III
Sobre uma das colinas que bordejam o lago, a alguma
distância de Gravedona,
estende-se uma cortina de teixos e de
ciprestes. A sua sombra verdejante aparece de longe, misturada de manchas de
brilhante brancura. Lages funerárias, cruzes de madeira ou de pedra erguem-se
entre os verdes ramos. É o Campo-Santo (o cemitério), o lugar onde se vêem
solucionar a cadeia infinita das dores humanas. Uma flor brilhante desabrocha
entre as tumbas e esparge no ar agradáveis fragrâncias. A luz jorra, e os
pássaros cantam sobre as pedras sepulcrais. Com efeito, que importa à natureza
que tantas esperanças e alegrias aí estejam sepultadas aos olhos dos humanos?
Por isso, não deixaria de se seguir o ciclo de suas maravilhosas
transformações.
Não longe da entrada do cemitério, uma grande laje de
mármore está cercada de roseiras, de jasmins, de cravos rubros, entre os quais
zumbem os insectos. Uma acácia a cobre com a sua sombra. Lá dormem, embalados
pelos ecos longínquos, pelos murmúrios enfraquecidos da vida, os pais de Giovanna,
e é a sua piedosa mão que mantém essas flores. Várias vezes por semana, ela
desce para orar na Igreja de Gravedona, e de lá, seguida de sua ama de leite,
ganha o campo fúnebre onde moram os despojos dos seus; lá também repousa o
corpo do pai de Maurice, e este, no seu taciturno tédio, gosta de
percorrer essas áleas silenciosas, retemperando o seu espírito na grande calma
da cidade dos mortos. Um dia, os dois jovens aí se encontraram, Giovanna,
ajoelhada, a cabeça caída sobre a tumba de sua mãe, parecia conversar em voz
baixa com ela; via-se os seus lábios moverem. Que dizia à morta? Que misteriosa
troca de pensamentos se operava entre essas duas almas? Maurice não sabia, mas
receando perturbar-lhe o recolhimento, mantinha-se à parte, imóvel, atento.
Levantando-se, Giovanna percebe-o, e a sua face se enrubesce. Enquanto ele,
feliz por este reencontro, se aproxima e a cumprimenta.
– Senhorinha – disse – vejo que um mesmo motivo nos conduz a
este lugar. É doce, não é, nos revermos próximo daqueles que perdemos,
experimentando que a sua lembrança está sempre gravada nos nossos corações?
– Sim, respondeu ela, e no cumprimento desse dever se é
possuído de forças novas, se é fortalecido no bem. Cada vez que venho aqui,
saio mais calma, mais submissa à vontade de Deus.
– Sente você também isso que experimento próximo dos mortos?
Desde que me aproximo da tumba de meu pai, parece que uma comunicação íntima se
estabelece entre eu e ele. No fundo do meu ser uma conversação se estabelece.
Creio escutar a sua voz, falo-lhe e ele me responde. Mas talvez isso não seja
mais que uma ilusão vã, um efeito da nossa emoção?
Ela eleva para ele os seus olhos que brilham de um fogo
profundo e doce.
– Não, isso não é uma ilusão – disse – também escuto essas
vozes interiores. Tenho aprendido desde há muito tempo a compreendê-las.
E não é somente aqui que se fazem escutar, em qualquer lugar que esteja, se
chamo pelo pensamento os meus queridos invisíveis, eles vêem, me aconselham, me
encorajam, guiam os meus passos na vida; a tumba não é uma prisão, todos,
ao mais, podem considerá-la como uma espécie de altar de recordações. Não creio
que as almas aí estejam encantadas.
– As almas dos mortos voltam então para a Terra?
– Pode-se disso duvidar? – Disse a moça. – Como, aqueles que
nos amaram aqui em baixo se desinteressariam de nós no espaço? Libertas dos
laços da matéria, não estão elas mais livres, e a lembrança do passado não as
reconduziriam para nós? Sim, certamente, retornam, se associam às nossas
alegrias, às nossas dores. Se Deus o permitisse, nós os veríamos frequentemente
ao nosso lado, regozijando-se com nossas boas acções, entristecendo-se com as
nossas faltas.
– Todavia você é uma católica fervorosa, ora, o catolicismo
não ensina que na morte a alma é julgada e, segundo o decreto divino
eternamente fixada ao lugar do castigo ou à morada dos bem aventurados ?
– Adoro Deus, obedeço de meu melhor à sua lei, mas esta lei
é uma lei de amor e não uma lei de rigor. Deus é muito bom e muito justo para
punir eternamente. Conhecendo as fraquezas do homem, como poderia mostrar-se
tão severo para com ele?
– Qual será então, segundo você, a sanção do bem e como se
consumaria a justiça divina?
– A alma, deixando a Terra, vê descerrar-se o véu material
que lhe fazia esquecer a sua origem, os seus destinos. Compreende então a ordem
do mundo; vê o Bem reinar acima de tudo. Segundo a sua vida tenha sido boa ou
má, estéril ou fecunda, conforme ou contrária à lei do progresso, goza uma paz
deliciosa ou sofre um cruel remorso, até que retome a tarefa inacabada.
– E como é isso?
– Retornando para esta terra de provas e de dores,
trabalhando pelo seu adiantamento, ajudando as suas irmãs na marcha comum para
Deus.
– Você pensa então que a alma deve cumprir várias
existências aqui em baixo?
– Sim, eu o sinto, uma existência não pode ser suficiente
para nos permitir atingir a perfeição; e como, sem isso, explicar que as
crianças de Deus sejam tão dessemelhantes de carácter, de valor moral, de
inteligência?
– Permita de me espantar que na idade em que tantas jovens
são divertidas e risonhas e você seja tão séria, tão reflexiva, tão esclarecida
das coisas do alto.
– É sem dúvida porque tenho vivido mais do que aquelas de
quem você fala.
– Creio, como você, que a existência actual não é a primeira
que cumprimos, mas, por que a lembrança do passado está apagada na nossa
memória?
– Porque os barulhos e as ocupações da vida material nos
desviam da observação interior de nós mesmos. Muitas reminiscências de minhas
vidas, uma vez por outra, me vêem ao espírito. Creio que muitas pessoas
poderiam reconstituir as suas existências passadas analisando os seus gostos,
os seus sentimentos.
– A amizade ou a repugnância instintiva que sentimos, à
primeira vista, por certas pessoas, não terá a sua fonte nesse obscuro passado?
– Sim, sem dúvida, mas devemos resistir a esses sentimentos
de repugnância. Todos os seres são nossos irmãos e nós lhes devemos a nossa
afeição.
– Assim, este impulso irresistível, que me leva para você
desde o primeiro dia que a vi, esta força que não faz senão crescer depois de
nosso encontro na casa de Marta, e que me faz procurá-la por toda parte, seria
uma prova de que nós já nos teríamos reencontrado e conhecido sobre a terra.
A moça sorriu e corou.
– Querida donzela – continua Maurice num tom grave e
emocionado – devo dizer-lhe, os nossos pensamentos se unem numa concordância
singular. Reencontro em você todas as minhas ideias; mas essas ideias, confusas
no meu espírito, crescem e se aclaram passando por sua boca. A solidão e a
reflexão têm feito de você um anjo de bondade, de doçura; a mim, me tinha
azedado, tornado indiferente aos sofrimentos humanos. Mas no dia em que a vi,
na hora compreendi onde estava o bem, o dever. A minha vida recebeu uma
impulsão nova. É a você que devo esta revelação. Vendo-a, escutando-a, um véu
se descerrou, um mundo infinito de sonhos, de imagens, de aspirações, se
mostrou aos meus olhos. Assim, a sua presença se tornou uma necessidade para
mim, uma alegria profunda. Permita-me esperar que possamos rever-nos
frequentemente.
Um ruído de passos e de vozes o impede de continuar, vindo,
a propósito, esconder a perturbação de Giovanna. Um cortejo mortuário se
aproxima; uma salmodia lúgubre se prepara no ar. A jovem moça chama a sua ama
de leite, mas, antes de se afastar, faz um sinal amigo a Maurice e lança as
palavras: até logo!
O jovem a seguiu, com o olhar, até que a sua veste
branca tivesse desaparecido no ângulo da álea.
A admiração que havia despertado no espírito de Maurice, no
seu primeiro encontro com Giovanna, ia crescendo à medida que aprendia a
conhecê-la melhor. Mas, pouco a pouco, esta impressão estava mudando num
sentimento todo novo. Após cada uma de suas conversas na casa de Marta, ele se
sentia, como havia dito, melhor, mais inclinado para o bem, mais doce para com
os seus semelhantes. O poder misterioso que irradiava em torno da jovem o
envolvia, fazia fundir o que tinha de duro, de glaciar na sua alma. Uma força
atractiva, invencível, o atraía para ela. Uma espécie de embriaguez subia ao
seu cérebro assim que escutava o som da sua voz. Maurice a amava. Amava com o
ardor juvenil, com o entusiasmo de um coração que fala pela primeira vez. Cada
dia descobria em Giovanna uma perfeição nova. Todos aqueles que a conheciam,
todos esses humildes habitantes do vale que ela havia socorrido, não celebravam
as suas virtudes? E como, malgrado a sua doçura e a sua modéstia, se mostrava
superior a todas as moças da sua idade! Maurice havia vivido próximo às moças
da grande cidade lombarda, ele conhecia as alegres meninas de Como e das margens do lago.
Em nenhuma parte, havia encontrado uma igual. Havia vivido a vaidade, o desejo
de brilhar, de reinar entre a maior parte delas. Sem dúvida, havia aí sedutoras
pessoas, jovens capazes de tornar um esposo feliz, entre as que havia
encontrado; nenhuma possuía esta simplicidade unida a esse ar nobre e doce,
esse não sei o quê de sobre-humano, essa chama quase divina que se reflectia
nos olhos de Giovanna, ganhando os corações, afastando daqueles que dela
aproximavam todo o pensamento baixo ou impuro. Não era isso uma coisa
maravilhosa, o escutá-la, aos dezoito anos, falar com tanta convicção das
grandes leis ignoradas pelo homem, perceber os sombrios mistérios da vida e da
morte, reconfortar os indecisos, mostrar a todos o dever? Eis o que dizia
Maurice, após a conversa do cemitério, com a imagem de Giovanna preenchendo-lhe
o espírito. Repassava na sua memória todos os incidentes que o haviam
aproximado dela. Revia-a tal qual lhe tinha aparecido, num dia de festa, na
Igreja de Gravedona, absorta na sua prece, enquanto que à volta tudo era
barulho, movimento de caixas removidas, esfregação de panos sobre as lajes. E
de tudo isso: recordações, pensamentos, secretas esperanças, libertava-se um
sonho delicioso, um sonho de amor e de felicidade, que acariciava
silenciosamente no fundo de sua alma.
/...
Léon Denis, Giovanna 1880, III 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Retrato, pequena
pintura que especialistas de arte italiana atribuem a Rafael Sanzio)
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