sábado, 7 de abril de 2018

as vidas sucessivas | os elementos ~

~ Experiências magnéticas ~ Regressão da memória e previsão, Caso n.º 1 ~ Laurent (III)

21 de Outubro de 1893

Hoje, a repetição de todos os fenómenos já observados no segundo e no terceiro estados. Continuo muito lento para passar do sonambulismo ao estado de relação. Talvez porque eu seja desconfiado, ou porque uma auto-sugestão, que consiste no firme desejo de não tomar o falso pelo verdadeiro, persista até no sono e faça antagonismo às influências magnéticas.

O Sr. de Rochas, a propósito de uma pergunta que me faz e à qual não respondo, fazendo no entanto esforço para recordar-me do facto que me permitiria responder, observa que, nesse terceiro estado, perdi a memória do presente. Por exemplo, não sei onde estou. Sei que é o Sr. de R. quem se encontra diante de mim; porém eu não poderia dizer o que ele é: Administrador da Escola Politécnica ou exercendo qualquer outra profissão. Todavia, guardo intacta a lembrança das experiências precedentes.

Para estabelecer com exactidão o período de minha vida que foge à minha memória, o Sr. de R. emprega este engenhoso meio:

– Você teve aulas de filosofia? – pergunta-me ele.

Sorrio e respondo: “Oh, não!”, como poderia dizer um jovem escolar que consideraria a aula de filosofia alguma coisa de muito bonita e bastante distante.

– De retórica? Cursou o 1º ano do 2º grau? A 8ª série? A 7ª série? (*)

A resposta é sempre negativa e pronta.

– A 6ª série? A 5ª?

Aqui eu me perturbo, reflicto, hesito. É lamentável que, no momento em que escrevo, apesar da ordem recebida de lembrar-me das sensações experimentadas durante o sono, eu não consiga refazer exactamente o trabalho que se operou em mim nesse minuto. Apenas creio que vi passar a imagem de meu professor da 5ª série, sem poder estabelecer se era realmente o da 5ª série ou o da 4ª. Foi por isso, sem dúvida, que hesitei. De qualquer forma, ainda respondi “não”.

Foi apenas no momento em que o Sr. de R. me perguntou: “Você se recorda de seu professor da 3ª série?”, que espontaneamente afirmei vê-lo.

– Mas você o vê como se ele estivesse aqui? – insiste o Sr. de R.

– Sim, sim, é o meu professor.

– Enfim, você distingue bem se, sim ou não, você é um aluno da 3ª série? Este homem é seu professor desta série ou simplesmente você se recorda de tê-lo tido como professor?

Após um esforço bastante grande, arrisco uma resposta confusa:

– Creio que ele foi meu professor; mas depois dele não tive outros, me parece.

Aqui, por felicidade, reencontro as fases pelas quais passou o meu espírito. Enquanto eu fazia um esforço sincero para responder com exactidão à pergunta feita, a verdadeira solução não se apresentando e eu me fatigando ao procurá-la, disse-me a mim mesmo: “Ah! Vou responder qualquer coisa.” Mas imediatamente em seguida: “Não! Não posso enganar.”

Fenómeno singular! Em um segundo tive consciência de que eu servia de sujet a um magnetizador, que eu era o que na realidade sou e não um aluno da 3ª série e que era necessário permitir a conclusão da experiência, apesar de tudo. Ignoro o que eu teria inventado se este brusco chamamento à realidade não tivesse intervindo para fazer empenhar-me com a sinceridade. “Não, não posso enganar.” Na realidade, esta frase veio-me ao espírito durante o lampejo de consciência que me representou aos olhos como que um jovem de vinte anos, prestando-se a experiências de hipnotismo para sua instrução, preocupado em não errar e, além do mais, interessado em não enganar o experimentador, o que seria enganar-se a si próprio. (**)

Que teria acontecido se o despertar de minha personalidade não tivesse acontecido? Eu teria, sem dúvida, cedido ao desejo de fazer cessar o esforço fatigante; eu teria respondido ao acaso com qualquer coisa aproximativa; depois, para não me contradizer (pois observei em outros sujets, que certamente se crêem de boa fé, que é impossível fazê-los confessar que se enganaram, por mais manifesto que seja o seu erro), eu teria chegado, por uma série de respostas aproximativas, à pura mentira, à invenção, à simulação. E como o Sr. de R. se teria apercebido?

Aliás, eu não consigo explicar essa súbita consciência da realidade que durou apenas o tempo de eu me dizer: “Não posso enganar.” Tenho o hábito de me repetir esta frase como uma sugestão durante a vigília. Seria uma espécie de auto-sugestão quando me vem durante o sono: Mas é admissível que alguém possa, no estado de rapport, obedecer a uma ordem a si próprio dada quando acordado? (***) Isto parece ainda mais inverosímil quando, tendo perdido a lembrança dos factos mais recentes de minha vida, não havia razão para que eu me recordasse preferencialmente de uma frase pensada antes de ser ordenada do que de qualquer outra.

Fica então estabelecido, sem mais comentários, que um sujet adormecido pode dar-se conta de que ele sirva de sujet; isso deve ser bastante raro. Entretanto, essa consciência, de alguma forma virtual, do estado em que se está, não deve deixar de influir surdamente sobre as respostas do sujet às perguntas que lhe são feitas e de representar um papel importante nessa simulação inconsciente que o Sr. Bergson assinalou outrora. (Revue Philosophique, 1888.)

Porém, quando ela se determina, que perturbação profunda deve causar no decorrer da experiência! Ela conduz o sujet a si mesmo. O perigo é em parte afastado quando o sujet, voltando a si, deseja ser sincero. Mas se, ao invés de se dizer “Não enganemos”, ele é indiferente e pouco preocupado com a verdade, como habitualmente acontece? Se, além do mais, ele sente esse desejo que observei de fazer a experiência alcançar êxito? Se, naturalmente comediante, vem-lhe a ideia de representar um papel tão logo volta a si?

Para retornar à experiência, o Sr. de R. volta às suas perguntas.

– Como se diz rosa em latim?

Não há resposta. Com efeito, na 3ª série, ninguém me ensinou ainda o latim.

– Quem matou o gigante Golias?

– Davi.

– Quem foi o sucessor de Henrique IV?

– Não sei.

Na 3ª série eu era sem dúvida mais instruído em história sacra do que em história da França.

Depois seguem-se perguntas sobre as quatro operações. Apreende-se nitidamente deste exame que tudo o que aprendi a partir da idade de cerca de nove anos escapa-me completamente.

Aqui uma nova resposta a uma pergunta de outro género tenderia ainda a fazer-me achar que, apesar de tudo, dou-me conta de que estou adormecido.

–Você tem uma irmã? – pergunta o Sr. de R.

– Sim, mas só me lembro dela muito pequena.

– O que faz o seu pai?

– Já não o tenho.

Eis o que respondo. Ora, quando eu tinha nove anos meu pai ainda vivia. É necessário então que eu tenha noção do presente para que seja o meu eu actual quem fale neste caso.
A sessão termina. Muita fadiga.

Ao despertar-me, o Sr. de R. pergunta-me se vi um estranho durante o sono. Afirmo ter apenas ouvido o Sr. de R. falar a outra pessoa além de mim, mas sem ver ninguém. É entretanto real que um empregado veio pedir uma informação ao Sr. de R. enquanto eu estava adormecido; porém, no terceiro estado, o sujet vê apenas, como eu já disse, o magnetizador e os objectos que ele toca. A minha resposta confirma esta lei.

/... 
(*) O original francês difere, pois os níveis escolares na França tinham e têm outra nomenclatura. A tradutora optou por fazer uma correlação com os níveis vigentes no Brasil. (N.E.)
(**) Fenómeno a relacionar com esta observação do Dr. Gibier: “Conheci um médium, jovem bastante honesto, que não praticava a sua mediunidade e com a qual se observavam diversos fenómenos de levitação e de movimentos de objectos absolutamente reais. Confessou-me ele que diversas vezes se tinha sentido como que impelido a acrescentar alguma coisa ao que produziria; sentia um desejo violento de simular um fenómeno qualquer, enquanto que podia com as suas faculdades naturais obtê-lo melhor. Analisando esta espécie de impulsão, ele me dizia que ela nascia, por um lado, do desejo de causar admiração aos assistentes; por outro lado, do desejo de enganar o seu semelhante; em terceiro lugar, do receio de fadiga, já que, após sessões nas quais fenómenos intensos são obtidos, os médiuns ficam às vezes extenuados. Porém ele acrescentava que qualquer outra causa de que não se dava conta (sem dúvida de natureza impulsiva) se juntava a todas as precedentes e fazia-se sentir mais insistente. Assegurava-me, aliás, que tinha sempre resistido à tentação.” (Analyse des choses). Esta propensão a enganar parece ser inerente ao organismo dos sensitivos e dos médiuns. É preciso levar isto em consideração na observação dos factos, mas não cometer a imprudência de tudo atribuir à fraude, quando já se observou um caso desses. (A.R.)
(***) Isto é não apenas admissível, mas verdadeiro. Tive numerosos exemplos com outros sujets. (A.R.)



Albertde RochasAs Vidas Sucessivas, Segunda Parte Experiências magnéticas, Capítulo II – Regressão da memória e previsão, Caso n. 1 – Laurent, 1893 3 de 4, 7º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: A aurora dos transatlan, pintura em acrílico de Costa Brites)

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