terça-feira, 17 de outubro de 2023

~ nas garras do pensamento crítico


Situações novas ~

Essas possibilidades se tornam cada vez mais visíveis, graças à aceleração do processo histórico no século actual (XX). A teoria marxista da luta de classes, comprovada pelos factos, caminha, entretanto, dentro das novas condições da evolução técnica e do progresso científico, para formas inteiramente novas. A ideia da revolução proletária já não parece tão nítida e precisa como nos fins do século XIX e nos princípios do século XX. Os derradeiros movimentos revolucionários, inclusive o maior deles, a revolução chinesa, apenas teoricamente se basearam no proletariado. As forças em luta foram antes populares do que proletárias e, não somente no conjunto das massas, mas também nos organismos dirigentes. Por outro lado, nos países de maior desenvolvimento industrial, ao contrário do que pressupõe a tese marxista, a revolução proletária se torna mais difícil, como nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Alemanha, em França e na Itália. Nos três últimos países, o Partido Comunista tem crescido, não em virtude das condições específicas da vida proletária, mas das condições gerais, com indiscutível predominância da situação camponesa e pequeno-burguesa.

Podemos perguntar, diante disso: Onde se encontra a “consciência de classe” do proletariado norte-americano ou do inglês – este o mais antigo e o mais impenetrável ao marxismo –, para o golpe de libertação no capital acumulado em escala jamais vista? As condições sociais evoluem com rapidez vertiginosa. Os progressos da técnica, aliados ao desenvolvimento intelectual e psíquico do homem, geram situações inteiramente novas e, os marxistas se esquecem dos princípios dialécticos da sua própria filosofia, continuando apegados a dogmas já superados pelo processo histórico. Pietro Ubaldi, em A Grande Síntese, emite este conceito, em que os materialistas dialécticos deviam meditar: “Se a luta foi, a um tempo, de natureza física, hoje é económica e nervosa e, amanhã será espiritual e ideal, muito mais digna de ser travada.”

O choque apocalíptico ~

Marx viu, na sua época, a necessidade de se construir uma filosofia de classe para o proletariado, a fim de que este, tomando consciência da sua missão histórica, se colocasse à altura da mesma. A filosofia foi construída e tornou-se um dos grandes momentos do conhecimento humano, mas o proletariado não a absorveu, senão em doses mínimas. Criou-se, por isso mesmo, a teoria das “minorias dirigentes” e, o exemplo do bolchevismo, na Rússia, tornou-se clássico. As minorias, entretanto, só podem vencer, não pela violência, mas pelo excesso de violência e, só podem manter o seu domínio pela opressão crescente. O tempo se encarregou de nos mostrar quanto estas duras realidades colocaram o sonho do socialismo científico distanciado das suas raízes revolucionárias.

Surge, assim, uma nova situação mundial. As minorias marxistas criam as potências orientais, enquanto as minorias capitalistas se entrincheiram no ocidente. O nosso grão de areia é dividido nos hemisférios antípodas que hoje se digladiam, ameaçados de mútua destruição, pelas perspectivas da guerra atómica. Para lutar contra o imperialismo, contra os trustes imperialistas, a Rússia Soviética teve também de construir o seu próprio poder imperialista, criar o seu estatismo absorvente. O que Marx não previa aconteceu.

A violência dirigida, metódica, intencional, revelou-se fonte inesgotável de novas formas de violência, em escala incalculável. E a força das ideias mostrou-se mais poderosa do que a própria luta de classes, mais criadora e destruidora do que os próprios antagonismos da produção capitalista. A lei da “negação da negação” lançou-se, como o monstro Frankenstein, contra o próprio criador, pois o idealismo marxista superou em muito, na sua própria aplicação, a realidade proletária dos princípios do século. O marxismo negou-se a si mesmo, para dar nascimento ao poder proletário, face a face com o poder capitalista. Não são, por acaso, a tese e a antítese da dialéctica hegeliana que se defrontam, neste momento, em proporções apocalípticas, no panorama internacional? E a síntese não virá do novo choque mundial, já em pleno desenvolvimento?

Hora de libertação ~

Essa conclusão tem de ser a seguinte: os marxistas cometeram um dos grandes equívocos da história, ao oferecerem à força a resistência de outra força. Não é do choque dos “semelhantes”, mas dos “contrários” que resulta a progresso e, os “contrários” não são determinados pela forma, pela aparência, mas pela substância.

A forma proletária da violência não modifica a substância própria da violência e, os “contrários”, traduzidos apenas numa expressão formal, não podem produzir o progresso substancial. Por outro lado, o proletariado não é uma substância, mas uma eventualidade, pois a divisão da sociedade em classes é artificial. Armando-se o proletariado de poderes semelhantes aos da burguesia, transformamo-lo em massa burguesa, da mesma maneira por que esta, em muitos países, inclusive no Brasil, armada com os poderes do feudalismo, se tornou um poder feudal, a antítese da burguesia francesa que derrubou a Bastilha. Pois o homem é o mesmo, tanto numa classe como noutra e, a influência das condições sociais não tarda a se fazer sentir, na sua atitude perante a sociedade. Esquecer a substância humana no processo económico é fugir para a abstracção de uma economia autónoma, solta no espaço e no tempo. Nem foi por outro motivo que a jovem revolucionária polaca Larissa Reissner, a grande autora de Homens e Máquinas, ao ver os seus antigos camaradas transformados nos comissários económicos, verdadeiros “negociantes oficiais do partido”, temeu pelo naufrágio da revolução no pântano burguês e preferiu deixar o território da revolução para voltar ao inferno de sua génese, na Alemanha burguesa.

Nesta altura, poderíamos surpreender o sorriso irónico dos materialistas-dialécticos, a nos perguntarem: “Mas o que deveríamos então, opor à força e ao poder do capitalismo?” Não, não responderemos “o que deveriam”, pois palavras foram deturpadas, perderam o seu verdadeiro sentido e, não queremos que os interlocutores, mesmo imaginários, nos dêem as costas sem mais aquela. Responderemos que tudo quanto se fez até agora tinha de ser feito, estava nas linhas do determinismo-histórico, na exigência das próprias condições sociais, não poderia fugir às contingências de um mundo em fermentação, impulsionado pelo instinto e pela paixão. Voltemos a Ubaldi, que mais uma vez nos esclarece o problema: “Não sois ainda uma sociedade, mas apenas uma grei, um desencadeamento de forças psíquicas primordiais, explodindo confusamente.”

Mas responderemos, também, que a hora chegou – e agora é – em que as coisas devem tomar novo rumo. Esse rumo o Espiritismo aponta com clareza, a todos os que tiverem “olhos de ver”. É o rumo do Espírito, da solução espiritual e, só ela nos livrará do torniquete da força contra a força, da violência contra a violência, do jogo cego e inconsequente do poder material. RuskinTolstóiTagore e Gandhi avultam neste momento da história humana.

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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, Situações novas, O choque apocalíptico, Hora de libertação, 13º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Fotografia de Rabindranath Tagore)

domingo, 8 de outubro de 2023

Victor Hugo | uma chama de fogo a iluminar os longínquos dias das idades


Victor Hugo e o Sentido da História ~

Victor Hugo acreditava e sabia que a história temporal, não obstante a sua objectividade material, está destinada a voltar ao seio da história divina. Ou seja, que o efeito histórico deverá reintegrar-se no seio do divino para pôr termo a um ''tempo defeituoso'', onde o Ser se debate atacado por duas contradições existenciais.

O poeta francês compreendeu que a verdadeira poesia é uma emanação do mundo interno da natureza e que a sua essência se traduz por uma voz que sobe dos abismos da alma. Descobriu na história uma sucessão de factos cuja finalidade têm a sua raiz nos séculos palingenésicos do Ser. Viu assim que a história das existências se refunde na história dos seres espirituais, em cujo seio está a realidade divina do mundo dos espíritos.

Para Victor Hugo, o apocalipse terreno desembocava num apocalipse espiritual, dois processos que só se explicam pela lei da reencarnação. A história morre, mas renasce com os espíritos; a sua objectividade está determinada pelo encarnar e desencarnar dos seres espirituais, ou seja, pela alma dos homens, antes espíritos, que encarnam e desencarnam. Kant tembém pressentiu este mesmo fenómeno ao reconhecer a realidade de um mundo invisível com a possibilidade de se comunicar com o mundo dos homens.

A reencarnação dos espíritos é a verdadeira base da história humana, a que se mostra como processo visível na causa da história espiritual e divina que a rege. Victor Hugo acreditou nesta dualidade histórica, numa "história humana" fundada na história divina e transcendental".

A reencarnação dos espíritos é uma penetração da história divina temporal e humana. O processo de encarnação e desencarnação a que estão submetidos os espíritos é a base real de todo o mistério histórico. E a poesia de Hugo foi como uma revelação através da qual a beleza contribuiu com o desenvolvimento da história em relação com a história espiritual e divina.

A inspiração do grande poeta francês captou nas suas bases mediúnicas que não haverá história natural e humana sem história espiritual e divina. O seu génio se transfigurou de tal modo que pôde compreender que todo o humano é um processo determinado pela reencarnação dos espíritos, ou seja, que a História e Reencarnação são dois fenómenos movidos pelo mundo invisível.

Espiritismo como manifestação objectiva do Espírito de Verdade é a noção mais positiva para deixar demonstrado que o mundo dos espíritos é a base real do mundo dos homens. Opera-se assim uma transfiguração da morte pela força religiosa da mediunidade. De contrário, o que seria a história sem a potência escatológica da mediunidade? Resultaria um fenómeno sem sentido e um processo caótico destinado à morte e ao nada.

Portanto, se a poesia de Victor Hugo foi profética é porque foi religiosa, apocalíptica porque mediúnica. Ela se uniu ao Espírito de Verdade para proclamar que Deus existe e que tudo avança progressivamente com o fim de se instalar na Cidade dos Espíritos Puros. Os críticos esqueceram que se Hugo foi genial é porque dentro de seu ser imortal estava a luz do mundo invisível e que se a sua poesia determinou um romantismo filosófico e religioso original é porque os tripés da ilha de Jersey lhe abriram as janelas do infinito. Porque o génio de Victor Hugo sem o fenómeno mediúnico resultaria num enigma, do mesmo modo que uma nova visão histórica sem a lei da reencarnação do ser se tornaria um caos entremeado de horror e beleza.

Victor Hugo acreditava na sua espiritualidade pessoal. Achou no seu próprio ser as bases de todo um esquema metafísico e religioso do universo. Sentia-se uma força ultra-material por cujo motivo a sua carne se transfigurava. Era um vidente que via continuamente o para além das coisas, o que o fez não se deter nos caminhos puramente materiais da vida. A existência para o poeta foi uma senda que conduz ao conhecimento dos grandes enigmas da natureza.

O seu génio nunca repeliu o cristianismo; pelo contrário, viu na doutrina de Jesus a mais alta e acabada expressão das revelações divinas. Por isso, a sua criação poética e literária difere da dos seus colegas, que consideravam o homem somente um fenómeno fisiológico. O seu lema era: "Existir para a Verdade", mas este existir não se apoiava na vida efémera material. Ele pressentiu um existir infinito relacionado com o mistério do universo. A vida para o poeta era uma espiritualidade invencível e triunfante.

Acreditava no eterno porque via na natureza e na história um princípio imortal, o que o fez ter fé nessa verdade inalterável procedente de Deus. Acreditou nos "espíritos" da terra e do ar, da água e do vento, como os iniciados medievais. Desde a sua infância, cultivou uma filosofia espiritualista, que confirmou experimentalmente ao conhecer a mensagem que lhe ditaram os tripés na ilha de Jersey.

Auguste Vacquerie, no seu livro As migalhas da história, disse afirmativamente que Victor Hugo era espírita, como o foram Théophile GautierVictorien SardouGiuseppe MazziniCamille Flammarion e outros pensadores dos finais do século XIX. Acreditou realmente na imortalidade da alma e na sua evolução palingenésicaÉmile de Girardin e Eugène Nus deram também testemunho de suas convicções espíritas, como foi confirmado na edição de 7 de maio de 1899 do "Les Annales Politique et Litteraire''.

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Humberto Mariotti (i)Victor Hugo Espírita, Victor Hugo e o Sentido da História, 12º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)