quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Alfred Russel Wallace e o Sobrenatural ~

III  Os Milagres modernos vistos como Fenómenos Naturais (II)

Pareceria então que, se o meu argumento possui algum peso, que nada é contraditório nem absolutamente inconcebível na ideia de haver inteligências incognoscíveis de forma directa através dos nossos sentidos e capazes de agir mais ou menos poderosamente sobre a matéria. Para algumas mentes, sobre a existência de tais seres há apenas uma alta improbabilidade, baseada na suposta ausência total de provas. Existindo provas directas, parece que não haverá razão para que a maioria dos filósofos cépticos se recuse a admitir a sua existência. Seria apenas um assunto a ser investigado e testado como qualquer outra questão de ciência. As evidências teriam que ser obtidas e examinadas. Os resultados das pesquisas de diferentes observadores teriam que ser comparados. O carácter dos observadores quanto ao conhecimento, exactidão e honestidade seriam ponderados e, no mínimo, alguns dos factos confiáveis, teriam de ser novamente observados. Apenas, desta maneira, todas as fontes de erro seriam eliminadas e uma doutrina de extraordinária importância, seria considerada verdadeira. Eu, proponho agora que se questione se tais provas foram dadas e, se a evidência pode ser obtida por qualquer um que deseje investigar o assunto, da única forma que a verdade pode ser alcançada: pela observação directa e pela experimentação.

Eis o primeiro facto. Durante os últimos 40 anos, enquanto as ciências físicas progrediram a passos largos e o crescente espírito de nacionalismo nos levou a questionar de forma geral todos os factos de um carácter supostamente miraculoso ou sobrenatural, um número continuamente maior de pessoas mantém a sua crença na existência daqueles seres da natureza que até agora nós temos postulado como uma simples possibilidade. Todas estas pessoas declaram que elas receberam directas e as repetidas provas da existência de tais seres. Muitas nos dizem que foram convencidas do contrário de suas ideias e pressuposições anteriores. Muitas destas pessoas eram materialistas, não acreditando na existência de quaisquer inteligências desconectadas de uma forma visível e tangível, nem na continuidade da existência do homem após a morte. No momento presente, há provavelmente três milhões de pessoas nos Estados Unidos da América que receberam satisfatórias provas da existência de inteligências invisíveis; e, na Inglaterra, há muitos milhares que declarara a mesma coisa. Um grande número destas mesmas pessoas continuadamente recebe novas provas na privacidade de suas casas, e tanto interesse desperta o assunto que quatro periódicos são publicados neste país, diversos no continente, (*) e um grande número na América, todos exclusivamente devotados a disseminar informações relacionadas com a existência destas inteligências invisíveis e dos meios para se comunicar com elas. Uma pequena revisão da literatura especializada, que já é bastante extensa, revela o facto surpreendente de que esta revivescência do tão conhecido sobrenaturalismo não está confinada aos ignorantes ou supersticiosos, ou as classes mais baixas da sociedade. Ao contrário, é nas classes média e alta que a maior proporção dos seus adeptos, é encontrada; e, entre os que se declaram convencidos da realidade dos factos que tem sido classificados como milagre, há numerosos literatos, cientistas e profissionais qualificados que sempre mantiveram um carácter ilibado, estão acima de qualquer imputação de falsidade ou mistificação e nunca manifestaram qualquer traço de insanidade. Esta crença também não se encontra confinada a qualquer seita ou partido. Pelo contrário, homens de todas as religiões e sem nenhuma religião são normalmente encontrados nas fileiras dos que acreditam; e, como já foi dito, muitos completamente cépticos à existência de quaisquer inteligências super-naturais no universo declararam que, pela força da evidência directa, eles foram, apesar de sua vontade, compelidos a acreditar que tais inteligências realmente existem.

Aqui está, com certeza, um fenómeno absolutamente único na história do pensamento humano. Ao examinar as evidências de prodígios similares ocorridos em épocas passadas, temos que fazer muitas concessões à educação primária e à quase universal crença pré-existente na possibilidade e frequente ocorrência de milagres e aparições sobrenaturais. Nos dias de hoje, é um facto notório que, entre as classes instruídas - e especialmente entre estudantes de medicina e ciência -, o cepticismo para com tais assuntos é quase universal. Mas o facto mais extraordinário, absolutamente inconsistente com qualquer teoria de fraude, falsidade ou auto-ilusão, é que, durante os 47 anos que se passaram desde o renascimento, na América, de uma crença no sobrenatural, não houve um único indivíduo que tenha cuidadosamente estudado o assunto e ficado sem aceitar a realidade dos fenómenos, e conquanto milhares tenham sido convertidos à crença, nenhum dos seus adeptos foi reconvertido à descrença. Enquanto os indivíduos peculiarmente constituídos, que são os médiuns (**) dos fenómenos, possam ser contados aos milhares, nenhum deles, em nenhum momento rejeitou a falsidade, se falsidade havia. E dos poucos que recebem pagamento para dar o seu tempo aqueles que desejam testemunhar as manifestações, é de se notar que nenhum tenha ainda tentado ser o primeiro no mercado com uma história cheia de aparatos maravilhosamente engenhosos e extraordinária habilidade que tivesse sido utilizada para fazer de tolos os muitos milhões de pessoas, e para estabelecer uma nova literatura e uma nova religião. Eles deveriam ser muito cegos para não verem que tal trabalho seria a mais rentável especulação.

Se há uma coisa que a filosofia moderna ensina mais consistentemente que qualquer outra é que não há conhecimento à priori dos fenómenos naturais ou das leis naturais. Mas declarar que quaisquer factos, testemunhados independentemente por diversas pessoas, sejam impossíveis, e agir de acordo com esta declaração a ponto de se recusar a examinar estes factos quando a oportunidade se dá, é considerar certo este conhecimento à priori da natureza que já foi universalmente descartado. Um dos nossos mais célebres homens de ciência cometeu este erro quando fez a afirmação infeliz de que, "antes de fazer algo para considerar qualquer questão envolvendo princípios físicos, precisamos estabelecer ideias claras sobre o que é naturalmente possível e impossível". Nenhum homem pode estar certo sobre estas ideias do possível, não importa o quão "claras" elas possam ser. Era "claramente impossível" às mentes dos filósofos em Pisa que um peso grande e um outro pequeno pudessem cair do topo de uma torre alta ao mesmo tempo; e, se este princípio possui qualquer utilidade, eles estariam correctos em descrer na evidência dos seus sentidos, que lhes asseguravam que isto aconteceu; e Galileu, que aceitou esta evidência, seria "não apenas ignorante com relação à formação de um julgamento, mas ignorante de sua ignorância", se usássemos as mesmas palavras desta autoridade eminente. Homens que repetidamente, e sobre condições que não deixam qualquer dúvida, testemunharam factos evidentes que os seus professores declaram não serem reais, mas se recusam a provar ser falsos pelo único meio possível, que é o de um amplo e imparcial exame, podem ser desculpados por pensarem que o seu caso é semelhante ao de Galileu e dos seus oponentes.

A fim de que os meus leitores possam julgar por si mesmos se a ilusão ou a fraude seria a melhor explicação para estes factos, ou se realmente fizemos uma descoberta mais importante e mais extraordinária que qualquer outra que tenha honrado o século XIX, eu proponho que se tragam algumas testemunhas, cujas evidências é bom que se ouça antes que se faça um julgamento apressado. Eu trarei pessoas de destaque ligadas à ciência, à arte ou à literatura e cuja inteligência e integridade ao narrarem as suas próprias observações estão acima de qualquer suspeita. Insistiria particularmente que nenhuma objecção geral tem qualquer peso contra a evidência directa dos factos, especiais, muitos dos quais são de tal natureza que absolutamente não há escolha entre acreditar que eles aconteceram, em ter que imputar a todos os que declaram tê-los testemunhado uma voluntária e propositada falsidade.

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(*) No continente europeu. Nota do tradutor.
(**) O autor usou o termo latino média, em lugar da palavra médiuns, criada por Kardec. Nota do tradutor.


Alfred Russel WallaceO Aspecto Científico Sobrenatural, III Os milagres modernos vistos como fenómenos naturais 2 de 2, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel, detalhe, de Edgard Maxence)

domingo, 5 de novembro de 2017

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~

A Irlanda

A história da Irlanda, através dos séculos, tem sido um longo martirológio. As perseguições sofridas obrigaram a metade da população a se expatriar, em busca de terra distante, deixando a ilha verdejante, tão cara para os corações célticos. Em menos de um século, a população caiu de oito para quatro milhões de habitantes. É desde essa época que se encontram os celtas em todas as partes do mundo.

Essa ilha é, entretanto, como vimos, o único país onde a língua céltica se revestiu de um carácter e de uma forma oficial. Rica, maleável, variada nas suas expressões, essa língua deu origem a uma literatura rica, na qual se reflecte toda a alma irlandesa, móvel, impressionável, sensível ao excesso e apaixonada por todas as grandes causas.

Frequentei, durante certo tempo, no Colégio de França, o curso de Literatura Céltica, de d’Arbois de Jubainville. Havia entre nós muitos irlandeses que ouviam, com avidez, a narração das proezas do seu herói nacional, Couhoulainn. Seguimos o texto gaélico num livro alemão, porque não existia a tradução francesa, e esta penúria – é preciso reconhecer, para nossa vergonha – não se encontra somente neste tipo de estudos.

O professor nos ensinava que os manuscritos em língua gaélica datam do século V, e ao se enumerar todos aqueles que foram publicados até ao século XV, verifica-se que eles representam matéria de mil volumes.         
       
Dessa obra volumosa brotam duas grandes fontes de inspiração, às quais os escritores irlandeses sempre consultam. Inicialmente, são as Epopéias Primitivas, colectânea de feitos históricos relativos à luta, longa e comovente, dos insulares contra os saxões invasores e opressores. É daí que os combatentes da última guerra da independência retiravam os exemplos e a lembrança que inflamavam a sua coragem e sustentavam o seu entusiasmo patriótico.

Depois, é a História Lendária dos Bardos e as Tríades, que na ordem filosófica e religiosa são como uma espécie de Bíblia para o mundo céltico e cuja paternidade é comum à Irlanda e ao País de Gales. Ela não foi fixada pela escrita a não ser no século VIII, ou pelo menos não se possui manuscritos mais antigos. Mas está estabelecido que esses cantos e essas Tríades eram transmitidos oralmente, há muitos séculos, e que a sua origem se perde na noite dos tempos. Sabe-se que o ensino esotérico dos druidas era reservado unicamente aos iniciados e que não se podia transcrevê-lo a não ser na forma de uma escrita em vegetal, simbólica, cujo segredo somente era comunicado aos adeptos.

Apenas quando o poder dos druidas foi extinto e os bardos foram perseguidos é que se pensou em recolher esse ensino e entregá-lo à publicidade.

Encontram-se sinais dessas altas inspirações em toda a obra literária da Irlanda, junto ao culto ardente da Natureza, que é uma das formas do génio céltico. A sua rica poesia reflecte o encanto penetrante dessa ilha verdejante com as suas florestas profundas, os seus lagos sombrios, os seus horizontes brumosos e as costas abruptas, recortadas, onde as ondas lançam os seus queixumes eternos.

Em todos os lugares pairam enxames de almas: duendes, gnomos, génios tutelares ou malfeitores, aos quais se misturam as almas dos mortos, os espíritos, cujo fluido material, paixões, ódios e amores encadeiam à Terra, e que se tornam errantes, aguardando uma reencarnação nova, visto que, neste ponto, os textos são formais: a Irlanda acreditava na pluralidade das vidas humanas.

Em todas as épocas, e talvez mais do que em algum outro país, a Irlanda teve então a intuição, o sentido íntimo e profundo da vida invisível, do mundo oculto, desse oceano de forças e de vida, povoado de multidões inumeráveis, cuja influência se estende sobre nós e, conforme as nossas disposições psíquicas, nos protege ou nos atormenta, nos entristece ou nos arrebata.

É porque na história da Irlanda, como na Escócia, os feiticeiros exercem uma grande função. Os próprios santos possuiam poderes misteriosos que se poderiam comparar ao magnetismo e ao dom da mediunidade. Para nos convencermos disso podem ser lidas as biografias de S. Patrício e de S. Colombano, padroeiros da ilha.

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LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO II – A Irlanda 1 de 3, 8º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, OssianDesaixKléberMarceau,HocheChampionnet, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)