Simulador, o Cristo?", de d'Aragona, e "Máscaras Abaixo!", de Ricardo Machado. 
(iii) "O Verbo e a Carne", 1.ª edição, 1972, página 56. 


Wilson GarciaO Corpo Fluídico, Capítulo Terceiro – ROUSTAING E OS SEUS ADMIRADORES, ABRINDO CAMINHO, 8º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Pintura de Josefina Robirosa)

domingo, 18 de abril de 2021

Inquietações Primaveris ~


A Heróica Pancada ~ 

Preparar para a vida é educar para a morte. Porque a vida é uma espera constante da morte. Todos sabemos que temos de morrer e que a morte pode sobrevir a qualquer instante. Essa certeza absoluta e irrevogável não pode ser colocada à margem da vida. Quem se atreve a dizer: “A morte não importa, o que importa é a vida”, não sabe o que diz, fala com insensatez. Mas também os que só pensam na morte e se descuidam da vida são insensatos. A nossa morte é o nosso resgate da matéria. Não somos materiais, mas espirituais. Estamos na matéria porque ela é o campo em que fomos plantados, como sementes devem germinar, crescer, florir e frutificar. Quando cumprirmos toda a tarefa, tenhamos a idade que tivermos, a morte vem nos buscar para nos reintegrar na condição espiritual. Basta esse facto, que é incontestável, para nos mostrar que a nossa vida depende da nossa morte. Cada pensamento, cada emoção, cada gesto e cada passo na vida nos aproximam da morte. E como não sabemos qual é a extensão de tempo que nos foi marcado ou concedido para nos prepararmos para a morte, convém que iniciemos o quanto antes a nossa preparação, através de uma educação segundo o conceito de existência. Quanto antes nos prepararmos para a vida em termos de educação para a morte, mais fácil e benigna se tornará a nossa morte, a menos que pesem sobre ela compromissos agravantes de um passado criminoso. 

A preparação para a vida começa na infância e os pais são responsáveis por ela. A criança é o ser que se projectou na existência, disparado como um projéctil que deve trespassá-la do princípio ao fim, furando a barreira da morte para atingir a transcendência. Vem ao mundo com a sua maleta invisível, carregada das suas aquisições anteriores em vidas sucessivas. Muitas vezes a maleta é tão pesada que os pais quase não suportam carregá-la e temem abri-la. Mas há sempre ajudantes invisíveis que tornam a tarefa mais fácil do que parece à primeira impressão. Seja como for, o hóspede chegou para ficar, pois pertence à família e é geralmente no seio dela que tem os maiores compromissos, sempre recíprocos e inadiáveis, intransferíveis. Na sua bagagem, incorporada ao seu organismo físico e psíquico, pode haver membros incompletos, estragados, desgastados, não se sabe onde nem quando, psiquismo descontrolado, mente destrambelhada e muitas coisas mais que a convivência irá revelando. A carga mais pesada é quase sempre o ódio, aversão ou antipatia a elementos da família, que se tornam às vezes intoleráveis. Cabe à família lutar para corrigir todos esses desarranjos, sem nunca desamparar "o orfãozinho" que, como ensinou Allan Kardec, vem ao mundo vestido com a roupagem da inocência

A criança revela toda a sua bagagem enquanto não atingir a fase de amadurecimento necessário para se comunicar com facilidade. No período de amadurecimento exerce as suas funções básicas de adaptação, de integração na vida e no meio, que propiciam aos familiares, particularmente aos pais ou aos que os substituem, a introjecção de estímulos renovadores no seu inconsciente, por meio de atitudes e exemplos. O instinto de imitação da criança favorece e facilita o trabalho dos pais e dos familiares e, eles muito poderão fazer em seu benefício, desde que mantenham no lar um ambiente de amor e compreensão. A criança é a árvore – dizia Tagore –, alimenta-se do meio em que se desenvolve, absorvendo os seus elementos e produzindo a fotossíntese espiritual que beneficiará a todos os que a cercam de cuidados e atenção. O exemplo é, assim, o meio mais eficiente de renová-la, desligando a sua mente do passado, para que ela inicie uma vida nova. A hereditariedade genética funciona paralelamente à lei de afinidade espiritual. Disso resulta a confusão dos materialistas, que atribuem todos os factores da herança exclusivamente ao gene, acrescido das influências ambientais e educacionais. O caso de gémeos idênticos, que levou o Prof. Ian Stevenson à pesquisa da reencarnação, deviam ser suficientes para mostrar que a pangenética materialista é muitas vezes uma vítima do preconceito e da precipitação, levando os cientistas à confusão de corpo e espírito, contra a qual Descartes já os advertiu no início da era científica. 

Embora a influência genética seja dominante na formação das características de famílias e das raças ou sub-raças, a verdade é que o problema das padronizações orgânicas, embora genialmente intuído por Claude Bernard, nos primórdios da Medicina Moderna, só agora está a ser revelado nos seus aspectos surpreendentes pelas pesquisas científicas nesse campo específico. As experiências com transplantes de membros em embriões de ratos mostraram que uma perna traseira do embrião, transplantada para o lugar de um braço, desenvolve-se, sob a influência do centro padronizador local, como braço. A formação total do organismo é dirigida pelo corpo bioplásmico, provado e pesquisado pelos cientistas soviéticos da Universidade de Kirov, mas os centros energéticos desse corpo distribuem-se em sub-centros locais que operam no processo genésico de acordo com as funções específicas dos órgãos. Por outro lado, as pesquisas parapsicológicas revelaram a poderosa influência da mente – já há muito aceite pelo povo e suspeita por diversos especialistas – na formação e desenvolvimento dos organismos humanos. 

A misteriosa emanação de ectoplasma do corpo dos médiuns, nas experiências metapsíquicas de Richet e outros e, a sua posterior retracção, na reabsorção pelo corpo, provada experimentalmente nas pesquisas de Von Notzing e da Madame Bisson, na Alemanha, confirmaram a existência do modelo energético do corpo suspeitado por Claude Bernard. Nas pesquisas recentes de Kirov e de outras universidades americanas e europeias ficou demonstrado que o ectoplasma se constitui das energias do plasma físico de que, por sua vez, é formado o referido corpo. Essas e outras pesquisas e experiências universitárias oferecem base científica à intuição de Ubaldi, que viu nos fenómenos de materialização de espíritos em sessões experimentais mediúnicas o desenvolvimento de uma nova genética humana para o futuro, na qual as mulheres serão libertas do pesado encargo da gestação e do parto da herança animal. Gustave Geley e Eugène Osty, continuadores de Richet nas pesquisas metapsíquicas, verificaram que a ocorrência de emanações bioplásmicas dos médiuns é mais constante do que se supunha no século passado, verificando-se em reuniões comuns de manifestações espíritas. O mistério das formações de agéneres, que Kardec chamou de aparições tangíveis, em que pessoas mortas se apresentam a amigos e parentes como ainda vivas no corpo, capazes de todos os actos de uma pessoa comum, desfazem o mistério do ectoplasma de Richet e derrubam o dogma da ressurreição carnal de Jesus, dando razão ao Apóstolo Paulo, que ensina na I Epístola aos Coríntios: “O corpo espiritual é o corpo da ressurreição.” É significativo que tenha cabido aos cientistas soviéticos, na Universidade de Kirov, provar através de pesquisas tecnológicas a realidade dessas ocorrências. A reacção ideológica do poder soviético não pode cientificamente anular os resultados dessas pesquisas nem escamotear a qualificação científica dos pesquisadores. 

Diante desses dados, uma pessoa normal compreende que o problema da sobrevivência do homem após a morte e o da sua volta à existência através da reencarnação não são resquícios de um passado supersticioso ou de religiosismo ilógico, portanto fanático, mas são, pelo contrário, problemas científicos do nosso tempo. Não se trata de crer nisto ou naquilo, de se pertencer a esta ou àquela religião, mas de se equacionar a questão espiritual em termos racionais para se poder chegar a uma conclusão verdadeira. Já não vivemos no tempo das religiões de tradição e nem mesmo podemos aceitar, actualmente, o misticismo irracional, ignorante, alienante e piegas salvacionista. Essas religiões que nos prometem a salvação em termos de dependência aos seus princípios contraditórios e absurdos, só subsistem neste século graças à ignorância da maioria, das massas incultas e do prestígio social, político e económico que conseguiram num passado bárbaro da Terra. Por isso mesmo elas agora se esfarinham aos nossos olhos em milhares de seitas ingénuas pastoradas por criaturas audaciosas e broncas. Uma pessoa medianamente instruída não pode aceitar as verdades absurdas, por mais piedosas que sejam, dessas religiões de salvação. Mas a verdade demonstrada pelas investigações da Ciência, no plano mundial, nos maiores centros universitários da Terra, torna-se indispensável à nossa orientação na vida, em busca de uma transcendência racional, que não ressalta de velhas escrituras sagradas das civilizações agrárias e pastoris, mas da evidência das conquistas do conhecimento na actualidade. 

/… 


Herculano Pires, José – Educação para a Morte, A Heróica Pancada (1 de 2), 10º fragmento desta obra 
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

sexta-feira, 2 de abril de 2021

o céu estrelado ~


Alma humana… 

Um livro grandioso, dissemos, está aberto aos nossos olhos e, todo o observador paciente pode ler nele a palavra do enigma, o segredo da vida eterna. 

Aí se vê que uma Vontade dispôs a ordem majestosa em que se agitam todos os destinos, se movem todas as existências, palpitam todos os corações. 

A Alma! Aprende primeiro a suprema lição que desce dos espaços sobre as frontes apreensivas. O Sol está escondido no horizonte; os seus alvores de púrpura tingem ainda o céu; a luz serena indica que, mais além, um astro se encobriu aos nossos olhos. A noite estende acima das nossas cabeças o seu zimbório constelado de estrelas. 

O nosso pensamento se recolhe e procura o segredo das coisas. Voltemo-nos para o Oriente. A Via-Láctea expande qual imensa fita, as suas miríades de estrelas, tão aconchegadas, tão longínquas, que parecem formar uma contínua massa. Por toda a parte, à medida que a noite se torna mais densa, outras estrelas aparecem, outros planetas se acendem, qual se fossem lâmpadas suspensas no santuário divino. Através das profundezas insondáveis, esses mundos permutam os seus raios de prata; impressionam-nos, à distância e, nos falam uma linguagem muda.

Eles não brilham todos com o mesmo fulgor: a potente Sírius não se pode comparar à longínqua Capela. As suas vibrações gastaram séculos a chegar até ao nosso olhar e, cada um dos seus raios vale por um cântico, uma verdadeira melodia de luz, uma voz penetrante. Esses cânticos se resumem assim: “Nós também somos focos de vida, de sofrimento, de evolução. Almas, aos milhares, cumprem, em nós, destinos semelhantes aos vossos.” 

Entretanto, não têm todos a mesma linguagem, porque uns são moradas de paz e de felicidade e, os outros, mundos de luta, de expiação, de reparação pela dor. Uns parecem dizer: Eu te conheci, Alma humana, Alma terrestre; eu te conheci e hei de te tornar a ver! Eu te aconcheguei no meu colo outrora e, tu voltarás a mim. Eu te espero, para, por tua vez, guiares os seres que se agitam na minha superfície! 

E depois, mais longe ainda, essa estrela que parece perdida no fundo dos abismos do céu e cuja luz trémula é apenas perceptível, essa estrela nos dirá: Eu sei que tu passarás pelas terras que formam o meu cortejo e, que eu inundo com os meus raios; eu sei que tu aí sofrerás e te tornarás melhor. Apressa a tua ascensão. Eu serei e sou já para contigo uma verdadeira amiga, porque até mim chegou o teu apelo, a tua interrogação, a tua prece a Deus. 

Assim, todas as estrelas nos cantam o seu poema de vida e amor, todas nos fazem ouvir uma evocação poderosa do passado ou do futuro. Elas são as “moradas” do nosso Pai, os estádios, os marcos soberbos das estrelas do Infinito e, nós aí passaremos, aí viveremos todos para entrar um dia na luz eterna e divina. 

Espaços e mundos! Que maravilhas nos reservais? Imensidades siderais, profundezas sem limites, dais a impressão da majestade divina. Em vós, por toda a parte e sempre, está a harmonia, o esplendor, a beleza! Diante de vós, todos os orgulhos caem, todas as vanglórias se desvanecem. Aqui, percorrendo as suas órbitas imensas, estão astros de fogo perto dos quais o nosso Sol não é mais que um simples facho. Cada um deles arrasta no seu séquito um imponente cortejo de esferas que são outros tantos teatros da evolução. Ali e, assim na Terra, os seres sensíveis vivem, amam, choram. As suas provações e as suas lutas comuns criam entre si laços de afecto que crescerão pouco a pouco. E é assim que as Almas começam a sentir os primeiros eflúvios desse amor que Deus quer dar a conhecer a todos. Mais longe, no insondável abismo, movem-se mundos maravilhosos, habitados por Almas puras, que conheceram o sofrimento, o sacrifício e, chegaram aos cimos da perfeição; Almas que contemplam Deus na sua glória e, vão, sem nunca se cansar, de astro em astro, de sistema em sistema, levar os apelos divinos. 

Todas essas estrelas parecem sorrir, qual se fossem amigas esquecidas. Os seus mistérios nos atraem. Sentimos que é a herança que Deus nos reserva. Mais tarde, nos séculos futuros, conheceremos essas maravilhas que o nosso pensamento apenas toca. Percorreremos esse Infinito que a palavra não pode descrever numa linguagem limitada. 

Há, sem dúvida, nessa ascensão, degraus que não podemos contar tão numerosos são; mas os nossos guias nos ajudarão a subi-los, ensinando-nos a soletrar as letras de ouro e de fogo, a divina linguagem da luz e do amor. Então o tempo já não terá medida para nós. As distâncias já não existirão. Já não pensaremos nos caminhos obscuros, tortuosos, escarpados, que seguimos no passado e, aspiraremos às alegrias serenas dos seres que nos tiverem precedido e que traçam, por meio de jorros de luz, o nosso caminho sem fim. Os mundos em que houvermos vivido terão passado; já não serão mais que poeira e detritos; mas nós guardaremos a deliciosa impressão das venturas colhidas nas suas superfícies, das efusões do coração que começaram a unir-nos a outras almas irmãs. Conservaremos a muito cara e dolorosa lembrança dos males partilhados e, já não seremos mais separados daqueles que tivermos amado, porque os laços são entre as Almas os mesmos que entre as estrelas. Através dos séculos e dos lugares celestes, subiremos juntos para Deus, o grande foco de amor que atrai todas as criaturas! 

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LÉON DENIS, O Grande Enigma, Segunda parte, O Livro da Natureza (1º fragmento) X – O céu estrelado. 
(imagem de contextualização: Head of Divine Vengeance, pintura de Pierre-Paul Prud' hon