segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

pensamento e vontade ~

Alucinações espontâneas e voluntárias |

Nos incidentes da vida ordinária e diuturna, todas as lembranças são constituídas por imagens atenuadas, mais ou menos vagas, cuja fraca vivacidade não permite distinguir-lhes a natureza.

Não obstante, a regra comporta numerosas excepções, e todos os homens geniais, cuja força imaginativa logrou criar obras-primas, foram dotados de intensa visão mental, que lhes permitia perceber interiormente as personagens e ambientes, engendrados pelo febricitante trabalho mental em gestação.

Sabido é que os grandes romancistas, entre eles Dickens e Balzac, ficavam às vezes obsidiados pela visão das personagens por eles idealizadas, a ponto de as verem, diante de si, como se fossem personalidades reais.

Outro tanto podemos dizer dos pintores, cujo poder de visualização pode chegar a substituir os modelos vivos.

Brierre de Boismont, no seu livro As alucinações, (págs. 26 e 451), relata o seguinte facto:

“Um pintor que herdara grande parte da clientela do célebre artista José Reynolds e considerado, aliás, retratista superior a este, declarou-me ter tantas encomendas, que chegou a pintar trezentos retratos, entre grandes e pequenos, no curso de um ano.

Tal rendimento de trabalho afigura-se-nos impossível; mas, o segredo da rapidez e do extraordinário êxito do artista consistia na circunstância de lhe não ser preciso mais que uma “pose do modelo original”.

Wigam conta: Vi-o pintar, eu mesmo, sob os meus olhos, em menos de oito horas, o retrato de uma pessoa das minhas relações, e posso assegurar que o trabalho era cuidadosamente feito, além de fiel à semelhança.

Pedi-lhe esclarecimento do seu método. Respondeu-me:

“Quando me apresentam um novo modelo, fito-o com muita atenção durante meia hora, ao mesmo tempo em que, de espaço a espaço, procuro fixar um detalhe da fisionomia, sobre a tela.

“Meia hora me basta para dispensar outras “poses”. Ponho, então, de lado a tela e ocupo-me de outro modelo.

“Quando volto ao primeiro retrato, penso na pessoa e sento-me no tamborete, de onde passo a percebê-la tão nitidamente como se presente de facto ela estivesse.

“Chego mesmo a distinguir-lhe a forma e a cor, mais nítidas e mais vivas, do que o faria se a pessoa ali estivesse realmente.

“Nessa altura, de tempos a tempos fito a outra, a figura imaginária, fixo-a facilmente sobre a tela e, quando necessário, interrompo o trabalho para observar com cuidado o modelo, na “pose” que tomara.

“E cada vez que volto o olhar para o tamborete, lá vejo, infalivelmente, a minha personagem.”

Registe-se, contudo, que essa excepcional faculdade para objectivar imagens acabou por ser fatal ao artista, pois que enlouqueceu no dia em que lhe não foi possível distinguir as alucinações voluntárias e representativas de algumas pessoas, das pessoas realmente vivas.”

Também nos casos dessa natureza e sempre graças às novas luzes projectadas pelas investigações metapsíquicas sobre a génese das alucinações, em geral, tudo concorre para demonstrar que nas formas alucinatórias, a que estão mais ou menos sujeitos romancistas e artistas, existe algo de objectivo e substancial.

É uma indução que, aliás, já ressalta mais nítida da análise das sugestões hipnóticas, tal como me proponho demonstrar.

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Ernesto BozzanoPensamento e Vontade  Alucinações espontâneas e voluntárias, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: A Female Saint_1941, pintura de Edgar Maxence)

sábado, 20 de dezembro de 2014

Alfred Russel Wallace e o Sobrenatural ~

milagres | e a ciência moderna ~

Um milagre é geralmente definido como uma violação ou suspensão de uma lei da natureza, e como as leis da natureza são a mais completa expressão das experiências acumuladas pela espécie humana, Hume era de opinião que nenhum testemunho humano poderia provar um milagre. Strauss baseia todo o argumento do seu elaborado trabalho sobre a mesma base, a de que nenhum testemunho que venha até nós por meio do conhecimento de séculos pode provar que estas leis foram alguma vez subvertidas, que a experiência unânime dos homens mostra agora ser invariável. A ciência moderna colocou este argumento numa base mais ampla, demonstrando a interdependência de todas estas leis e considerando inconcebível que a força e o movimento, ou nada mais do que a matéria, possam ser absolutamente criados ou destruídos o professor Tyndall no seu artigo sobre "A constituição do universo", publicado no Forthnighly Review, diz:

Um milagre é estritamente definido como uma invasão da lei da conservação da energia(i) Criar ou aniquilar a matéria pressupõe, de todas as formas, um milagre: a criação ou aniquilação da energia seria igualmente um milagre para aqueles que compreendem o princípio da conservação.

(i) - Esta suposta definição de um milagre é uma pura suposição. Milagres não implicam qualquer “invasão da lei de conservação de energia”, mas meramente na existência de seres inteligentes invisíveis a nós, capazes ainda de actuar sobre a matéria, como foi explicado anteriormente.

O senhor Lecky, no seu grande trabalho sobre o "Racionalismo", mostra-nos que durante os últimos dois ou três séculos houve uma disposição continuadamente maior para se adoptarem pontos de vista seculares mais que teológicos, em história, política e ciência. As grandes descobertas da física na última metade do século pressionaram esse movimento com ainda maior veemência e levaram a uma firme convicção, nas mentes da maioria dos homens instruídos, a de que o universo é governado por leis amplas e imutáveis, às quais se subordinam todos os fenómenos que possam ser classificados e contra as quais nenhum facto natural se pode opor. Se, contudo, definirmos milagre como uma contravenção a qualquer uma destas leis, deve ser admitido que a ciência moderna não tem lugar para ele; e nós não podemos ser surpreendidos com as muitas e variadas tentativas de escritores de opinião amplamente oposta, darem a razão de, ou explicarem todos os factos que, registados na história ou religião, só poderiam ter acontecido supondo um agente miraculoso ou sobrenatural. Esta tarefa não tem sido fácil, de forma alguma. A quantidade de testemunho directo era a favor dos milagres em todos os tempos e é muito grande. A crença em milagres foi, até à nossa época, quase universal, e de modo geral é seguro e possível certificar-se que, as pessoas que estão mais firmemente convencidas da impossibilidade dos eventos considerados miraculosos, poucas pesquisaram ampla e honestamente a natureza e quantidade das evidências de que aqueles eventos realmente aconteceram, se é que aconteceram. Sobre este tema, contudo, eu não desejo tratar agora. Parece-me que toda a base da questão foi de alguma forma mal colocada e mal compreendida, e que, em cada caso autêntico de um suposto milagre, pode ser encontrada uma solução que removerá muitas das nossas dificuldades.

Uma falácia comum parece-me presente em todos os argumentos contra os factos considerados miraculosos, quando se assegura que eles violam, ou invadem, ou subvertem as leis da natureza. Isto é realmente presumir mais do que pode ser decidido, já que, se o facto em discussão realmente aconteceu, ele só poderia estar de acordo com as leis da natureza, já que, por definição, ‘lei da natureza’ é aquela que regula todos os fenómenos. A própria palavra ‘sobrenatural’, quando aplicada a um facto, é um absurdo; e a palavra ‘milagre’, se assim mantida, exige uma definição mais precisa do que a que tem sido dada dele. Recusar-se a admitir o que em outras situações seria evidência conclusiva de um facto, porque não pode ser explicado por aquelas leis da natureza com as quais estamos familiarizados, é na verdade sustentar que temos um completo conhecimento destas leis e que podemos determinar de antemão o que é ou não possível. Toda a história do progresso do conhecimento humano nos mostra que o controverso prodígio de uma era se transforma em fenómeno natural aceite na seguinte e que muitos milagres aparentes eram decorrentes de leis da natureza subsequentes às descobertas.

Muitos fenómenos da mais simples feição pareceriam sobrenaturais aos homens que possuem conhecimento limitado. O gelo e a neve poderiam facilmente parecer como tais aos habitantes dos trópicos. A subida de um balão pareceria sobrenatural a pessoas que nada conhecessem sobre as causas do seu movimento de ascensão; e nós poderíamos bem aceitar que, não há gás inflamável senão o ar atmosférico como sempre foi entendido, e se nas mentes de todos (filósofos e químicos incluídos) o ar fosse indissoluvelmente ligado à ideia de uma forma mais leve da matéria terrestre, o testemunho daqueles que viram um balão ascender seria desacreditado, sob as bases de que a lei da natureza seria suspensa se qualquer coisa pudesse ascender livremente para a atmosfera, em directa contravenção à lei da gravidade.

Há um século, um telegrama a três milhas de distância ou uma foto tirada numa fracção de segundo não seriam considerados possíveis, e não se acreditaria em qualquer testemunho, excepto pelo ignorante e supersticioso que acreditasse em milagres. Há cinco séculos, os efeitos produzidos pelo moderno telescópio e pelo microscópio seriam considerados miraculosos e, se fossem apenas relatados por viajantes como existentes na China ou no Japão, seriam certamente desacreditados. O poder de mergulhar uma mão em metais derretidos sem amachucar-se é um caso notável do efeito de leis naturais que parece contrapor-se a uma outra lei natural; e é um caso que certamente deve ter sido, e provavelmente foi, considerado como um milagre, e o facto foi acreditado ou não, não importa a qualidade ou quantidade dos testemunhos sobre ele, mas de acordo com a credulidade ou o conhecimento supostamente superior do observador. Há cerca de 50 anos, o facto de operações cirúrgicas poderem ser realizadas em pacientes em transe mesmérico sem que eles tivessem consciência da dor foi extremamente condenado pela maioria dos cientistas e médicos, e os pacientes, e em algumas vezes os cirurgiões, foram denunciados como impostores. O fenómeno em questão foi considerado contrário às leis da natureza. Agora, provavelmente todo o homem inteligente acredita nesses factos, e que deve haver alguma coisa como uma lei desconhecida da qual eles são uma consequência. Quando Castellet  informou Réaumur de que havia cultivado bichos-da-seda a partir dos ovos postos por uma mariposa virgem, a resposta foi Ex nihilo nihil fit (ii) e o facto foi desacreditado. Era contrário a uma das mais amplas e mais bem estabelecidas leis da natureza; agora ele é universalmente considerado verdadeiro e a suposta lei deixou de ser universal. Estas poucas citações irão permitir-nos entender como milagres conhecidos devem ter acontecido em virtude de leis da natureza ainda desconhecidas. Nós sabemos tão pouco sobre o que as forças da vida realmente são, como elas agem ou podem agir e em que grau está a sua capacidade de transmissão de um ser para o outro, que seria realmente temerário afirmar que sob nenhuma condição excepcional poderiam acontecer fenómenos, tais como as curas aparentemente miraculosas de muitas doenças ou a percepção de outros canais além dos sentidos ordinários.

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(ii) - Nota do Tradutor: “Do nada, nada foi feito”




Alfred Russel WallaceO Aspecto Científico do SobrenaturalII Milagres e a ciência moderna 1 de 2, 1º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Alfred Russel Wallace, o homem)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

a pedra e o joio ~

Panorama desolador |

Foi tendo em vista todo esse panorama desolador que resolvemos lançar esta nova edição da Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito, sob novo título capaz de abranger toda a área conflitual. Lançada a primeira edição há doze anos, em volumes de pequeno formato e composição em tipo miúdo, produziu ela os seus efeitos, mas já se encontra há muito esgotada. Muitas pessoas interessadas reclamam a reedição. Examinando o texto, vimos que ele ainda se apresenta como necessário no panorama actual. Foi a primeira crítica, rigorosamente crítica, oferecida ao meio doutrinário como um exemplo de como se deve desmontar uma doutrina absurda. Muitos dos seus tópicos se aplicam a outras formas de pretensa reformulação da doutrina. É um texto já clássico, modelo único de exame atento e minucioso de uma falsa teoria, não lhe faltando o exemplo de comedimento e de respeito humano ao responsável pela sua formulação e divulgação. Não teremos a falsa modéstia de negar o seu valor nesse sentido, mormente agora que o movimento da Educação Espírita atinge o plano universitário e exige a existência de textos dessa natureza, capazes de orientar os estudantes universitários no manejo da crítica espírita. Há momentos em que devemos ter a coragem de reconhecer e sustentar o valor das próprias obras elaboradas em favor da doutrina. Investimo-nos dessa coragem e lançamos o texto em nova edição, com endereço mais amplo e adaptado às exigências actuais. Não negaremos às novas gerações de estudantes universitários espíritas esse modelo ainda imperfeito, porque escrito sem o tempo necessário, mas valioso por o seu acerto no enfoque do problema e por sua eficácia indiscutivelmente provada.

Não buscamos nenhum efeito de interesse pessoal. A imprensa espírita ainda não está em condições de avaliar esforços desta natureza e a imprensa comum nem sequer tomará conhecimento desse trabalho. O que nos interessa é devolver à circulação um texto que tem a sua oportunidade e o seu valor relativo, atendendo a uma necessidade evidente do movimento espírita brasileiro. Ao lado de O Verbo e a Carne, cuja edição foi lançada recentemente, este pequeno volume poderá contribuir para orientar e estimular novas críticas dessa natureza. Nenhuma cultura se desenvolve sem crítica e sem exercício acurado do espírito crítico. O Espiritismo, ele mesmo, é um movimento crítico em favor do desenvolvimento da Civilização do Espírito, como vemos na obra gigantesca de Kardec. Todas as reacções que esta reedição provocar serão benéficas, mesmo quando possam parecer o contrário. A defesa da verdade está sempre acima dos melindres pessoais.

São Paulo, 18 de Abril de 1974.

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José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito, Panorama desolador, 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

sábado, 22 de novembro de 2014

O Espiritismo na Arte ~

Segunda lição de o Esteta

– Composição virtual de obras artísticas, A eclosão da inspiração

|22 de Novembro de 1921|

“Após ter-vos dado a descrição das cenas artísticas que registamos no espaço, para vós será interessante saber como agrupamos os elementos dessas cenas para compor virtualmente esses quadros.

Tentarei fazer-vos compreender como reunimos as moléculas necessárias para que a nossa vontade possa projectar os fluidos capazes de se transformarem nas obras que simbolizem a beleza sob todas as formas. Essas obras serão sentidas e percebidas por outros seres fluídicos que não são criadores.

Os seres imateriais que flutuam nas regiões fluídicas, infinitamente ricas e subtis, só as alcançaram por uma longa e progressiva evolução pela qual adquiriram conhecimentos e aptidões suficientes para eles mesmos poderem criar, no mundo onde vivem, entre as suas existências humanas.

Vejamos um exemplo. Um grande escultor, um grande pintor ou um grande artista parte da Terra. Ele ainda está sob a impressão dos trabalhos que executou durante a sua existência anterior; chegado ao espaço, não estando mais o seu espírito limitado pela matéria, ele revê o caminho percorrido desde o dia em que recebeu a essência criadora divina e adquire a certeza de que poderá, nas novas existências, desenvolver e completar o que podes chamar de parcela genial.

Ele vai ver, no espaço, desenrolarem-se todos os factos proeminentes que presidiram a eclosão da sua inspiração.

Se ele era arquitecto ou escultor, imediatamente, de acordo com a sua vontade, a sua memória voltará a traçar os monumentos ou as obras de arte que ele criou.

Admitimos que ele plane nesse meio do qual acabamos de falar; após um apelo a Deus, o seu pensamento encontrará, pelas suas radiações, fluidos suficientes para reconstituir todas as suas obras. Se elas têm um carácter verdadeiro de beleza, se a inspiração é pura, se o ideal é elevado, os outros seres que rodeiam o artista sentirão despertar em si mesmos um desejo de imitação e, pouco a pouco, o véu material sendo levantado, o seu pensamento pessoal será fecundado pelo do artista.

Assim, um grande mestre-escultor fará reviver esses belos monumentos nos quais a glória do Altíssimo foi cantada durante séculos. Então, imensas catedrais serão reedificadas; mas o artista não se limita sempre à obra que criou, a sua visão à distância também reencontra as obras dos seus discípulos, e algumas vezes a sua inspiração continua no espaço para formar de novo obras que tomam a diversos autores as partes mais bem-sucedidas de suas concepções. Se penetrasses no espaço, no plano elevado a que me refiro, poderias perceber que os monumentos, que não são semelhantes àqueles erigidos no vosso mundo, são reconstituídos pelo pensamento fluídico de seres inspirados por Deus.

O Criador supremo dá a cada um dos seus filhos uma parcela animadora que se exterioriza quando o culto do belo e do ideal desperta neles. Os vossos monumentos religiosos são as imagens vivas desse facto. Esses telhados arrojados, lançando-se em direcção ao céu, não são uma imagem fiel do pensamento do ser humano elevando-se numa prece derradeira a esse Deus que nos criou? Quer seja uma catedral ou um templo da Antiguidade, quer seja na Grécia, em Roma, em Florença ou no vosso país, procura e sempre encontras a confirmação de que o pensamento superior preside a eclosão das obras arquitectónicas.

Faço uma pequena comparação, talvez afastando-me do meu assunto: se considerardes a história da Arquitectura na Alemanha nestes tempos modernos, constatareis que a elevação em direcção ao céu é ausente, que formas maciças e quadradas substituem a cúpula ou a ogiva; o pensamento estende-se sobre a Terra e não se eleva mais em direcção ao divino.

Em pintura, estuda a escola florentina na época da Renascença; verificaras que quando as obras têm um cunho místico, os traços se divinizam e as cenas tomam características de real beleza e de verdadeira grandeza.

Ocorre o mesmo em todas as artes. A música sacra, por exemplo, tem um carácter que toca de mais perto o divino, enquanto que a música profana, quando se aproxima da matéria, reveste a característica de um realismo baixo e grosseiro.”

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LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte I – Segunda lição de o Esteta, Composição virtual de obras artísticas, A eclosão da inspiração, 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Nas garras do pensamento crítico ~

Nem um passo à frente ~

Quando Engels escreveu o seu artigo contra o método empírico-indutivo de Bacon, ou melhor, confundindo esse método com:

“O êxtase e a vidência, importados da América”, de que se fazia vítima o empirismo inglês, na pessoa do “eminentíssimo zoologista e botânico Alfred Russel Wallace”, o homem que, simultaneamente com Darwin, apresentou a teoria da evolução das espécies pela selecção natural, o materialismo dialéctico era uma conquista recente, um equívoco em forma de desenvolvimento, e não nos caberia censurá-lo por essa digna atitude de combate.

Engels não poderia entender de outra maneira o “desencaminhamento” de Wallace. Vê-se, não obstante, desse mesmo artigo, que Engels não ficaria no terreno da teoria. Embora mal, com a imperícia de quem jamais se interessara pelo assunto, procurou justificar as suas afirmações, através da observação e da experimentação.

O artigo de Engels foi publicado pela primeira vez em 1898. Devia ter sido escrito, segundo encontramos na edição brasileira da Dialéctica, em 1878. Engels criticava também os trabalhos de CrookesAksakof e Zöllner. É uma crítica violenta e irreverente, em que ele chega a considerar o Espiritismo “a mais estéril de todas as superstições”.

Como se vê, a afirmação não era dialéctica, mas empírica, inteiramente gratuita, e o longo roteiro das experiências espíritas e metapsíquicas aí está para desmenti-la.

Mas tinha a sua razão de ser. Podemos dizer, com Hegel, que o Zeitgeist, o espírito da época, a justificava.

O que espanta, entretanto, é que ainda hoje, quase um século depois, o artigo de Engels seja a única pauta dos que, como o professor Silva Mello, desejam eliminar do mundo em que vivemos, por incómoda, a realidade dos fenómenos espíritas, sem seguir sequer o exemplo de Engels no tocante à experimentação própria.

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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, Nem um passo à frente, 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Victor Hugo | uma chama de fogo a iluminar as idades


O exílio luminoso ~

Victor Hugo, poeta nacional da França, dedicou boa parte de sua vida literária e espiritual à Doutrina Espírita. O seu talento encontrou, nos princípios desta, fontes de inspiração que lhe permitiram escrever páginas brilhantes, as quais continuam guiando o pensamento humano sobre os grandes problemas metafísicos e religiosos.

As Contemplações, Raios e Sombras, A Legenda dos Séculos revelam conceitos realmente comovedores. Nestes livros o poeta manifestou uma profunda sabedoria espiritual como que inspirada por grandes potências do mundo invisível. E que Hugo, sempre ao serviço da verdade, tudo escreveu interrogando o Mais Além.

O seu génio romântico cresceu com a visão espírita do mundo; por isso, o seu romantismo foi como uma consequência desses mistérios espirituais que sempre o rodearam. Em Jersey, junto ao tripé mediúnico, o mesmo que foi usado pelas sacerdotisas de Apolo para dar oráculos em Delfos, enquanto o mar fustigava furiosamente a costa, foi que concebeu as suas grandes visões poéticas e sobrenaturais. Polemizou em verso com entidades invisíveis, com o que comprovou a existência do mundo dos espíritos.

O poeta sabia que o tripé era um instrumento mágico pelo qual a luz do mundo invisível pode vencer as trevas da terra. Sentia-se na Ilha de Jersey como João em Patmos, razão pela qual pode ser considerado como o fundador da Patmologia Espírita. Falou com o Espírito no meio do mar e escreveu um novo Apocalipse. Relacionou-se empregando a linguagem de Ronsard com Moliére e A Sombra do Sepulcro, duas elevadas personalidades mediúnicas.

O mar e a solidão acompanharam-no sempre e foram até os seus confidentes. Não obstante, aquela Ilha de Jersey tinha a virtude de povoar-se de entidades invisíveis que lhe falaram de liberdade, amor e recordações. A sua filha Leopoldina, desaparecida num naufrágio, se lhe fez presente por meio do tripé mediúnico e falou com a sua alma de modo terno.

O poeta sabia que os mortos não são devorados pelo abismo e que as distâncias metafísicas não podem alijá-los dos homens. Por isso, dizia: ''Devemos pedir justiça à morte, mas não devemos ser ingratos com ela. A morte não é, como se diz, uma queda nem uma emboscada''.

Proclamou, assim, que os mortos voltam. Resistia a aceitar um Além que impedia os espíritos desencarnados de comunicar-se com os homens. Aceitava, em troca, um mundo invisível comunicando-se com o visível; o invisível era para o poeta um templo repleto de presenças espirituais sempre dispostas a relacionar-se com a mente e o coração dos povos. Foi por isso que disse: "Os mortos são os invisíveis e não os ausentes".

A propósito, sustentava a tese de Allan Kardec, seu amigo nos caminhos da verdade, referente às ciências das manifestações espirituais. Participava destas importantes reflexões do destacado filósofo espírita: "Devemos pedir que os incrédulos nos provem, não por uma simples negativa, porque as suas opiniões pessoais não fazem lei, mas por razões lógicas, que isto não pode ser. Nós nos colocaremos sobre o seu terreno e, já que desejam apreciar os factos espíritas com a ajuda das leis da matéria, que tomem por conseguinte neste arsenal alguma demonstração matemática, física, química e fisiológica e provem por A mais B, partindo sempre do princípio da existência e sobrevivência da alma:

1°) Que o ser que pensa em nós durante a vida não pode pensar mais depois da morte.
2°) Que, se pensa, não deve pensar mais do que nos que amou.
3°) Que, se pensa naqueles que amou, não deve querer comunicar-se já com eles.
4°) Que, se pode estar em toda a parte, não pode estar ao nosso lado.
5°) Que, se está ao nosso lado, não pode comunicar-se connosco.
6°) Que, por seu envoltório fluídico, não pode agir sobre a matéria inerte.
7°) Que, se pode agir sobre a matéria inerte, não o pode sobre um ser animado.
8°) Que, se pode agir sobre um ser animado, não pode dirigir a sua mão para fazê-lo escrever.
9°) Que, podendo fazê-lo escrever, não pode responder às suas perguntas e transmitir-lhe o seu pensamento.''

Kardec concluiu dizendo: "Quando os adversários do Espiritismo nos demonstrarem que isto não pode ser, por razões tão patentes quanto aquelas pelas quais Galileu demonstrou que não é o Sol que gira à volta da Terra, então poderemos dizer que as suas dúvidas são fundadas".

Se precisássemos de uma definição para provar a qualidade de espírita de Victor Hugo, esta poderia ser: Ele foi o Isaías mediúnico maior da literatura romântica. Recorde-se que o romantismo de Hugo transcendeu as formas clássicas mediante uma transfiguração das coisas. Viu sempre em tudo um mundo invisível, quer dizer, um sustentáculo imaterial do mundo físico. Cantou a natureza com ritmos provenientes do mundo dos espíritos e pincelou poemas dedicados à alma do abismo, que falou por sua boca comovendo a literatura do seu tempo. "É necessário, mais do que nunca - dizia - ensinar aos homens o ideal, este espelho que reflecte o semblante de Deus! Poetas, filósofos, essa é a vossa obrigação''.

A sua presença era um convite ao transcendente. Tudo nele sugeria novos horizontes espirituais. Como Pedro LerouxSaint SimónJosé Mazzini, acreditava na reencarnação; por isso, a sua obra poética e filosófica está impregnada de um profundo lirismo palingenésico.

É curioso que a crítica não tenha reparado neste aspecto de sua produção, especialmente quando completou cento e cinquenta anos do seu nascimento. Com este motivo, Les Nouvelles Littéraires, reputado periódico literário de Paris, dedicou ao grande poeta francês o seu número 1277, de 21 de Fevereiro de 1952, no qual menciona com bastante discrição o Victor Hugo espírita.

Mas, apesar dessa reserva, a crítica reconhecerá um dia que o espírito de Victor Hugo, cósmico e profundo, se inspirou nas visões espirituais que o Espiritismo lhe sugeria. Dos poetas românticos, nenhum como ele compreendeu com tanta realidade o processo espiritual do homem e da história, chegando até Deus através de abismos e distâncias. Victor Hugo sustentava com fé poética e religiosa a palingenesia espiritual, de tudo o que existe.

A psicografia ou mediunidade da escrita secundava notavelmente o seu génio poético. Quando escrevia, dava-se conta de que a sua mão não lhe pertencia e que estava sob a influência de uma entidade lírica invisível. Porém, rebelava-se quando o seu génio era considerado pelos seus amigos exclusivamente mediúnico. Por isso, dizia: "Quando a obra parece sobrehumana, querem fazer intervir o extra-humano; antigamente era o tripé, nos nossos dias a mesinha. A mesinha não é outra coisa que a reaparição do tripé". Victor Hugo aceitava o mediúnico como uma "inspiração directa" do poeta, ou seja, que prescindia do veículo transmissor.

Todavia, Amado Nervo pensava diferente e para constatá-lo vejamos o que disse no seu poema Mediunidade:

Si mis rimas fuesen bel/as
enorgullecerme de ellas
no está bien,
pues nunca mías han sido
en realidad: ai oído
me las dieta ... ! no sei quién!
Y o no soy más que e/ acento
dei arpa que hiere el viento
veloz,
no soy más que el eco débil
de una voz ...
Quizás a través de mi
van despertando entre sí
dos almas llenas de amor,
en un misterioso estilo,
y yo no soy más que el hilo
conductor.

A esta declaração poética, Nervo ajuntou o seguinte: ''Grande número de poetas têm confessado o carácter mediúnico de sua inspiração. Alfredo de Musset diz: "On ne travaille pas: on écoute; c'est comme un iconnu qui parle á l'oreille". E Lamartine: "Ce n'est pas moi pense, ce son mes idées qui pensent pour moi".

E o nosso estranho Gutiérrez Nájera expressou com delicado acerto:

Y o no escriba mis versos; no los creo:
Viven dentro de mi, vienen de fuera:
A ése, travieso, lo formó e! deseo;
A aquél, lleno de luz, la primavera.

Suzanne Misset-Hopes (i), em importante estudo sobre o poeta, disse que multidões de diversas correntes e convicções sentem-se atraídas para recordar "o que se poderia chamar a mensagem de Victor Hugo, que se encontra numa obra magistral tecida de sombras e luzes, de mistérios e revelações, de inquisições e defesas". E mais: "Victor Hugo - todos sabemos - foi levado a sondar experimentalmente os grandes problemas do destino humano e a decifrar os segredos do além-túmulo e da harmonia cósmica por meio das "mesas falantes" de Jersey. Fez-se espírita e no seio de reuniões sobrenaturais tomou consciência da sua missão de profeta dos tempos que verão nascer uma nova ordem mundial, social e religiosa, baseado em leis fundamentais que regem a vida, leis que constituem os cimentos da verdadeira moral e cujo conhecimento solitário se comprova ser capaz de transformar a conduta dos homens em benefício de suas relações mútuas".

De facto, Victor Hugo foi o profeta que anunciou o advento de um novo espírito do mundo. Teve fé na justiça e na liberdade e afirmou os seus ideais de fraternidade universal. Lembre-se que o poeta imaginava os Estados Unidos da Europa sobre a base da união divina dos espíritos.

Vejamos como prossegue Suzanne Misset-Hopes: "Em toda a sua obra, particularmente na que criou no exílio, bastante impregnada dos contactos que nessa época teve com o Mais Além, deixa ver um ardente desejo de desprendimento das luzes espiritualistas de que se nutria a sua alma".

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(i) Ver o artigo Victor Hugo, Precursor, em Survie, setembro-outubro de 1952.


Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, O exílio luminoso, 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

terça-feira, 28 de outubro de 2014

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~

O movimento pancéltico (II)

Durante séculos os celtas ocuparam, no ocidente da Europa, a mesma situação. Repelidos do continente por grupos germânicos, e das Ilhas Britânicas pelas invasões anglo-saxónicas, eles tinham perdido a sua unidade, mas não a sua fé no futuro.

A Gália tornou-se a França, e não se falava mais a sua língua original, a não ser na Península Armoricana. Quanto às ilhas, os celtas se repartiram em quatro povos ou grupos diferentes, separados pelo braço de mar ou pelos grandes estuários, que são: a Irlanda, a Alta Escócia, o País de Gales e a Cornualha.

Que força moral, que vontade perseverante não foi preciso a essa raça céltica para manter a sua língua, as suas tradições, o seu próprio carácter! A história das perseguições sofridas pela Irlanda, durante dez séculos, é impressionante. O uso do idioma gaélico foi proibido e cada criança que pronunciasse uma única palavra, na escola, era castigada com cintadas.

E, no entanto, a Irlanda, por sua tenacidade, triunfou diante da opressão inglesa. Hoje, a Irlanda reconstituiu a sua língua primitiva. Ela é o único país onde os seus sotaques ressoam como língua oficial. Os celtas insulares e nós (os franceses) não temos o mesmo verbo, mas temos o mesmo pensamento; sem falarmos, nós nos compreendemos sempre.

Na Bretagne Francesa a perseguição foi mais moral e religiosa. Todos os emblemas do Druidismo, todos os nomes sagrados dos antigos celtas foram substituídos por símbolos católicos e por nomes de santos.

As menores lembranças do culto ancestral foram minuciosamente expurgadas. Nos tempos modernos, deve-se aos galeses o mérito de ter provocado o despertar da alma céltica, isto é, de ter dado impulso a uma corrente de opinião que, reaproximando as partes esparsas da raça, restabeleceu o contacto entre elas.

O movimento pancéltico, que tende a convergir para um fim comum os recursos e as forças dos cinco grupos célticos, nasceu no País de Gales no ano de 1850. Ele se desenvolveu rapidamente e as suas consequências prometem ser vastas e profundas.

Nos últimos cinquenta anos, apesar da 1ª Guerra Mundial, a situação dos celtas mudou bastante. A Irlanda reconquistou a sua independência; o Principado de Gales e a Ilha de Man possuem a sua plena autonomia; a Escócia trabalha eficazmente para realizar a sua; Bretagne Francesa é a única que ficou estacionária.

O primeiro objectivo a atingir era a salvaguarda das línguas célticas, garantia de raça inteira. A Irlanda conseguiu isso; os outros dialectos retomaram, também, força e vigor nos seus ambientes respectivos. Os professores que os ensinam são subvencionados pela Liga Céltica. Esta suscitou uma unidade de impulsão, inicialmente literária e artística, mas que depois se tornou, pouco a pouco, filosófica e religiosa.

Em 1570, uma assembleia solene, chamada “Eisteddfod”, foi presidida por William Herbert, Conde de Pembroke, o grande patrono da literatura galesa e o mesmo que fundou a célebre biblioteca de neogalês do castelo de Rhaglan, destruída mais tarde por Cromwell. Noutra reunião, realizada em Bowpyr, no ano de 1681, sob a direcção de Sir Richard Basset, os membros do congresso procederam a uma revisão completa dos antigos textos bárdicos Leis e Tríades.

As assembleias solenes são realizadas regularmente desde 1819. O “Gorsedd”, que as prepara, as organiza e assume a sua direcção, é uma instituição livre, recrutada em todas as classes da sociedade. Foi, no princípio, uma corte de justiça mantida pelos druidas. Apesar de eclipses temporários e de perseguições, essa instituição se manteve através dos séculos e é ainda ela, no momento actual, quem preside ao movimento geral pancéltico.

No século passado esse movimento aumentou e as assembleias solenes de Abergavenny, de Caer-Marthen, reuniam numerosos representantes das cinco grandes famílias célticas. Lamartine enviou a sua adesão sob a forma de um poema; eis a sua primeira estrofe:

E nós dizemos: Oh! filhos das mesmas plagas!
Nós somos uma parte do velho gládio vencedor;
Olhai para nossos olhos, cabelos e faces;
Vós nos reconhecereis pelo aspecto do coração?

Depois veio o Congresso de Saint-Brieuc, reunido pela convocação de Henri Martin, de H. de la Villemarqué e de um comité de celticos famosos. Outras delegações célticas atravessaram a Mancha para confraternizar com os bretões franceses.

Em compensação, o Congresso de Cardiff recebeu a visita de 21 dos nossos compatriotas. Em 1897, delegados galeses foram enviados a Dublin para participar da restauração do “Feiz-Céoil”. Na prefeitura de Dublin, sob a presidência do prefeito, Sir James Henderson, Lord Castletown, descendente de antigos reis celtas, aí disse estas palavras:

“A Liga Pancéltica, que tomou a iniciativa do Congresso, se propõe, unicamente, a reunir representantes celtas de todas as partes do mundo para manifestar a todos o seu desejo de preservar a sua nacionalidade e de cooperar para guardar e desenvolver os tesouros da língua, da literatura e da arte que lhes legaram os seus antepassados comuns.”

As associações célticas foram fundadas na França; o ensino superior incluiu a história e a literatura céltica. Cadeiras especiais foram criadas na Sorbonne, no Colégio de França, em 1870, em Rennes e em Poitiers.

Revue Celtique foi publicada em Paris, e não foi extinta até ao momento, estando sob a direcção principal de Gaidoz e de d’Arbois de Jubainville.

Após a publicação das obras célebres de Henri Martin, Jean Reynaud e A. Thierry, um marinheiro ilustre, o almirante Réveillère, pôde escrever:

“Está na ordem dos factos que os celtas, um dia ou outro, se agrupem conforme as suas afinidades e formem federações para defesa das suas fronteiras naturais e propagação dos seus princípios. É preciso que o Panceltismo se torne uma religião, uma fé... A obra de nossa época é dupla: primeiro, a renovação da fé cristã enxertada sobre a doutrina céltica da transmigração das almas, única doutrina capaz de satisfazer a inteligência pela crença no aperfeiçoamento indefinido da alma humana numa série de vidas sucessivas; segundo, a restauração da pátria céltica e a reunião num único corpo de seus membros, hoje separados.”

/…


LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO I – Origem dos celtas, Guerra dos gauleses, Decadência e queda, Longa noite; o despertar, O movimento pancéltico, 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: The Apotheosis of the French Heroes who Died for their Country During the War for Freedom_1802, pintura de Anne-Luis GIRODET-TRIOSON

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

teremos que modificar o nosso conceito da morte?

Estudos Científicos das Experiências de Quase Morte


Várias foram as teorias propostas a respeito das EQM. Algumas afirmam que as experiências são motivadas por alterações fisiológicas no cérebro tais como a morte de células provocada por anoxia cerebral, e possivelmente também pela libertação de endorfinas, ou pelo recetor NDMA - ácido N-metyl-Daspástico (Blackmore, 1993). Outras teorias associam à aproximação da morte uma reação fisiológica (Appelby, 1989) ou uma combinação de tal reação com anoxia (Owens et al., 1990).

Mas até há pouco não havia estudos científicos prospetivos destinados a explicar a causa e o conteúdo das EQM, e os estudos que havia eram retrospetivos e muito seletivos quanto aos doentes. Nesses estudos podem decorrer 5 a 30 anos entre a ocorrência das experiências e a sua investigação, o que impede uma exata avaliação de fatores médicos e farmacológicos. Desejávamos saber se poderia haver explicações fisiológicas, farmacológicas, psicológicas ou demográficas para a verificação de experiências conscientes durante períodos de morte clínica.

Assim, em 1988, começámos um estudo prospetivo com 344 sobreviventes de paragens cardíacas em dez hospitais holandeses (Van Lommel e outros, 2001) com o propósito de investigar a frequência, a causa e o conteúdo das EQM. Estudámos enfermos que sobreviveram a paragens cardíacas, porque essa é uma situação médica de risco de vida que se encontra bem descrita, da qual acaba por resultar a morte devido a danos cerebrais irreversíveis, se não tiverem lugar – dentro dos 5 a 10 minutos iniciais – manobras de ressuscitação cardiopulmonar (RCP). É a situação mais semelhante possível ao processo de morte.

A Definição de Morte Clínica

A definição de morte clínica foi usada para o período de inconsciência causado por anoxia cerebral devido à paragem respiratória e da circulação sanguínea que acontece durante a fibrilação ventricular de doentes com enfartes agudos do miocárdio.

As Experiências e os seus Resultados Estatísticos

Fizemos uma curta entrevista estandardizada com doentes suficientemente recuperados poucos dias após a ressuscitação, e perguntámos se se recordavam de algo durante o período de inconsciência. Nos casos em que eram referidas memórias, classificávamos as experiências de acordo com os referidos elementos constituintes da EQM. Quantos mais elementos fossem relatados, mais profunda tinha sido a mesma e mais elevada era a pontuação resultante.

Concluímos (Van Lommel e outros, 2001) que:

282 doentes (82%) não registaram recordações do período de paragem cardíaca e de perda da consciência;
62 doentes (18%) deram conta de recordações desse tempo de morte clínica (EQM);
Deste conjunto houve 41 doentes (12% do total) que registaram uma experiência profunda com 6 pontos ou mais e 21 (6%) que registaram uma experiência superficial.
Um grupo de 23 casos – 7%, fez relatos de experiências profundas ou muito profundas com 10 ou mais pontos na escala classificativa.
No nosso estudo cerca de 50% dos doentes com EQM/NDE relataram ter tido a noção de ter estado mortos, ou de terem tido emoções positivas;
cerca de 25% reportaram a experiência de ter estado “fora do corpo” (em inglês OBE – “Out of the Body Experience”);
30% narraram ter atravessado “um túnel”;
25% entraram em comunicação com “uma luz” ou visto “cores”;
cerca de 30% registaram ter contemplado uma “paisagem celestial”, tendo-se encontrado com parentes seus anteriormente falecidos;
13 % assistiram a uma “revisão de vida
e 8% referem ter sido detidos por “uma barreira” (NT – ao que se seguiu um regresso ao corpo).

O que é que poderá fazer a distinção entre a pequena percentagem de doentes que relatou uma EQM, e aqueles que nada relataram?

Concluímos com surpresa que nem a duração da paragem cardíaca, nem a extensão do período de perda da consciência, nem a necessidade de entubação em complicadas ressuscitações cardiopulmonares (RCP), nem a paragem cardíaca induzida em estimulação eletrofisiológica tinham tido qualquer influência na passagem por EQM.

Também não pudemos encontrar relações entre a frequência de EQM e a administração de drogas, o medo da morte antes da paragem cardíaca, o conhecimento prévio de EQM, o género, a religião ou nível de educação da pessoa.

EQM’s eram mais frequentemente relatadas por pessoas com menos de 60 anos, por doentes que tinham passado por mais de uma ressuscitação cardiopulmonar (RCP) durante a sua estadia hospitalar, e por pacientes que tinham tido EQM anterior.

Doentes com defeitos de memória induzidos por RCP prolongadas reportavam EQM com menos frequência. Uma boa memória de curto prazo parece ser essencial para recordar EQM’s.

Levámos a cabo (Van Lommel e outros, 2001), além disso, um estudo extenso com entrevistas gravadas com todos os últimos sobreviventes de EQM, 2 e 8 anos a seguir à paragem cardíaca, juntamente com dados comparativos de um grupo de controle, com sobreviventes de paragens cardíacas que não tinham relatado EQM.

O presente estudo estava concebido para determinar se a perda do medo da morte, a transformação da atitude perante a vida e a acentuação da sensibilidade intuitiva seriam resultado das EQM’s, ou apenas o resultado das paragens cardíacas.

Somente os doentes com EQM mostraram transformações da personalidade, e os efeitos transformadores de longa duração ocasionados por experiências que tinham durado apenas escassos minutos foram uma descoberta surpreendente e inesperada.

Tal como afirmado, foram várias as teorias propostas para explicar as EQM. Contudo, no nosso estudo prospetivo não pôde ser demonstrado que fatores psicológicos, farmacológicos e psicológicos fossem a causa das experiências após as paragens cardíacas. Com explicações puramente fisiológicas tais como anoxia cerebral, a maior parte dos doentes que estiveram clinicamente mortos relatariam EQM. Todos os doentes do nosso estudo tinham estado inconscientes devido à anoxia cerebral resultante da sua paragem cardíaca.

Contudo os processos neurofisiológicos devem desempenhar um certo papel nas EQM, porque experiências desse género podem ser induzidas mediante “estímulos” elétricos aplicados em certos locais do córtex de doentes com epilepsia (Penfield, 1958); com elevados níveis de dióxido de carbono (hipercapnia) (Meduna, 1950), em atenuada perfusão sanguínea cerebral resultante em hipoxia cerebral localizada, tal como nas rápidas acelerações de treino dos pilotos de caça (Whinnery and Whinnery, 1990), ou como em hiperventilação seguida pela manobra de Valsalva (Lempert e outros, 1994). Experiências do género da EQM/NDE também foram relatadas depois do uso de drogas como a cetamina (Jansen, 1996), LSD (grof e Halifax, 1977) ou cogumelos (Schröter-Kunhardt, 1999).

Estas experiências induzidas podem resultar em períodos de perda de consciência, mas também podem consistir na perceção de sons, luz, clarões ou recordações passadas.

Tais recordações contudo, são memórias casuais e fragmentadas ao contrário da “revisão de vida” que tem lugar durante a EQM.

Ocasionalmente também podem ocorrer “experiências fora do corpo” durante certas experiências induzidas. Contudo, os processos de transformação da personalidade raramente podem ser experimentados depois de experiências induzidas.

As experiências induzidas não podem, pois, ser idênticas a EQM’s.

Uma outra teoria sustenta que a EQM poderia ser um estado de transformação da consciência (transcendência, ou teoria da continuidade) no qual memórias, identidade, cognição com emoção, funcionam independentemente do corpo inconsciente, retendo a possibilidade da perceção não-sensória.

Obviamente, durante a EQM está disponível um grau mais acentuado das perceções conscientes, diferente daquele que é normal durante o funcionamento corpóreo em estado de vigília.

Em três estudos prospetivos com idêntica finalidade, aproximadamente a mesma percentagem de EQM foram registados:

18% dos 344 sobreviventes dinamarqueses de paragem cardíaca relataram EQM (Van Lommel e outros, 2001);
15,5% dos 116 sobreviventes americanos de paragem cardíaca relataram, EQM (Greyson, 2003)
e 11% de 63 sobreviventes britânicos de paragem cardíaca relataram EQM (Parnia e outros, 2001).

Apenas no nosso estudo holandês pôde ser estudada a relação estatística entre possíveis fatores que podem influenciar a ocorrência de EQM. Greyson (2003) escreveu no seu comentário que nenhum modelo fisiológico ou psicológico poderia explicar por si só todas as características comuns das EQM.

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Dr. Pim van LommelAs Experiências de Quase-Morte, A Consciência e o Cérebro, Estudos Científicos das Experiências de Quase Morte, A Definição de Morte Clínica, As Experiências e os seus Resultados Estatísticos (2º fragmento) tradução para a língua portuguesa de palavra luz depois de autorizada pelo autor.
(imagem de contextualização: O Hospital Rijnstate, em Arnhem – Holanda)

sábado, 27 de setembro de 2014

o sentido da vida ~

Negativas da Ciência'

A natureza profundamente deísta do Espiritismo e a sua posição filosófica ao lado do dualismo de Descartes, contra o monismo de Espinosa, no que se refere às relações entre o corpo e o espírito, suscitam contra ele as negativas da ciência académica. E o dizemos, ciência académica tendo em conta que muitos cientistas, do maior renome mundial, constituindo uma plêiade suficiente para a organização da verdadeira academia da ciência espírita, já demonstraram publicamente, até mesmo através de obras científicas como o Tratado de Metapsíquica, de Charles Richet, a evidência dos factos espíritas e a legitimidade de sua interpretação doutrinária.

A tendência moderna da biologia é a de considerar o homem do ponto de vista de Espinosa, a que acima aludimos, ou seja, como um todo de corpo e espírito, em que um não actua sobre o outro, pela simples razão de que são ambos diferentes aspectos de uma só e a mesma coisa. Mas há uma diferença, que devemos lembrar. Espinosa ia muito além na sua concepção das coisas, dos simples limites orgânicos, materiais, a que se prende a biologia moderna.

A ciência académica, porém, prefere o monismo de Espinosa naquele sentido restrito, negando a possibilidade, já tantas vezes comprovada, da existência independente do espírito. Para ela, morto o corpo, estará extinto o espírito. Também a existência de Deus para ela é uma simples hipótese.

Dessa maneira, e uma vez que os atributos de Deus estão ao alcance de todos, o materialista e o descrente podem amar a Deus e, consequentemente, chegar à crença e ao espiritualismo através do amor a Deus por um dos seus atributos, ou seja, do amor à verdade.

A ciência também pode ser definida, neste caso, como um acto de amor a Deus. Pois o que procura a ciência, senão descobrir a verdade? As suas negativas actuais decorrem apenas das suas próprias limitações, da sua temporária impossibilidade de atingir o conhecimento da verdade mais ampla, que ela deseja atingir e atingirá fatalmente no futuro. Para isso, a ciência terá de juntar aos seus dados os conseguidos através da experiência filosófica e da busca religiosa. No dia em que isto se fizer, não mais veremos cientistas materialistas, esforçando-se ao máximo para negar a evidência das manifestações espíritas. Nesse dia, o pensamento humano, que partiu da análise científica, chegará à síntese filosófica, pela reunião de todos os dados do conhecimento, hoje divididos em campos opostos e até mesmo antagónicos.

Mas, assim como um homem que avança pela estrada vai aos poucos descortinando o panorama das regiões que atingirá mais tarde, assim também a humanidade tem vislumbres e visões antecipadas das suas conquistas futuras. O Espiritismo é bem uma dessas visões, perfeitamente delineadas nos seus contornos. Na sua estrutura doutrinária ele já nos oferece a síntese daqueles três ramos do conhecimento humano. Apoiando-se na ciência, que observa e regista os fenómenos considerados supranormais, ele ergue ante os nossos olhos o edifício de uma filosofia que é a interpretação do mundo e da vida em espírito e verdade, culminando, por isso mesmo, naquilo que Kardec chamou de consequências religiosas, isto é, na religião espírita, que não depende de aparatos exteriores porque é todo um processo interior de sentimento e compreensão.

Friedrich Engels, na Dialéctica da Natureza, depois de fazer várias críticas a Russel Wallace e a William Crookes, não perdoando mesmo a interpretação do apocalipse feita por Isaac Newton, chega à conclusão, por sua conta e risco, de que o Espiritismo é a mais estéril de todas as superstições (aliás, trata-se de um artigo de Engels, adicionado ao manuscrito do livro). Para Engels, os cientistas espíritas pertencem todos à classe dos empíricos ingleses, que só se ocupam com o assunto na decrepitude. Engels, porém, era o defensor de uma nova teoria nascente, a da interpretação materialista do mundo, sendo justo que assim reagisse, diante da teoria que surgia para combater a sua, a da interpretação espiritualista racional, científica e não empírica. Engels defendia a sua posição por amor à verdade, e nesse sentido, embora não crendo em Deus, ele o amava, através de seu atributo “verdade”.

Muitos anos mais tarde, Leonidio Ribeiro e Murillo de Campos, no Brasil, apossaram-se dos argumentos de Engels. Mais tarde ainda, Osório César tentou fazer o mesmo, com o seu livro Misticismo e loucura, que foi forçado a negar. E ainda mais tarde, já agora, nos nossos dias, quando quase cem anos se passaram sobre a Dialéctica de Engelsa ciência tomou novos rumos, aproximando-se cada vez mais das verdades espirituais, agora que entramos no campo aberto da desintegração atómica, provando que a matéria não é mais do que uma condensação de energia, agora que Einstein rasga os horizontes da Física, através da sua nova teoria, da gravitação generalizada e do campo unificado, outro médico brasileiro, o prof. Silva Mello, escreve e publica o seu Mistérios e realidades deste e do outro mundo, repetindo os mesmos e encanecidos argumentos de Engels.

É claro que, do nosso ponto de vista, esses doutores não estão incluídos no número dos materialistas que podem amar a Deus, pelo menos através do amor à verdade.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Negativas da Ciência, 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Giovanna ~

III

Sobre uma das colinas que bordejam o lago, a alguma distância de Gravedona, estende-se uma cortina de teixos e de ciprestes. A sua sombra verdejante aparece de longe, misturada de manchas de brilhante brancura. Lages funerárias, cruzes de madeira ou de pedra erguem-se entre os verdes ramos. É o Campo-Santo (o cemitério), o lugar onde se vêem solucionar a cadeia infinita das dores humanas. Uma flor brilhante desabrocha entre as tumbas e esparge no ar agradáveis fragrâncias. A luz jorra, e os pássaros cantam sobre as pedras sepulcrais. Com efeito, que importa à natureza que tantas esperanças e alegrias aí estejam sepultadas aos olhos dos humanos? Por isso, não deixaria de se seguir o ciclo de suas maravilhosas transformações.

Não longe da entrada do cemitério, uma grande laje de mármore está cercada de roseiras, de jasmins, de cravos rubros, entre os quais zumbem os insectos. Uma acácia a cobre com a sua sombra. Lá dormem, embalados pelos ecos longínquos, pelos murmúrios enfraquecidos da vida, os pais de Giovanna, e é a sua piedosa mão que mantém essas flores. Várias vezes por semana, ela desce para orar na Igreja de Gravedona, e de lá, seguida de sua ama de leite, ganha o campo fúnebre onde moram os despojos dos seus; lá também repousa o corpo do pai de Maurice, e este, no seu taciturno tédio, gosta de percorrer essas áleas silenciosas, retemperando o seu espírito na grande calma da cidade dos mortos. Um dia, os dois jovens aí se encontraram, Giovanna, ajoelhada, a cabeça caída sobre a tumba de sua mãe, parecia conversar em voz baixa com ela; via-se os seus lábios moverem. Que dizia à morta? Que misteriosa troca de pensamentos se operava entre essas duas almas? Maurice não sabia, mas receando perturbar-lhe o recolhimento, mantinha-se à parte, imóvel, atento. Levantando-se, Giovanna percebe-o, e a sua face se enrubesce. Enquanto ele, feliz por este reencontro, se aproxima e a cumprimenta.

– Senhorinha – disse – vejo que um mesmo motivo nos conduz a este lugar. É doce, não é, nos revermos próximo daqueles que perdemos, experimentando que a sua lembrança está sempre gravada nos nossos corações?

– Sim, respondeu ela, e no cumprimento desse dever se é possuído de forças novas, se é fortalecido no bem. Cada vez que venho aqui, saio mais calma, mais submissa à vontade de Deus.

– Sente você também isso que experimento próximo dos mortos? Desde que me aproximo da tumba de meu pai, parece que uma comunicação íntima se estabelece entre eu e ele. No fundo do meu ser uma conversação se estabelece. Creio escutar a sua voz, falo-lhe e ele me responde. Mas talvez isso não seja mais que uma ilusão vã, um efeito da nossa emoção?

Ela eleva para ele os seus olhos que brilham de um fogo profundo e doce.

– Não, isso não é uma ilusão – disse – também escuto essas vozes interiores. Tenho aprendido desde há  muito tempo a compreendê-las. E não é somente aqui que se fazem escutar, em qualquer lugar que esteja, se chamo pelo pensamento os meus queridos invisíveis, eles vêem, me aconselham, me encorajam, guiam  os meus passos na vida; a tumba não é uma prisão, todos, ao mais, podem considerá-la como uma espécie de altar de recordações. Não creio que as almas aí estejam encantadas.

– As almas dos mortos voltam então para a Terra?

– Pode-se disso duvidar? – Disse a moça. – Como, aqueles que nos amaram aqui em baixo se desinteressariam de nós no espaço? Libertas dos laços da matéria, não estão elas mais livres, e a lembrança do passado não as reconduziriam para nós? Sim, certamente, retornam, se associam às nossas alegrias, às nossas dores. Se Deus o permitisse, nós os veríamos frequentemente ao nosso lado, regozijando-se com nossas boas acções, entristecendo-se com as nossas faltas.

– Todavia você é uma católica fervorosa, ora, o catolicismo não ensina que na morte a alma é julgada e, segundo o decreto divino eternamente fixada ao lugar do castigo ou à morada dos bem aventurados ?

– Adoro Deus, obedeço de meu melhor à sua lei, mas esta lei é uma lei de amor e não uma lei de rigor. Deus é muito bom e muito justo para punir eternamente. Conhecendo as fraquezas do homem, como poderia mostrar-se tão severo para com ele?

– Qual será então, segundo você, a sanção do bem e como se consumaria a justiça divina?

– A alma, deixando a Terra, vê descerrar-se o véu material que lhe fazia esquecer a sua origem, os seus destinos. Compreende então a ordem do mundo; vê o Bem reinar acima de tudo. Segundo a sua vida tenha sido boa ou má, estéril ou fecunda, conforme ou contrária à lei do progresso, goza uma paz deliciosa ou sofre um cruel remorso, até que retome a tarefa inacabada.

– E como é isso?

– Retornando para esta terra de provas e de dores, trabalhando pelo seu adiantamento, ajudando as suas irmãs na marcha comum para Deus.

– Você pensa então que a alma deve cumprir várias existências aqui em baixo?

– Sim, eu o sinto, uma existência não pode ser suficiente para nos permitir atingir a perfeição; e como, sem isso, explicar que as crianças de Deus sejam tão dessemelhantes de carácter, de valor moral, de inteligência?

– Permita de me espantar que na idade em que tantas jovens são divertidas e risonhas e você seja tão séria, tão reflexiva, tão esclarecida das coisas do alto.

– É sem dúvida porque tenho vivido mais do que aquelas de quem você fala.

– Creio, como você, que a existência actual não é a primeira que cumprimos, mas, por que a lembrança do passado está apagada na nossa memória?

– Porque os barulhos e as ocupações da vida material nos desviam da observação interior de nós mesmos. Muitas reminiscências de minhas vidas, uma vez por outra, me vêem ao espírito. Creio que muitas pessoas poderiam reconstituir as suas existências passadas analisando os seus gostos, os seus sentimentos.

– A amizade ou a repugnância instintiva que sentimos, à primeira vista, por certas pessoas, não terá a sua fonte nesse obscuro passado?

– Sim, sem dúvida, mas devemos resistir a esses sentimentos de repugnância. Todos os seres são nossos irmãos e nós lhes devemos a nossa afeição.

– Assim, este impulso irresistível, que me leva para você desde o primeiro dia que a vi, esta força que não faz senão crescer depois de nosso encontro na casa de Marta, e que me faz procurá-la por toda parte, seria uma prova de que nós já nos teríamos reencontrado e conhecido sobre a terra.

A moça sorriu e corou.

– Querida donzela – continua Maurice num tom grave e emocionado – devo dizer-lhe, os nossos pensamentos se unem numa concordância singular. Reencontro em você todas as minhas ideias; mas essas ideias, confusas no meu espírito, crescem e se aclaram passando por sua boca. A solidão e a reflexão têm feito de você um anjo de bondade, de doçura; a mim, me tinha azedado, tornado indiferente aos sofrimentos humanos. Mas no dia em que a vi, na hora compreendi onde estava o bem, o dever. A minha vida recebeu uma impulsão nova. É a você que devo esta revelação. Vendo-a, escutando-a, um véu se descerrou, um mundo infinito de sonhos, de imagens, de aspirações, se mostrou aos meus olhos. Assim, a sua presença se tornou uma necessidade para mim, uma alegria profunda. Permita-me esperar que possamos rever-nos frequentemente.

Um ruído de passos e de vozes o impede de continuar, vindo, a propósito, esconder a perturbação de Giovanna. Um cortejo mortuário se aproxima; uma salmodia lúgubre se prepara no ar. A jovem moça chama a sua ama de leite, mas, antes de se afastar, faz um sinal amigo a Maurice e lança as palavras: até logo!

O jovem a seguiu, com o olhar, até que a sua veste branca tivesse desaparecido no ângulo da álea.

A admiração que havia despertado no espírito de Maurice, no seu primeiro encontro com Giovanna, ia crescendo à medida que aprendia a conhecê-la melhor. Mas, pouco a pouco, esta impressão estava mudando num sentimento todo novo. Após cada uma de suas conversas na casa de Marta, ele se sentia, como havia dito, melhor, mais inclinado para o bem, mais doce para com os seus semelhantes. O poder misterioso que irradiava em torno da jovem o envolvia, fazia fundir o que tinha de duro, de glaciar na sua alma. Uma força atractiva, invencível, o atraía para ela. Uma espécie de embriaguez subia ao seu cérebro assim que escutava o som da sua voz. Maurice a amava. Amava com o ardor juvenil, com o entusiasmo de um coração que fala pela primeira vez. Cada dia descobria em Giovanna uma perfeição nova. Todos aqueles que a conheciam, todos esses humildes habitantes do vale que ela havia socorrido, não celebravam as suas virtudes? E como, malgrado a sua doçura e a sua modéstia, se mostrava superior a todas as moças da sua idade! Maurice havia vivido próximo às moças da grande cidade lombarda, ele conhecia as alegres meninas de Como e das margens do lago. Em nenhuma parte, havia encontrado uma igual. Havia vivido a vaidade, o desejo de brilhar, de reinar entre a maior parte delas. Sem dúvida, havia aí sedutoras pessoas, jovens capazes de tornar um esposo feliz, entre as que havia encontrado; nenhuma possuía esta simplicidade unida a esse ar nobre e doce, esse não sei o quê de sobre-humano, essa chama quase divina que se reflectia nos olhos de Giovanna, ganhando os corações, afastando daqueles que dela aproximavam todo o pensamento baixo ou impuro. Não era isso uma coisa maravilhosa, o escutá-la, aos dezoito anos, falar com tanta convicção das grandes leis ignoradas pelo homem, perceber os sombrios mistérios da vida e da morte, reconfortar os indecisos, mostrar a todos o dever? Eis o que dizia Maurice, após a conversa do cemitério, com a imagem de Giovanna preenchendo-lhe o espírito. Repassava na sua memória todos os incidentes que o haviam aproximado dela. Revia-a tal qual lhe tinha aparecido, num dia de festa, na Igreja de Gravedona, absorta na sua prece, enquanto que à volta tudo era barulho, movimento de caixas removidas, esfregação de panos sobre as lajes. E de tudo isso: recordações, pensamentos, secretas esperanças, libertava-se um sonho delicioso, um sonho de amor e de felicidade, que acariciava silenciosamente no fundo de sua alma.

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Léon Denis, Giovanna 1880, III 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Retrato, pequena pintura que especialistas de arte italiana atribuem a Rafael Sanzio)