quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Diálogos de Kardec ~


Influência perniciosa das ideias materialistas |

SOBRE AS ARTES EM GERAL; A SUA REGENERAÇÃO POR MEIO DO ESPIRITISMO |



Lê-se na secção “correio de Paris”, do Mundo Ilustrado, de 19 de Dezembro de 1868:

Carmouche escreveu mais de duzentas comédias e ‘vaudevilles’ e, quando muito, o nosso tempo apenas lhe conhecerá o nome. É que a glória dramática, que tantas cobiças desperta, é terrivelmente fugaz. A menos que um autor haja produzido excepcionais obras-primas, está condenado a ver o seu nome cair no esquecimento, logo que ele deixe de estar na berra. Mesmo durante o palco, a maioria lhe ignora a existência. Com efeito, o público, quando lê o cartaz, apenas atenta ao título da peça; pouco lhe importa o nome de quem a escreveu. Tente o leitor lembrar-se de quem escreveu tal ou tal obra encantadora, cuja lembrança lhe ficou. Quase sempre se encontrará na impossibilidade de referir esse nome. E quanto mais avançarmos, tanto mais assim será, pois que as preocupações de ordem material cada vez mais se sobrepõem aos cuidados artísticos.

“Precisamente a esse propósito, Carmouche contava uma passagem típica. Conversando, dizia, com o meu alfarrabista, acerca do seu comerciozinho, ele se manifestava assim: ‘Isto não vai mal, meu senhor, mas modifica-se; os artigos que se vendem já não são os mesmos de antes. Outrora, quando me surgia um rapaz de 18 anos, nove vezes em dez, era à procura de um dicionário de rimas; hoje, é para me pedir um manual das operações da Bolsa’.”

As preocupações de ordem material se sobrepõem aos cuidados artísticos; mas, como não ser assim, quando os maiores esforços se fazem para concentrar todos os pensamentos do homem na vida carnal e para destruir nele toda a esperança, toda a aspiração que ultrapasse essa existência? É lógica, inevitável semelhante consequência para aquele que nada vê fora do círculo estreito da efémera vida presente. Quando a criatura nada percebe atrás de si, nada adiante de si, nada acima de si, em que pode ela concentrar os seus pensamentos senão no ponto onde se encontra? O que há de sublime na arte é a poesia do ideal, que nos transporta para fora da esfera acanhada das nossas actividades. Mas, o ideal paira exactamente nessa região extra material onde só se penetra pelo pensamento; que a vista corporal não pode varar, mas que a imaginação concebe. Ora, que inspiração pode o Espírito haurir da ideia do nada?

O pintor que unicamente houvesse visto o céu brumoso, as estepes áridas e monótonas da Sibéria e que julgasse estar ali todo o Universo, poderia conceber e descrever o brilho e a riqueza dos tons da natureza tropical? Como querereis que os vossos artistas e os vossos poetas vos transportem a regiões que eles não vêem com os olhos da alma, que não compreendem e nas quais nem mesmo acreditam?

O Espírito somente pode identificar-se com o que sabe ou crê ser a verdade e essa verdade, embora de ordem moral, se lhe torna uma realidade que tanto melhor ele exprime, quanto melhor a sente. Se à inteligência da coisa junta a flexibilidade do talento, faz que as suas próprias impressões se transmitam às almas dos outros. Mas, que impressões pode provocar nos outros aquele que não as tem?

Para o materialista, a realidade é a Terra; o seu corpo é tudo, pois que, além dele, nada mais há, visto que a sua própria mente se extingue com a desorganização da matéria, como o fogo com o combustível. Não pode, portanto, com a linguagem da arte, exprimir senão o que vê e sente. Ora, se ele só vê e sente a matéria tangível, unicamente isso lhe é possível exprimir. Nada pode haurir de onde apenas vê o vazio. Se se aventura por um mundo que desconhece, entra aí como cego e, malgrado os esforços que empregue para elevar-se ao diapasão do idealismo, fica no terra-a-terra, como um pássaro sem asas.

A decadência das artes, neste século, resultou inevitavelmente da concentração dos pensamentos sobre as coisas materiais, concentração essa que, a seu turno, é o resultado da ausência de toda crença, de toda a fé na espiritualidade do ser. O século apenas colhe o que semeou. Quem semeia pedras não pode colher frutos. As artes não sairão do torpor em que jazem, senão por meio de uma reacção no sentido das ideias espiritualistas.

Como poderiam o pintor, o poeta, o literato, o músico ligar os seus nomes a obras duráveis, quando, na sua maioria, eles próprios não crêem no futuro de seus trabalhos; quando não se apercebem de que a lei do progresso, força invencível que arrasta os Universos pela estrada do infinito, lhes pede mais do que descoradas cópias das criações magistrais dos artistas dos tempos idos! Toda a gente se lembra dos Fídias, dos Apeles, dos Rafael, dos Michelangelo, luminosos faróis que se destacam da obscuridade dos séculos transcorridos, como fúlgidas estrelas no meio de profundas trevas; mas, quem se lembrará de notar o claror de uma lâmpada a lutar contra o brilho do Sol de um dia de verão?

O mundo caminhou a passos gigantescos desde os tempos históricos; os filósofos dos povos primitivos gradualmente se transformaram. As artes que se apoiam nas filosofias que lhes são a consagração idealizada, também tiveram que se modificar e transformar. É matematicamente certo dizer-se que, sem crença, as artes carecem de vitalidade e que toda a transformação filosófica acarreta necessariamente uma transformação artística paralela.

Em todas as épocas de transformação, as artes periclitam, porque a crença em que se estribam não basta às aspirações engrandecidas da Humanidade e porque, não estando ainda adoptadas pela grande maioria dos homens os novos princípios, os artistas não ousam explorar, senão de modo hesitante, a mina desconhecida que se lhes abre aos pés.

Durante as épocas primitivas, em que os homens unicamente conheciam a vida material, em que a Filosofia divinizava a natureza, a Arte buscou, antes de tudo, a perfeição da forma. A beleza corporal era, então, a qualidade capital; a arte se aplicou em a reproduzir e idealizar. Mais tarde, a Filosofia enveredou por nova senda; os homens, progredindo, reconheceram que acima da matéria havia uma potência criadora e organizadora, que recompensava os bons, punia os maus e fazia da caridade uma lei. Um mundo novo, o mundo moral se edificou sobre as ruínas do mundo antigo. Dessa transformação nasceu uma arte nova que fez palpitasse a alma sob a forma e junto à percepção plástica a expressão de sentimentos que os antigos desconheceram.

A ideia viveu sob a matéria; mas revestiu as formas severas da Filosofia em que a arte se inspirava. Às tragédias de Ésquilo, aos mármores de Milo, sucederam as descrições e as pinturas das torturas físicas e morais dos réprobos. A arte se elevou; revestiu carácter grandioso e sublime, porém ainda sombrio. Ela está toda, com efeito, na pintura do inferno e do céu da Idade Média, na de sofrimentos eternos, ou de uma beatitude muito distante, colocada tão alto, que nos parece quase inacessível; é talvez por isso que ela nos toca tão pouco, quando a vemos reproduzida na tela ou no mármore.

Também hoje, ninguém ousaria contestá-lo, o mundo está num período de transição, solicitado violentamente por hábitos obsoletos, crenças precárias do passado e verdades novas, que lhe são progressivamente desvendadas.

Assim como a arte cristã sucedeu à arte pagã, transformando-a, a arte espírita será o complemento e a transformação da arte cristã. O Espiritismo, efectivamente, nos mostra o porvir sob uma luz nova e mais ao nosso alcance. Por ele, a felicidade está mais perto de nós, está ao nosso lado, nos Espíritos que nos cercam e que jamais deixaram de estar em relação connosco. A morada dos eleitos, a dos condenados já não se encontram insuladas; há incessante solidariedade entre o céu e a Terra, entre todos os mundos de todos os Universos; a ventura consiste no amor mútuo de todas as criaturas que chegam à perfeição e numa constante actividade, com o objectivo de instruir e conduzir àquela mesma perfeição os que se tornaram retardatários. O inferno está no próprio coração do culpado, que tem nos remorsos o seu castigo, não mais, todavia, eterno, e ao mau, que toma o caminho do arrependimento, se depara de novo a esperança, sublime consolação dos desgraçados.

Que inesgotáveis fontes de inspiração para a arte! Que obras-primas de todos os géneros as novas ideias suscitarão, pela reprodução das cenas tão multiplicadas e várias da vida espírita! Em vez de representar despojos frios e inanimados, ver-se-á uma mãe tendo ao lado a filha querida em sua forma radiosa e etérea; a vítima a perdoar ao seu algoz; o criminoso a fugir em vão ao espectáculo, de contínuo renascimento, de suas acções culposas! o insulamento do egoísta e do orgulhoso, no meio da multidão; a perturbação do Espírito que volve à vida espiritual, etc., etc. E, se o artista quiser elevar-se acima da esfera terrestre, aos mundos superiores, verdadeiros Edens onde os Espíritos adiantados gozam da felicidade que conquistaram, ou, se desejar reproduzir alguns aspectos dos mundos inferiores, verdadeiros infernos onde reinam soberanamente as paixões, que cenas emocionantes, que quadros palpitantes de interesse se lhe depararão!

Sem dúvida, o Espiritismo abre à arte um campo inteiramente novo, imenso e ainda inexplorado. Quando o artista houver de reproduzir com convicção o mundo espírita, haurirá nessa fonte as mais sublimes inspirações e o seu nome viverá nos séculos vindouros, porque, às preocupações de ordem material e efémeras da vida presente, sobreporá o estado da vida futura e eterna da alma.

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Influência perniciosa das ideias materialistas, SOBRE AS ARTES EM GERAL; A SUA REGENERAÇÃO POR MEIO DO ESPIRITISMO, 5º fragmento solto da obra.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

domingo, 4 de outubro de 2015

O peregrino sobre o mar de névoa ~

princípios da Terapêutica Espírita

A terapêutica espírita funda-se na concepção do Universo como estrutura unitária e infinita.

Tudo se encadeia no Universo, como ensina Kardec. Dessa maneira, há uma constante relação de todas as coisas e todos os seres no Universo Infinito.

Essa estrutura inimaginável encerra tudo em si mesma e por isso todos os recursos de que necessita estão nela mesma.

Cada partícula do Universo reflecte o todo e é formada à semelhança do Todo. Esse princípio de similaridade universal supera as nossas concepções e as nossas percepções fragmentárias.

Foi da intuição natural da similaridade que surgiu a magia, como primeira tentativa de conquista e domínio, pelo homem, das energias da natureza. A magia das selvas, na sua simplicidade elementar, encerrava em potência toda a actualização futura. O homem primitivo percebeu a semelhança das coisas e dos seres nas suas experiências do mundo. O seu mundo era um fragmento do Universo e, para ele, não tinha limites. Na sua intuição globalizante (pois toda a intuição é uma percepção global) começou a conquista do real pela conquista progressiva das coisas e seres semelhantes. Para atingir o pássaro no ar precisava de um instrumento voador e fez a flecha. Para curar uma ferida produzida pelo espinho de uma planta, recorreu ao suco de suas folhas. Para saciar os seus impulsos sexuais devia conquistar a mulher. Dessa satisfação nascia um novo ser, semelhante a ambos.

A dialéctica da vida se insinuava naturalmente em sua consciência fragmentária, ligando os factos entre si e desenvolvendo-lhe o tirocínio. Este o levaria às conquistas subsequentes, infundindo-lhe o sentimento do mundona fusão da mente com a afectividade. Nessa fusão temos o homem ligado à terra pela similitude de seus interesses vitais, e ao mesmo tempo atraído ao céu pelo despertar de seus impulsos de transcendência. Por isso, desde as inscrições rupestres nas cavernas até às mais altas civilizações do Oriente e do Ocidente, o homem teve sempre a ideia de Deus no seu íntimo e nas suas manifestações em busca da sociabilidade. A magia simpatética das selvas impregnara as religiões nascidas dessa dupla fonte, marcadas até hoje pelo impulso da lei de adoração a Deus. Com os pés enraizados na terra do mundo, ele voltará sempre para a luz, o fogo e a chuva que o alimentam e estimulam em suas actividades criadoras. O sentimento do mundo é a confirmação sincrética de suas percepções sensoriais e de sua intuição extra-sensorial do todo como unidade.

O estranho episódio da cura pelo pó de múmia, na História da Medicina, quando as múmias se esgotaram nas escavações do Egipto e os terapeutas mágicos passaram a produzir múmias artificiais para os doentes, revela a que intensidade chegou a ligação do homem com a terra. A múmia representava ao mesmo tempo o homem e a terra, encerrando, portanto, os poderes curadores da natureza humana e os do solo, em cujas entranhas esses poderes se fundiam sob a acção misteriosa do tempo. Dessa mitologia aparentemente absurda nascera em tempos remotos, curtido pelo sentimento do mundo, o sentimento da fraternidade humana, da possibilidade das acções fluídicas entre os corpos dos homens vivosJesus empregaria então os seus poderes espirituais na transmissão das energias vitais do terapeuta ao doente, através do rito da imposição das mãos, que marcaria todo o período de desenvolvimento do Cristianismo até ao Século XIX, em que Kardec reavivaria essa prática antiquíssima em plena era científica. Tinham razão os que temiam o restabelecimento das superstições do passado remoto, sem o conhecer, e portanto sem levar em conta, os princípios renovadores da concepção espírita do mundo. Eram realmente as velhas superstições que renasciam, mas pelas mãos de um cientista que as depurava de sua ganga de milénios para extrair-lhes apenas a essência.

Kardec anunciou que, no seu tempo, com o advento da revelação espírita, divina, pelas manifestações espirituais, e humanas, pela elaboração científica dos homens, os erros do passado se transformariam em verdades. Esse é um exemplo das transformações previstas. Os erros de interpretação de um passado obscuro tornaram-se acertos ante as investigações do homem moderno. Assim podemos afirmar que o primeiro princípio da terapêutica espírita é de origem telúrica, fundado na realidade objectiva de um dos mais curiosos e intrigantes episódios da história da Medicina. A volta à Natureza, que Rousseau pregou na Educação, ironizado por Voltaire, Kardec efectivou, como pesquisador científico e médico, professor e director de estudos na Universidade de França. A seu lado, o Dr. Demeur, em sua clínica de Paris, dava a Kardec a sua assistência de observador e pesquisador dos efeitos curativos da nova terapêutica. Os médicos modernos tomaram o lugar de Voltaire no caso de Kardec, entendendo que Kardec desejava que o homem voltasse a andar de quatro, como dissera Voltaire sobre a revolução educacional de Rousseau. Não perceberam que essa volta à natureza não se referia às selvas, mas à natureza humana desfigurada pelos artificialismos da civilização. Se o objectivo pedagógico de Rousseau era psicológico e ético, principalmente ético, o de Kardec era também da mesma dupla natureza, abrangendo ao mesmo tempo a Psicologia e a Ética, duas coordenadas históricas e científicas a balizarem as transformações evolutivas dos tempos modernos.

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José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Princípios da Terapêutica Espírita 1 de 2, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, por Caspar David Friedrich)