sexta-feira, 30 de abril de 2021

Corpo fluídico | agénere ou aparição tangível ~


Capítulo Terceiro 

ROUSTAING E OS SEUS ADMIRADORES ~ 

O roustainguismo tem pequena quantidade de adeptos no Brasil, não obstante ser a Federação Espírita Brasileira o principal núcleo de irradiação dessa doutrina. Eis o paradoxo, pois essa instituição é também o maior núcleo editorial das obras kardequianas e das subsidiárias do Espiritismo. Entretanto, por quê tanto interesse na divulgação das obras dessa doutrina? Em que se baseiam os seus adeptos para entendê-las como obras espíritas? Quais são os principais argumentos de que se utilizam para justificar essa atitude? Quais são os pontos em comum entre Allan Kardec e Jean-Baptiste Roustaing e como se dá a ligação dos dois, segundo o pensamento dos roustainguistas? Em que se apoiam para afirmar com tanta convicção que o roustainguismo é necessário ao Espiritismo? 

Somente um estudo mais ou menos amplo permite que se responda a essas indagações. Várias são as obras, editadas em sua grande maioria pela Federação Espírita Brasileira, que pretendem comprovar os possíveis laços entre as duas doutrinas, embora os seus autores soubessem da posição contrária de Kardec a Roustaing. Esse factor, porém, não os impediu de escrever e pensar pela cartilha roustainguista. Mas é a biobibliografia intitulada "Allan Kardec", por incrível que pareça, que mais permite obter uma ideia dos principais pontos em que se apoiam os roustainguistas para prosseguir na sua crença. Em três volumes, "Allan Kardec" foi editada pela Federação Espírita Brasileira e os seus autores são Zêus Wantuil e Francisco Thiesen, ambos ligados à direcção da Federação. A obra apareceu com a pretensão de ser o mais profundo trabalho de pesquisa sobre o codificador do Espiritismo. Entretanto, no ardor da pesquisa e das interpretações, os autores não puderam evitar que as suas convicções pessoais viessem a influir nas conclusões. Afirmaram, inclusive, que Roustaing é necessário ao Espiritismo. Assim, pois, "Allan Kardec" é, ao mesmo tempo, o melhor trabalho que já se fez sobre a vida e a obra do codificador e o mais duvidoso em matéria de interpretação do pensamento kardequiano. 

"Allan Kardec" tem duas partes distintas: a biobibliografia e os ensaios de interpretação. Para a primeira fora preciso apresentar documentos, caso contrário ficaria sem validade; a segunda navega nas ondas do pensamento dos autores. Entretanto, mesmo para ela, há momentos em que a gravidade do assunto pede provas. É o que acontece quando se pretende afirmar que uma doutrina integra a outra. Mas, no caso de Roustaing, os autores de "Allan Kardec" não se preocuparam com isso. Valeram-se, apenas, do selo editorial pelo qual a obra foi lançada e da posição que ocupavam na Federação, na esperança de que estes factores pudessem pesar decisivamente e – até! – definitivamente na mente dos leitores. E não deixaram de ter razão, pelo menos quanto à parcela daqueles que tudo lêem sem nada comparar, analisar ou criticar. 

A análise dessa obra, especificamente nos aspectos em que toca no roustainguismo, permitirá, pois, responder às indagações acima. 

ABRINDO CAMINHO 

Quando se pretende atingir um destino, tem-se dois caminhos: a estrada e o atalho. Pode ocorrer que o atalho seja até mais longo que a estrada. Isso, porém, não terá a menor importância se ficar provado que a estrada não leva ao destino que se "deseja"; vai-se pelo atalho. Fundamental é chegar ao destino. Pode ocorrer, também, que o atalho obrigue à tomada de iniciativas perigosas em determinados trechos, desvios aqui, saltos ali. Ainda assim, vai-se pelo atalho se o destino da estrada, comprovadamente, não for o do desejo. 

Eis o que ocorre com a obra "Allan Kardec", a partir do seu segundo volume. Ao primeiro volume reservam-se todos os elogios para o trabalho, pois ele se resume ao seu próprio subtítulo: meticulosa pesquisa biobibliográfica e é desenvolvido de maneira inteligente. Já o segundo e terceiro – pesquisa biobibliográfica e ensaios de interpretação – tomam rumos muito discutíveis. O primeiro é a estrada; os outros dois são o atalho. 

Já na introdução do segundo volume, os autores assumem certa posição que, à primeira vista, não teria maiores consequências se não se descobrissem mais tarde as suas intenções. É com relação à condição humana do codificador do Espiritismo. Posição, aliás, que é a de todos os espíritas estudiosos, mas que na obra "Allan Kardec" aparece com destino diferente: "Operando (…) no campo vasto da Codificação do Espiritismo, Allan Kardec sofria as compreensíveis limitações que a condição humana, segundo leis invioláveis, impõem àqueles que vestem a indumentária carnal". E mais: "Com serenidade reconhecemos que no Movimento Espírita hodierno, no País e além-fronteiras, não faltam os afeitos a afirmar que a obra kardequiana está ultrapassada, tanto quanto sobram os não menos temerários que pretendem conferir à figura do Codificador o dom da infalibilidade, nas questões em geral – não apenas nas que se vinculam à Fé, propriamente dita – levando os adeptos ao absurdo de admitir na pessoa de Allan Kardec uma dupla condição falsa de criatura imune ao erro e às imperfeições dos seres terrenos, relativos, condição que ele por várias vezes verberou, francamente, quando na vida física". 

Há dois pontos, aí, a serem destacados: primeiro, a afirmativa de que Kardec "sofria as compreensíveis limitações" do corpo físico. Numa palavra: poderia cometer erros. Sem dúvida, uma possibilidade real. Segundo, a informação de que há adeptos que, a despeito de tudo, consideram que Kardec fora infalível. Mas seria somente esta a intenção dos autores? Não é de se crer, porque mais adiante eles afirmam: "Foi a Roustaing, pois, que o Alto conferiu, na Equipe da Codificação, a organização do trabalho da fé". E o fazem sabedores de que Kardec condenou Roustaing e a sua obra: primeiro, demonstrando que o corpo fluídico de Jesus era a base em que assentava a obra "Os Quatro Evangelhos"; depois, afirmando que Jesus jamais tivera um corpo fluídico. 

É preciso observar que o codificador não considerou Roustaing como membro da "equipe da codificação". Sendo ele chefe no plano dos encarnados dessa equipe, precisaria estar muito enganado para não o reconhecer como colaborador. Não só não o considerou como condenou a sua obra! Surge, pois um impasse: ao mesmo tempo em que Kardec fecha as portas a Roustaing e, os seus biógrafos o consideram como membro da equipe da codificação. Um impasse que não apresenta outra saída senão a de que, no pensamento dos biógrafos, Kardec cometera um erro (que teria de ser considerado, pois, de imensas proporções) com relação a Roustaing e à sua obra. E, convenhamos, para convencer o leitor disto nada melhor do que dar ênfase à falibilidade humana de Kardec… 

Existe ainda, em favor desta tese, o facto de que, muito raramente, a falibilidade de Kardec aparece nas discussões. A sua posição (que ele mesmo assumiu) perante a Doutrina Espírita é tão nítida que até os adeptos iniciantes ou pouco estudiosos vêem eliminada qualquer dúvida relativa à condição humana (portanto, falível) dele. Em qualquer das obras da codificação essa posição aparece com realce (chega a ser com ênfase até), de tal modo que o estudante mais desinteressado não se pode furtar ao conhecimento do facto. Veja-se, por exemplo, este trecho recolhido de "O Livro dos Espíritos", introdução: "Pode-se ter muito espírito e até mesmo muita instrução e, não se ter bom senso; ora, o primeiro indício de falta de senso é a crença na própria infabilidade". Kardec assim fala referindo-se aos cépticos e quem diz dos outros (por consequência) diz de si mesmo. Ele separava a sua participação pessoal, pois, da dos Espíritos, sabedor de que esta participação deveria limitar-se a certos princípios. E dava maior destaque à opinião dos Espíritos quando estes concordavam entre si: "Apesar da parte que cabe à actividade humana na elaboração desta doutrina – diz em "A Génese" – a sua iniciativa pertence aos Espíritos... " Não é possível, portanto, confundir Kardec com alguém que pretendesse ser infalível, daí a raridade com que o assunto surge à discussão. 

Assim, não se compreende bem a finalidade com que os autores trazem a questão à baila com tanto ênfase, senão que isso favoreça interesses ali ainda não revelados. 

Veja-se, também, esta outra discussão em torno da liberdade de pensamento: "A liberdade de pensamento que o Espiritismo sempre reclamou para os seus adeptos… Kardec a entendia dentro do critério da reciprocidade. E, coisa estranha, às vezes se encontram espíritas que fazem restrições aos próprios companheiros de trabalho, enfatizam o seu direito à liberdade de pensar, sobre determinados pontos doutrinários, de forma diferente de outrem, mas não admitem, em contrapartida, o direito de outrem defender ideias diversas das deles, sobre os mesmos pontos". 

Assim como a questão da falibilidade se canaliza para um possível erro do codificador em relação a Roustaing, esse ponto da liberdade de pensamento leva aos opositores de Roustaing, uma vez que eles têm investido de forma segura contra os roustainguistas e as instituições que o divulgam, das quais se destaca a FEB. Apenas isto justificaria também o ênfase aí utilizado. Se assim for (e parece que é), a questão deveria ser analisada sob um outro ângulo, também: a quem atingem e de que forma o fazem os anti-roustainguistas e, se é verdade que eles não admitem "o direito de outrem defender ideias diversas das deles". Antes, porém, que estas respostas sejam dadas faz-se necessário arguir dos motivos reais que estimulam os anti-roustainguistas a porfiarem pela causa. 

Uma coisa muito clara é esta: a discussão em torno da velha tese do corpo fluídico de Jesus nos meios espíritas só teve início depois do lançamento de "Os Quatro Evangelhos", de Roustaing. E mesmo assim porque a obra apareceu como elemento integrante da Doutrina Espírita. Em vista disso, a primeira providência de Kardec foi colocar a questão de molho. Depois, condenou o Cristo agénere. Logo, a obra de Roustaing ficou sem base e perdeu a razão de ser. Esta é uma das principais causas que motivam os espíritas a discordarem dos seguidores de Roustaing. Mas não é a única. Outra causa está no facto de que "Os Quatro Evangelhos" foi levado a exame crítico e não resistiu. Uma coisa, pois, se alia à outra: a condenação de Kardec e a constatação de que a condenação era fundamentada. Isto significa que Roustaing não faz parte da codificação. 

A questão, porém, não pára aí. É curioso verificar que depois de praticamente desaparecido na França e outros países europeus, o roustainguismo apareceu no Brasil e tomou impulso. Muitos roustainguistas vêem neste facto algo semelhante com o Espiritismo, que aqui também tomou grande impulso. Há, porém, diferenças entre um e o outro. Por exemplo, quando o Espiritismo veio para o Brasil estava ainda bastante forte na França. Aqui teve continuidade no seu desenvolvimento e só mais tarde, já no presente século, foi que o Espiritismo perdeu terreno naquele país. Mas o roustainguismo não; quando chegou ao Brasil tinha sido já condenado e relegado ao esquecimento na França e em toda Europa por homens como Léon DenisGabriel DelanneCamile FlammarionErnesto Bozzano, sem citar Kardec, evidentemente. Flammarion, por exemplo, dissera (i) : "Se Kardec é no espaço um astro de infinito esplendor, que eu acompanho como satélite, ainda e sempre, onde resplende o autor da "Revelação das Revelações"? Bozzano: "O caso de J.-B. Roustaing, sob o título absoluto de "A Revelação das Revelações" é, portanto, um facto "dogmático" feliz e universalmente liquidado''. Já Denis afirmara: "Quanto às obras de Roustaing devo dizer-vos que elas não gozam de nenhum crédito no nosso país. Nelas a imaginação teve um papel bem mais preponderante que a mediunidade. Ninguém já pensa nelas, entre nós, há muito tempo". (ii) 

Para Herculano Pires (iii), "o roustainguismo chegou ao Brasil num momento crítico, quando a nossa cultura estava sendo abalada por várias infiltrações europeias. Entre elas, o Espiritismo, que chegara da França e empolgara alguns espíritos cultos na segunda metade do século passado. O roustainguismo se apresentava como integrado no Espiritismo e tocava de perto a sensibilidade mística de alguns ex-católicos. A França era então o centro da civilização e Paris o cérebro do mundo''. O roustainguismo foi adoptado por algumas instituições e, mais tarde, pela FEB, que o divulga até aos nossos dias. Esse facto, ou seja, uma instituição que adquiriu respeito e se arroga do título de "Casa Mater do Espiritismo no Brasil", fez e faz com que os espíritas se lancem contra ela, de várias partes, porque entendem que ela está contra Kardec, contrariando até a sua posição, para dar cobertura a uma doutrina que fere a própria razão. O que os espíritas não entendem é como pode a FEB agir de tal modo. "O prestígio da FEB – é ainda Herculano quem diz – e a sua insistência na divulgação e sustentação do roustainguismo dá certo vigor a este, particularmente no centro e no norte do país". Então, perguntam os espíritas: se Kardec condenou Roustaing, sob que argumento a FEB o defende? E continuam sem entender nada porque é que a FEB não abre mão do seu direito de divulgar Roustaing… 

Na sua gritaria, não nos parece que os espíritas contrariam o direito de livre pensar dos roustainguistas. Aliás, estes pensam livremente desde a elaboração e publicação de "Os Quatro Evangelhos". A coisa toda se prende mais ou menos a isto: Roustaing é, como disse Herculano Pires, "o cavalo de Tróia do Espiritismo"; é um cancro no movimento e dói, dói muito ver a principal instituição espírita do país defendendo uma tese que o Codificador condenou e a condenam grande e expressiva parcela do movimento espírita. Esta é, ademais, uma defesa anti-democrática, autoritária, promovida por uma Casa que reúne as opiniões do movimento espírita nacional mas não lhe dá ouvidos senão naquilo que lhe convém! 

/… 
(i) Conf. o livro "Simulador, o Cristo?", de Mariano Rango d'Atagona, 1.ª edião, 1942, reportando-se a uma comunicação mediúnica recebida do Espírito que, quando encarnado, se opusera a Roustaing. 
(ii) Citadas, respectivamente, em "Simulador, o Cristo?", de d'Aragona, e "Máscaras Abaixo!", de Ricardo Machado. 
(iii) "O Verbo e a Carne", 1.ª edição, 1972, página 56. 


Wilson GarciaO Corpo Fluídico, Capítulo Terceiro – ROUSTAING E OS SEUS ADMIRADORES, ABRINDO CAMINHO, 8º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Pintura de Josefina Robirosa)

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