sábado, 27 de setembro de 2014

o sentido da vida ~

Negativas da Ciência'

A natureza profundamente deísta do Espiritismo e a sua posição filosófica ao lado do dualismo de Descartes, contra o monismo de Espinosa, no que se refere às relações entre o corpo e o espírito, suscitam contra ele as negativas da ciência académica. E o dizemos, ciência académica tendo em conta que muitos cientistas, do maior renome mundial, constituindo uma plêiade suficiente para a organização da verdadeira academia da ciência espírita, já demonstraram publicamente, até mesmo através de obras científicas como o Tratado de Metapsíquica, de Charles Richet, a evidência dos factos espíritas e a legitimidade de sua interpretação doutrinária.

A tendência moderna da biologia é a de considerar o homem do ponto de vista de Espinosa, a que acima aludimos, ou seja, como um todo de corpo e espírito, em que um não actua sobre o outro, pela simples razão de que são ambos diferentes aspectos de uma só e a mesma coisa. Mas há uma diferença, que devemos lembrar. Espinosa ia muito além na sua concepção das coisas, dos simples limites orgânicos, materiais, a que se prende a biologia moderna.

A ciência académica, porém, prefere o monismo de Espinosa naquele sentido restrito, negando a possibilidade, já tantas vezes comprovada, da existência independente do espírito. Para ela, morto o corpo, estará extinto o espírito. Também a existência de Deus para ela é uma simples hipótese.

Dessa maneira, e uma vez que os atributos de Deus estão ao alcance de todos, o materialista e o descrente podem amar a Deus e, consequentemente, chegar à crença e ao espiritualismo através do amor a Deus por um dos seus atributos, ou seja, do amor à verdade.

A ciência também pode ser definida, neste caso, como um acto de amor a Deus. Pois o que procura a ciência, senão descobrir a verdade? As suas negativas actuais decorrem apenas das suas próprias limitações, da sua temporária impossibilidade de atingir o conhecimento da verdade mais ampla, que ela deseja atingir e atingirá fatalmente no futuro. Para isso, a ciência terá de juntar aos seus dados os conseguidos através da experiência filosófica e da busca religiosa. No dia em que isto se fizer, não mais veremos cientistas materialistas, esforçando-se ao máximo para negar a evidência das manifestações espíritas. Nesse dia, o pensamento humano, que partiu da análise científica, chegará à síntese filosófica, pela reunião de todos os dados do conhecimento, hoje divididos em campos opostos e até mesmo antagónicos.

Mas, assim como um homem que avança pela estrada vai aos poucos descortinando o panorama das regiões que atingirá mais tarde, assim também a humanidade tem vislumbres e visões antecipadas das suas conquistas futuras. O Espiritismo é bem uma dessas visões, perfeitamente delineadas nos seus contornos. Na sua estrutura doutrinária ele já nos oferece a síntese daqueles três ramos do conhecimento humano. Apoiando-se na ciência, que observa e regista os fenómenos considerados supranormais, ele ergue ante os nossos olhos o edifício de uma filosofia que é a interpretação do mundo e da vida em espírito e verdade, culminando, por isso mesmo, naquilo que Kardec chamou de consequências religiosas, isto é, na religião espírita, que não depende de aparatos exteriores porque é todo um processo interior de sentimento e compreensão.

Friedrich Engels, na Dialéctica da Natureza, depois de fazer várias críticas a Russel Wallace e a William Crookes, não perdoando mesmo a interpretação do apocalipse feita por Isaac Newton, chega à conclusão, por sua conta e risco, de que o Espiritismo é a mais estéril de todas as superstições (aliás, trata-se de um artigo de Engels, adicionado ao manuscrito do livro). Para Engels, os cientistas espíritas pertencem todos à classe dos empíricos ingleses, que só se ocupam com o assunto na decrepitude. Engels, porém, era o defensor de uma nova teoria nascente, a da interpretação materialista do mundo, sendo justo que assim reagisse, diante da teoria que surgia para combater a sua, a da interpretação espiritualista racional, científica e não empírica. Engels defendia a sua posição por amor à verdade, e nesse sentido, embora não crendo em Deus, ele o amava, através de seu atributo “verdade”.

Muitos anos mais tarde, Leonidio Ribeiro e Murillo de Campos, no Brasil, apossaram-se dos argumentos de Engels. Mais tarde ainda, Osório César tentou fazer o mesmo, com o seu livro Misticismo e loucura, que foi forçado a negar. E ainda mais tarde, já agora, nos nossos dias, quando quase cem anos se passaram sobre a Dialéctica de Engelsa ciência tomou novos rumos, aproximando-se cada vez mais das verdades espirituais, agora que entramos no campo aberto da desintegração atómica, provando que a matéria não é mais do que uma condensação de energia, agora que Einstein rasga os horizontes da Física, através da sua nova teoria, da gravitação generalizada e do campo unificado, outro médico brasileiro, o prof. Silva Mello, escreve e publica o seu Mistérios e realidades deste e do outro mundo, repetindo os mesmos e encanecidos argumentos de Engels.

É claro que, do nosso ponto de vista, esses doutores não estão incluídos no número dos materialistas que podem amar a Deus, pelo menos através do amor à verdade.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Negativas da Ciência, 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Giovanna ~

III

Sobre uma das colinas que bordejam o lago, a alguma distância de Gravedona, estende-se uma cortina de teixos e de ciprestes. A sua sombra verdejante aparece de longe, misturada de manchas de brilhante brancura. Lages funerárias, cruzes de madeira ou de pedra erguem-se entre os verdes ramos. É o Campo-Santo (o cemitério), o lugar onde se vêem solucionar a cadeia infinita das dores humanas. Uma flor brilhante desabrocha entre as tumbas e esparge no ar agradáveis fragrâncias. A luz jorra, e os pássaros cantam sobre as pedras sepulcrais. Com efeito, que importa à natureza que tantas esperanças e alegrias aí estejam sepultadas aos olhos dos humanos? Por isso, não deixaria de se seguir o ciclo de suas maravilhosas transformações.

Não longe da entrada do cemitério, uma grande laje de mármore está cercada de roseiras, de jasmins, de cravos rubros, entre os quais zumbem os insectos. Uma acácia a cobre com a sua sombra. Lá dormem, embalados pelos ecos longínquos, pelos murmúrios enfraquecidos da vida, os pais de Giovanna, e é a sua piedosa mão que mantém essas flores. Várias vezes por semana, ela desce para orar na Igreja de Gravedona, e de lá, seguida de sua ama de leite, ganha o campo fúnebre onde moram os despojos dos seus; lá também repousa o corpo do pai de Maurice, e este, no seu taciturno tédio, gosta de percorrer essas áleas silenciosas, retemperando o seu espírito na grande calma da cidade dos mortos. Um dia, os dois jovens aí se encontraram, Giovanna, ajoelhada, a cabeça caída sobre a tumba de sua mãe, parecia conversar em voz baixa com ela; via-se os seus lábios moverem. Que dizia à morta? Que misteriosa troca de pensamentos se operava entre essas duas almas? Maurice não sabia, mas receando perturbar-lhe o recolhimento, mantinha-se à parte, imóvel, atento. Levantando-se, Giovanna percebe-o, e a sua face se enrubesce. Enquanto ele, feliz por este reencontro, se aproxima e a cumprimenta.

– Senhorinha – disse – vejo que um mesmo motivo nos conduz a este lugar. É doce, não é, nos revermos próximo daqueles que perdemos, experimentando que a sua lembrança está sempre gravada nos nossos corações?

– Sim, respondeu ela, e no cumprimento desse dever se é possuído de forças novas, se é fortalecido no bem. Cada vez que venho aqui, saio mais calma, mais submissa à vontade de Deus.

– Sente você também isso que experimento próximo dos mortos? Desde que me aproximo da tumba de meu pai, parece que uma comunicação íntima se estabelece entre eu e ele. No fundo do meu ser uma conversação se estabelece. Creio escutar a sua voz, falo-lhe e ele me responde. Mas talvez isso não seja mais que uma ilusão vã, um efeito da nossa emoção?

Ela eleva para ele os seus olhos que brilham de um fogo profundo e doce.

– Não, isso não é uma ilusão – disse – também escuto essas vozes interiores. Tenho aprendido desde há  muito tempo a compreendê-las. E não é somente aqui que se fazem escutar, em qualquer lugar que esteja, se chamo pelo pensamento os meus queridos invisíveis, eles vêem, me aconselham, me encorajam, guiam  os meus passos na vida; a tumba não é uma prisão, todos, ao mais, podem considerá-la como uma espécie de altar de recordações. Não creio que as almas aí estejam encantadas.

– As almas dos mortos voltam então para a Terra?

– Pode-se disso duvidar? – Disse a moça. – Como, aqueles que nos amaram aqui em baixo se desinteressariam de nós no espaço? Libertas dos laços da matéria, não estão elas mais livres, e a lembrança do passado não as reconduziriam para nós? Sim, certamente, retornam, se associam às nossas alegrias, às nossas dores. Se Deus o permitisse, nós os veríamos frequentemente ao nosso lado, regozijando-se com nossas boas acções, entristecendo-se com as nossas faltas.

– Todavia você é uma católica fervorosa, ora, o catolicismo não ensina que na morte a alma é julgada e, segundo o decreto divino eternamente fixada ao lugar do castigo ou à morada dos bem aventurados ?

– Adoro Deus, obedeço de meu melhor à sua lei, mas esta lei é uma lei de amor e não uma lei de rigor. Deus é muito bom e muito justo para punir eternamente. Conhecendo as fraquezas do homem, como poderia mostrar-se tão severo para com ele?

– Qual será então, segundo você, a sanção do bem e como se consumaria a justiça divina?

– A alma, deixando a Terra, vê descerrar-se o véu material que lhe fazia esquecer a sua origem, os seus destinos. Compreende então a ordem do mundo; vê o Bem reinar acima de tudo. Segundo a sua vida tenha sido boa ou má, estéril ou fecunda, conforme ou contrária à lei do progresso, goza uma paz deliciosa ou sofre um cruel remorso, até que retome a tarefa inacabada.

– E como é isso?

– Retornando para esta terra de provas e de dores, trabalhando pelo seu adiantamento, ajudando as suas irmãs na marcha comum para Deus.

– Você pensa então que a alma deve cumprir várias existências aqui em baixo?

– Sim, eu o sinto, uma existência não pode ser suficiente para nos permitir atingir a perfeição; e como, sem isso, explicar que as crianças de Deus sejam tão dessemelhantes de carácter, de valor moral, de inteligência?

– Permita de me espantar que na idade em que tantas jovens são divertidas e risonhas e você seja tão séria, tão reflexiva, tão esclarecida das coisas do alto.

– É sem dúvida porque tenho vivido mais do que aquelas de quem você fala.

– Creio, como você, que a existência actual não é a primeira que cumprimos, mas, por que a lembrança do passado está apagada na nossa memória?

– Porque os barulhos e as ocupações da vida material nos desviam da observação interior de nós mesmos. Muitas reminiscências de minhas vidas, uma vez por outra, me vêem ao espírito. Creio que muitas pessoas poderiam reconstituir as suas existências passadas analisando os seus gostos, os seus sentimentos.

– A amizade ou a repugnância instintiva que sentimos, à primeira vista, por certas pessoas, não terá a sua fonte nesse obscuro passado?

– Sim, sem dúvida, mas devemos resistir a esses sentimentos de repugnância. Todos os seres são nossos irmãos e nós lhes devemos a nossa afeição.

– Assim, este impulso irresistível, que me leva para você desde o primeiro dia que a vi, esta força que não faz senão crescer depois de nosso encontro na casa de Marta, e que me faz procurá-la por toda parte, seria uma prova de que nós já nos teríamos reencontrado e conhecido sobre a terra.

A moça sorriu e corou.

– Querida donzela – continua Maurice num tom grave e emocionado – devo dizer-lhe, os nossos pensamentos se unem numa concordância singular. Reencontro em você todas as minhas ideias; mas essas ideias, confusas no meu espírito, crescem e se aclaram passando por sua boca. A solidão e a reflexão têm feito de você um anjo de bondade, de doçura; a mim, me tinha azedado, tornado indiferente aos sofrimentos humanos. Mas no dia em que a vi, na hora compreendi onde estava o bem, o dever. A minha vida recebeu uma impulsão nova. É a você que devo esta revelação. Vendo-a, escutando-a, um véu se descerrou, um mundo infinito de sonhos, de imagens, de aspirações, se mostrou aos meus olhos. Assim, a sua presença se tornou uma necessidade para mim, uma alegria profunda. Permita-me esperar que possamos rever-nos frequentemente.

Um ruído de passos e de vozes o impede de continuar, vindo, a propósito, esconder a perturbação de Giovanna. Um cortejo mortuário se aproxima; uma salmodia lúgubre se prepara no ar. A jovem moça chama a sua ama de leite, mas, antes de se afastar, faz um sinal amigo a Maurice e lança as palavras: até logo!

O jovem a seguiu, com o olhar, até que a sua veste branca tivesse desaparecido no ângulo da álea.

A admiração que havia despertado no espírito de Maurice, no seu primeiro encontro com Giovanna, ia crescendo à medida que aprendia a conhecê-la melhor. Mas, pouco a pouco, esta impressão estava mudando num sentimento todo novo. Após cada uma de suas conversas na casa de Marta, ele se sentia, como havia dito, melhor, mais inclinado para o bem, mais doce para com os seus semelhantes. O poder misterioso que irradiava em torno da jovem o envolvia, fazia fundir o que tinha de duro, de glaciar na sua alma. Uma força atractiva, invencível, o atraía para ela. Uma espécie de embriaguez subia ao seu cérebro assim que escutava o som da sua voz. Maurice a amava. Amava com o ardor juvenil, com o entusiasmo de um coração que fala pela primeira vez. Cada dia descobria em Giovanna uma perfeição nova. Todos aqueles que a conheciam, todos esses humildes habitantes do vale que ela havia socorrido, não celebravam as suas virtudes? E como, malgrado a sua doçura e a sua modéstia, se mostrava superior a todas as moças da sua idade! Maurice havia vivido próximo às moças da grande cidade lombarda, ele conhecia as alegres meninas de Como e das margens do lago. Em nenhuma parte, havia encontrado uma igual. Havia vivido a vaidade, o desejo de brilhar, de reinar entre a maior parte delas. Sem dúvida, havia aí sedutoras pessoas, jovens capazes de tornar um esposo feliz, entre as que havia encontrado; nenhuma possuía esta simplicidade unida a esse ar nobre e doce, esse não sei o quê de sobre-humano, essa chama quase divina que se reflectia nos olhos de Giovanna, ganhando os corações, afastando daqueles que dela aproximavam todo o pensamento baixo ou impuro. Não era isso uma coisa maravilhosa, o escutá-la, aos dezoito anos, falar com tanta convicção das grandes leis ignoradas pelo homem, perceber os sombrios mistérios da vida e da morte, reconfortar os indecisos, mostrar a todos o dever? Eis o que dizia Maurice, após a conversa do cemitério, com a imagem de Giovanna preenchendo-lhe o espírito. Repassava na sua memória todos os incidentes que o haviam aproximado dela. Revia-a tal qual lhe tinha aparecido, num dia de festa, na Igreja de Gravedona, absorta na sua prece, enquanto que à volta tudo era barulho, movimento de caixas removidas, esfregação de panos sobre as lajes. E de tudo isso: recordações, pensamentos, secretas esperanças, libertava-se um sonho delicioso, um sonho de amor e de felicidade, que acariciava silenciosamente no fundo de sua alma.

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Léon Denis, Giovanna 1880, III 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Retrato, pequena pintura que especialistas de arte italiana atribuem a Rafael Sanzio)

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

o grande enigma ~

Deus e o Universo ||

Algumas objecções são, no entanto, de prever. Pode dizer-se, por exemplo: as teorias sobre a matéria, sobre a força, sobre a inteligência, tais as que formulavam outrora as escolas científicas e filosóficas, tiveram o seu tempo. Novas concepções as substituem. A física actual nos demonstra que a matéria se dissocia pela análise, se resolve em centros de forças, e que a força se reabsorve no éter universal.

Sim, certamente, os sistemas envelhecem e passam; as fórmulas gastam-se; mas a ideia eterna reaparece sob formas cada vez mais novas e mais ricas. O materialismo e o espiritualismo são aspectos transitórios do conhecimento. Nem a Matéria, nem o Espírito são o que deles pensavam as escolas de outrora, e talvez a matéria, o pensamento e a vida estejam ligados por laços estreitos, que começamos a entrever.

Certos factos, no entanto, subsistem e outros problemas se impõem. A matéria e a força se reabsorvem no éter; mas, o que é o éter? É, diz-nos, a matéria-prima, o substrato definitivo de todos os movimentos. O próprio éter é atravessado por movimentos inumeráveis: radiações luminosas e caloríficas, correntes de electricidade e de magnetismo. Ora, é perfeitamente necessário que esses movimentos sejam regulados de certa maneira.

A força gera o movimento, mas a força não é a lei. Cega e sem guia, ela não poderia produzir a ordem e a harmonia no Universo. Estas são, no entanto, manifestas. No cimo da escala das forças aparece a energia mental, a vontade que constrói as fórmulas e fixa as leis.

A inércia, dir-nos-ão, ainda é relativa, visto que a matéria é energia concentrada. Na realidade, todas as partes constitutivas de um corpo se movem. Entretanto, a energia armazenada nesses corpos só pode entrar em potência de acção quando a matéria componente é dissociada. Não é o caso dos planetas, cujos elementos representam a matéria no seu último grau de concreção. Os seus movimentos não se podem explicar por uma força interna, mas somente pela intervenção de uma energia exterior.

– “A inércia – diz G. Le Bon  – é a resistência de causa desconhecida, que os corpos opõem ao movimento ou mudança de movimento. Ela é susceptível de medida que se define pelo termo massa. A massa é, pois, a medida da inércia da matéria, o seu coeficiente de resistência ao movimento.”

Desde Pitágoras até Claude Bernard, todos os pensadores afirmam que a matéria é desprovida de espontaneidade. Toda a tentativa de emprestar à substancia inerte uma espontaneidade – capaz de organizar e de explicar a força – tem sido em vão.

É preciso, pois, aceitar a necessidade de um primeiro motor transcendente para explicar o sistema do mundo. A mecânica celeste não se explica por si mesma, e a existência de um motor inicial se impõe. A nebulosa primitiva, mãe do Sol e dos planetas, era animada de um movimento giratório. Mas quem lhe imprimira esse movimento? Respondemos sem hesitar: Deus.

É somente a ciência contemporânea que nos revela Deus, o Ser Universal? O homem interroga a história da Terra; evoca a memória das multidões mortas, das gerações que repousam sob a poeira dos séculos; interroga a fé crédula dos simples e a fé raciocinada dos sábios; e, por toda a parte, acima das opiniões contraditórias e das polémicas das escolas, acima das rivalidades de casta, de interesses e de paixões, ele vê os transportes, as aspirações do pensamento humano para a Causa que vela, augusta e silenciosa, sob o véu misterioso das coisas.

Em todos os tempos e em todos os meios a queixa humana sobe para esse Espírito divino, para essa Alma do mundo que se honra sob nomes diversos, mas que, sob tantas denominações –  Providência, grande Arquitecto, Ser supremo, Pai celeste –, é sempre o Centro, a Lei, a Razão universal, em que o mundo se conhece, se possui, encontra a sua consciência e o seu eu.

E é assim que, acima desse incessante fluxo e refluxo de elementos passageiros e mutáveis, acima dessa variedade, dessa diversidade infinita dos seres e das coisas que constituem o domínio da Natureza e da Vida, o pensamento encontra no Universo esse princípio fixo, imutável, essa Unidade consciente em que se unem a essência e a substância, fonte primeira de todas as consciências e de todas as formas, visto que consciência e forma, essência e substância, não podem existir uma sem a outra. Elas se unem para constituir essa Unidade viva, esse Ser absoluto e necessário, fonte de todos os seres, ao qual chamamos Deus.

A linguagem humana é, entretanto, impotente para exprimir a ideia do Ser infinito. Desde que nos servimos de nomes e de termos, limitamos o que é sem limites. Todas as definições são insuficientes e, de certo modo, induzem ao erro. Entretanto, o pensamento para se exprimir precisa de termo. O menos afastado da realidade é aquele pelo qual os padres do Egipto designavam Deus: Eu sou, isto é, eu sou o Ser por excelência, absoluto, eterno, e do qual emanam todos os seres.

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Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte Deus e o Universo, I O grande Enigma 2 de 5, 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: La Madonna de Port Lligat, detalhe | 1950, Salvador Dali)