As grandes fases da evolução humana caracterizam-se pelo
predomínio da liberdade. Mas a sequência histórica de cada uma dessas fases
assinala o retorno à escravidão. Basta isso para nos mostrar que a liberdade é
impossível no destino humano. Os tempos primitivos mostram-nos o homem atrelado
ao clã e à horda. O seu instinto gregário é um impositivo da sua fragilidade em
face da natureza carregada de ameaças e perigos. No clã, na horda ou na tribo
ele se vê obrigado, para garantir a sua sobrevivência e a da prole, a organizar
as primeiras estruturas sociais e a estabelecer ligações ou alianças com outros
grupos. Os mais fortes dominam cada grupo e se constituem na garantia da
liberdade do grupo. Se não houvesse outras exigências além da garantia da
sobrevivência, o possível da liberdade humana teria morrido ao nascer. Mas
o anseio de transcendência, determinado pelo sentimento inato da subjectividade
do Ser, coloca ao lado da força física do Cacique o poder espiritual do Pagé. E
na proporção em que o grupo cresce e penetra na historicidade dos factos, que
gera a tradição e a mitologia das façanhas e dos espantos, a experiência e a
prudência impõem-se através dos conselhos tribais. Equilibra-se o poder da
força bruta com o poder da razão, dando nascimento aos Manes e
deuses tutelares. A realidade confusa do mundo estrutura-se em dois
planos: o das coisas e seres concretos e o do imaginário
imprevisível. As forças cósmicas, transformadas em figuras antropomórficas,
vigiam do alto do céu e do fundo das matas a aventura do homem na Terra. A
multiplicidade de poderes em acção garante a liberdade individual nas condições
dialécticas da existência. Está esboçado o panorama dos sonhos de liberdade, em
que as aspirações de justiça marcarão o roteiro das civilizações. Bastam essas
aspirações, sempre em choque com as pretensões atrevidas da força bruta, para
mostrar que a consciência humana se fundamenta no pressuposto da liberdade.
As civilizações agrárias e pastoris, florescendo no seio
da Natureza, estabelecem a sintonia dos ritmos telúricos com os ritmos do
processo existencial. O homem percebe que a rigidez do seu
condicionamento ao chão, e consequentemente ao meio, não o priva da liberdade
de pensamento e acção. Descobre que agir sobre o meio é modificá-lo, ao mesmo
tempo em que se modifica a si mesmo nas dimensões da temporalidade. Essa
descoberta ampara e estimula os seus anseios de liberdade, mostrando-lhe que
ele possui a jurisdição de si mesmo. Dessa descoberta nasce o sentimento de
responsabilidade que vai marcar ao mesmo tempo os limites do seu poder, do seu
dever e das suas possibilidades de ascendência. Nas grandes civilizações
orientais, de estrutura massiva, a exigência de ampliação da sua
responsabilidade a dimensões abstractas leva-o a recorrer à teocracia,
que gera as investiduras divinas dos reis e príncipes, condição humana que lhe
parece insuficiente para a direcção do Estado. O gigantismo das civilizações
teocráticas obriga-o a abdicar de sua jurisdição individual e entregar-se ao
poder supremo dos deuses. Este poder, por sua própria natureza abstracta,
projecta-se nas estruturas legais que possam abranger a multiplicidade dos
aspectos da ordem instituída. Em consequência, o poder divino acrescido
ao homem, por ele mesmo, leva-o a sufocar a liberdade individual. A sociedade
regride às condições da estrutura tribal, com o predomínio da força bruta que
engaja cada indivíduo à engrenagem gigantesca do Estado, segundo a aguda
observação de Denis
de Rougemont. O homem não é mais um indivíduo, mas uma arruela ou um pino
da estrutura mecânica, regida pelo poder dos deuses através dos seus
mandatários divinos. O cacique tribal transformou-se no Rei Ungido que
representa a Divindade e o Pagé mágico que se multiplicou nos sacerdotes que
confabulam com Deus e controlam as actividades dos súbditos. Nasce das cinzas
dos pastores e agricultores ingénuos, há muito soterrados nos campos, o Leviatã
de Hobbes.
O modelo dos Estados sagrados e totalitários constituiu-se dos três poderes que
a Revolução Francesa terá de enfrentar para restabelecer a liberdade sob a
inspiração do Contrato Social de Rousseau.
É no antigo Império Persa que vamos assistir à morte das
civilizações teocráticas, quando um novo poder, nascido das guerras de
conquista, o poder militar, se imporá pela força das armas sobre o poder
teocrático. Da divisão dos poderes na Pérsia nascerão na Grécia os Estados
antípodas de Esparta e Atenas, o primeiro rigidamente totalitário e militar,
esmagando os anseios da liberdade individual, e o segundo, ainda
teocrático e escravagista, mas tocado pelo fogo de Prometeu, ao
sopro revivificador da Filosofia, libertando o indivíduo das garras do Leviatã
e abrindo perspectivas para o desenvolvimento do pensamento livre e, portanto,
da cultura. Mas a Esparta projecta-se em Roma e gera o Império dos
Césares que determinará um retrocesso histórico. O cidadão romano é o novo tipo
de homem, engajado à estrutura estatal, que esmagara a Grécia e se embriagará
com o sangue generoso dos seus filósofos. A Roma camponesa não
conseguira asfixiar em si mesma, ao transformar-se no Leviatã, os princípios de
justiça que a nortearam nos primórdios do seu desenvolvimento. Esses princípios
levarão a velha Loba ao afrouxamento da sua estrutura, nos tempos de fastígio, e permitirá o restabelecimento da liberdade
individual na mais corrosiva de suas formas, a da libertinagem.
Dois factores contraditórios a levarão à queda: a mensagem cristã provinda
da civilização agrária e pastoril da Palestina e a voracidade das hordas
bárbaras do Norte. A fusão desses factores gerou o milénio medieval,
ressurreição dos Estados Teocráticos na Europa devastada. A liberdade
individual foi novamente esmagada pelo Império da Igreja, mas o
fermento do Evangelho levedou lentamente, ao rogo das guerras e das fogueiras
inquisitórias, a massa dos povos bárbaros e acendeu na Renascença, com novo
ímpeto e maior ardor, os anseios de liberdade. Graças a isso, as fases de
grandeza espiritual de Atenas filosófica e estética,
da palestina profética, puderam ressurgir das cinzas para um novo e poderoso
surto da evolução humana. O homem renascentista não nasceu engajado a
uma estrutura estatal. Descendia, embora por vias tortuosas, dos israelitas
discutidores, dos atenienses filosofantes e dos romanos da República, tendo por
modelos e guias o racionalismo suicida de Abelardo e
os sonhos de liberdade de Descartes e Rousseau.
Nem mesmo o contragolpe de Bonaparte conseguiu
sufocar as aspirações libertárias da França, que repercutiram no mundo e
floresceram na América. A hecatombe nazi-fascista ameaçaria novamente os povos
e o desenvolvimento do chamado complexo industrial militar frustraria as
esperanças da liberdade do pós-guerra. Mas os triunfos da força
revertem na negação de si mesmos, ante o desenvolvimento cultural, firmado nos
princípios humanistas dos novos tempos. Porque o dilema que hoje nos
desafia na Estrada de Tebas é irreversível: ou deciframos o enigma
da esfinge nuclear ou ela nos devorará. Temos de compreender
que o avanço científico é uma conquista da civilização e não da barbárie, um
repto do homem a si mesmo, para que ele confirme a sua natureza espiritual ou a
negue, entregando-se à inconsciência das feras. A violência
desencadeada no mundo, dos nossos dias, e impunemente aplicada em nome de
princípios superiores, tem o seu limite fatalmente marcado pelo genocídio dos
cogumelos atómicos. Nenhum poder é concedido ao homem sem o preço marcado na
sua própria consciência. O preço da violência é a morte e, neste caso, a
destruição total da Humanidade. A chamada guerra dos botões é uma
reticência trágica para todos os que desenvolveram o poder do espírito e com
ele penetraram nos segredos da matéria. Há um ensino de Jesus que
devemos lembrar nesta hora, porque agora ele se torna claro e objectivo: “Todos
os pecados serão perdoados ao homem, menos o pecado contra o espírito.” Temos
pecado ignominiosamente contra o espírito através de guerras e matanças,
atentados brutais, perseguições e torturas, assassinatos covardes de
prisioneiros inermes, toda uma série hedionda de manifestações de bestialidade,
enlouquecidos pela arrogância da força bruta. Negamos a liberdade de
pensamento, que é o selo da dignidade humana, e com as armas defensivas das
nações partimos para a agressão interna, transformando cada nação num sistema
fechado de aniquilamento dos seus próprios filhos, na violência desmedida contra
os direitos do espírito. Aviltamos o mundo e aviltamo-nos, desde os
campos de concentração nazi-fascista até aos campos de trabalho forçado e morte
lenta do sistema comunista, até às mortes programadas pelos computadores das
chamadas nações democráticas e as agressões genocidas das grandes potências
contra pequenas e heróicas nações indefesas. Tocamos agora a barreira do nosso
próprio poder liberticida. O desafio é simples: carregamos os botões da
destruição total ou retomamos a condição humana. Pagamos o preço
fatal do pecado contra o espírito ou o resgataremos de joelhos sobre a
infinidade de covas em que sepultamos as vítimas da nossa arrogância, com o
desprezo da prepotência e os rituais bárbaros da intimidação colectiva.
Nunca os bárbaros foram tão bárbaros como na pele do
homem do Século XX. Nunca o poder das armas esmagou e silenciou
populações inermes em todo o mundo, na mais trágica demonstração de covardia de
todos os tempos. Mas os dragões minúsculos e invisíveis dos átomos agora
esperam os mandatários da violência para triturá-los com os seus dentes
nucleares, na mais refinada forma de igualitarismo democrático, de
nivelação total de carrascos e vítimas, sob o signo da morte global. Onde os
covardes acharão coragem para morrer como homens?
Mas mesmo que cheguemos a essa escatologia trágica, os
sonhos de liberdade não serão liquidados. A Terra devastada e envenenada pelas
emanações atómicas continuará a girar nos espaços siderais. Os resíduos da
infâmia desaparecerão de sua face calcinada. O seu poder de recuperação
e renovação não será extinto, porque se alimenta nas fontes cósmicas.
Germinarão de novo as plantas, os animais reconstruirão a sua fertilidade e uma
nova raça humana a povoará, para que os desígnios de Deus se cumpram após a falência
dos homens. Então ela não será mais um planeta andrajoso, coberto
de ruínas, um túmulo de indignidade humana, mas um monumento vivo e radiante à
dignidade dos que, numa raça de víboras, souberam resistir até ao último
instante. Talvez nesse tempo os monstros que devoraram o planeta no
delírio da arrogância possam despertar, em algum lugar do Infinito, para a
consciência de sua brutalidade. Da situação miserável em que caíram,
com as suas mandíbulas de fera, apropriadas à condição que preferiram,
mastigando ossos e destroços, talvez consigam vislumbrar – num céu escuro e
opaco – as tímidas cintilações das estrelas longínquas, apavoradas com a visão
das suas monstruosidades. Só assim poderão renascer para novas existências,
como os "luzbéis" arrependidos de um mito bíblico jamais escrito.
Cada aspecto de um tema requer linguagem apropriada para
o seu desenvolvimento. Essa linguagem não é estudada, não é preparada de
antemão, pois a sua natureza é genésica;
ela brota das entranhas do próprio tema pela necessidade vital de expressão
adequada. Não traçamos esse panorama assombroso com os recursos da imaginação.
Ele não é uma criação fantasiosa, é um dado real que surge da situação
desesperante do mundo. O impacto de sua percepção aturde primeiro o observador
que teve a temeridade de encará-lo. Depois esse impacto se transmite ao público
para despertá-lo de uma apatia forçada, reerguendo-lhe as energias anestesiadas
pelo medo e restabelecendo-lhe a capacidade de pensar e analisar. A
morte da liberdade é a morte do homem. Porque o homem nasce da liberdade e é
liberdade. A sua carne e o seu espírito são a vitória da liberdade imolada. Nas
metamorfoses genésicas ele passa de um reino da natureza para outro. Desenvolve
o seu poder estruturador na pedra e nela permanece em estado cataléptico até ao
momento de projectar-se nas estruturações vegetais, em que desenvolve a sua
sensibilidade e se transforma na doação de que falava Hegel, abrindo-se em ramagens, flores e frutos. Pouco a
pouco aglutina as primeiras formações animais, como nos mostram as pesquisas
sobre a evolução dos reinos naturais. Desenvolve então a motilidade – nada,
voa, anda, desligado da matriz terrena – e as potencialidades da inteligência. Como
animal ele está ainda envolto numa pele densa e forte, coberta de pelos ou
escamas, de invólucros protectores para a conquista das suas experiências
vitais. Mas no homem a carne se refina e se apura, a pele se torna fina
e flexível, a sensibilidade se aguça, a mente se abre na delicada estrutura
cerebral como uma flor que desabrocha, o espírito imolado recobra a sua
natureza, que é a liberdade.
Todo esse imenso e complexo processo criador atinge a sua
frutificação nas conquistas da inteligência humana, semelhante a Deus, dotada
de poder criador. E é essa obra-prima que ele mesmo avilta e esmaga quando se
entrega aos resíduos das fases anteriores da evolução criadora, segundo Bergson. Quando
as mãos animalescas da insensatez reduzem tudo isso a um cadáver sangrento e
sem vida, pela fria decisão de um tribunal dogmático, arbitrariamente em nome
de Deus, da Pátria ou da Sociedade, o homem peca contra o espírito, o que vale
dizer: contra a sua própria natureza de Ser espiritual. É
verdade que não destruiu o homem nem a vida, mas aniquilou um trabalho milenar
dos poderes criadores do espírito. Por outro lado, atentou contra a dignidade
humana e o direito à vida, ao reajuste dos seus possíveis desajustamentos
sociais e culturais, ao progresso que ainda poderia realizar no desenvolvimento
das suas potencialidades espirituais. Além disso, cada acto dessa natureza é um
incentivo à violência, à brutalidade, ao crime, aos desrespeitos aviltantes ao
supremo direito do homem, o direito à liberdade.
Não há sofismas, por mais aparentemente brilhantes,
por mais aprovados e institucionalizados nas falíveis convenções humanas, que
possam justificar esse acto contrário aos desígnios de
Deus inscritos na consciência humana.
A tudo isso devemos acrescentar as dolorosas
consequências do crime na vida dos familiares do condenado. Quantas
dores e lágrimas, que de suplícios e humilhações, desesperos e angústias
esmagarão criaturas inocentes que jamais aceitarão essa pretensa justiça
produzida nas retortas escusas das convenções humanas, manchadas por interesses
inferiores, por ambições vorazes e pretensões orgulhosas de infalibilidade do
falível julgamento humano. As sociedades e civilizações que se defendem
sacrificando as suas próprias vítimas, os injustiçados pelos desníveis
sócio-económicos de estruturas forjadas pelas leis da selva, são duplamente
criminosas. A queda do homem na sociedade, que Rousseau definiu
apoiado nas suas próprias experiências de vítima dando forma social ao mito
bíblico da queda, é uma realidade flagrante em todo o mundo. Só há um meio de
redenção das sociedades criminosas: o abandono dos métodos de coação violenta e
a adopção de meios humanos de recuperação e resgate dos indivíduos transviados.
O princípio ético de preservação da liberdade exige a
reformulação social e cultural do mundo. Por isso, René Hubert recomenda uma pedagogia estética que
corresponda ao sentido profundo do acto de amor do processo educacional. Só
pelo desenvolvimento da consciência estética, síntese consciencial que liberta
o homem da arrogância e da brutalidade, aprimorando-lhe a sensibilidade
estética – como Kant já reconhecera – poderemos estabelecer na Terra
uma civilização de justiça e harmonia, condizente com as aspirações mais
profundas e generalizadas da espécie humana. A liberdade é também um
princípio estético fundamental, como Schiller demonstrou
nos seus estudos de estética. Sem liberdade não há criação artística válida nem
ética verdadeira.
/...
José Herculano Pires, Os Sonhos de
Liberdade, – Uma Possibilidade Humana, 1º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo
por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)
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