terça-feira, 4 de outubro de 2016

Alfred Russel Wallace e o Sobrenatural ~

III - Os Milagres Modernos vistos como Fenómenos Naturais ~

Um argumento contra os milagres muito poderoso entre os homens de inteligência (e especialmente entre aqueles que se acostumaram com o amplo escopo das revelações da ciência moderna), é derivado do pressuposto prevalecente de que, se reais, eles são actos directos da divindade. Frequentemente, a natureza destes actos é tal que nenhuma mente educada pode por um momento imputá-los a um ser infinito e supremo. Poucos, se alguns, dos famosos milagres nos parecem ser dignos de Deus; e é o próprio homem de ciência quem está melhor capacitado a formar uma concepção própria da distância e da dificuldade para aproximar-se da natureza dos atributos que devem pertencer à mente suprema do universo. Contudo, é estranho dizer que, na maioria dos casos, o homem de ciência é ilógico suficientemente para considerar as dificuldades desta pressuposição como um argumento válido contra a existência dos factos em questão, em lugar de ser apenas um argumento contra a forma de interpretá-los. Ele ainda toma esta objecção mais adiante, pelo igualmente infundado pressuposto de que quaisquer seres que na possibilidade consigam produzir os fenómenos alegados devam ser de uma ordem mental superior e, portanto, se os fenómenos não estão de acordo com suas ideias da dignidade das inteligências superiores, ele simplesmente condena os factos sem examiná-los. Ainda muitos dos que  o objectam admitem que a mente do homem provavelmente não é aniquilada com a morte e que, por conseguinte, incontáveis, milhões de seres, estão constantemente passando para outro modo de existência e que, a menos que o milagre da transformação mental aconteça, eles devem continuar sendo muito inferiores. Portanto, qualquer argumento contra certos fenómenos terem sido produzidos por inteligências sobre-humanas, considerando a natureza trivial ou inútil de tais fenómenos, não traz qualquer suporte real lógico para a questão. A pressuposição de que todas as inteligências sobre-humanas são mais inteligentes que a média da humanidade é completamente gratuita e impotente para refutar factos, da mesma forma que os oponentes de Galileu, quando afirmaram que os planetas não podiam exceder ao numero perfeito, sete, e que, portanto, os satélites de Júpiter não podiam existir. Vamos voltar às considerações da natureza provável e dos poderes destas inteligências sobre-humanas, cuja possível existência é o meu objecto a ser sustentado no presente.

Eu tenho razões para supor que pode haver, e provavelmente há, outras (e talvez infinitamente variáveis) formas de matéria e modos de movimento etéreo além daquele que os nossos sentidos nos permitem reconhecer, com base na primeira parte deste artigo. Nós precisamos então admitir que deve haver, e possivelmente há, organizações adaptadas para agir sobre e a receber impressões destas formas de matéria. No universo infinito deve haver possibilidades infinitas de sensações, cada uma tão distinta das demais como a visão o é do paladar ou da audição, e tão capaz de estender a esfera de conhecimento e desenvolvimento do intelecto daquele que a possui como o sentido da visão ao ser adicionado aos demais sentidos que possuímos. Os seres de uma ordem etérea, se existirem, provavelmente possuem um ou mais sentidos da natureza acima referida, o que lhes permite uma compreensão maior da constituição do universo e uma inteligência proporcionalmente ampliada a guiar e dirigir para fins especiais aqueles novos modos de movimento etéreo com os quais eles estariam aptos a lidar. Cada faculdade que eles possuem deve proporcionar os modos de acção no éter. Eles devem ter uma capacidade de movimento tão rápida quanto a luz ou a corrente eléctrica. Devem ter uma capacidade de visão tão aguda quanto a dos nossos mais poderosos telescópios e microscópios. Devem ter um sentido de alguma forma análogo aos poderes de um dos últimos triunfos da ciência, o espectroscópio, e por meio dele são capazes de perceber instantaneamente a constituição íntima da matéria em cada uma das suas formas, seja nos seres organizados ou nas estrelas e nebulosas. Tais existências, possuidoras de poderes inconcebíveis para nós, não seriam sobrenaturais, a não ser num sentido muito limitado e incorrecto do termo. E se tais poderes são postos em acção de maneira a serem percebidos por nós, o resultado não seria um milagre, no sentido em que o termo é empregado por Hume ou TyndallNão haveria qualquer "violação de uma lei da natureza", nenhuma violação da "lei de conservação da energia". Nenhuma matéria ou força seria criada ou aniquilada, mesmo que assim nos parecesse. Num universo infinito, o grande reservatório de matéria e de força deve ser infinito; e o facto de um ser etéreo ser capaz de exercer força-extraída talvez do éter sem fronteiras, talvez das energias vitais dos seres humanos - e realizar os seus efeitos visíveis a nós como uma aparente ‘criação’ seria um milagre tão real quanto o perpétuo crescimento de milhões de toneladas de água do oceano, ou o perpétuo exercício de força animal sobre a Terra, os quais nós apenas recentemente ligamos ao sol, e talvez de forma remota o sejam a outras e variadas fontes perdidas na imensidade do universo. Tudo continua sendo natural. As grandes leis da natureza ainda manteriam a sua inviolável supremacia. Nós devemos apenas confessar, como um moderno homem de ciência, que "os nossos cinco sentidos são nada mais que instrumentos toscos para investigar o imponderável", e deveríamos ver um novo e mais profundo significado nas muito citadas mas pequenas palavras cuidadosas do grande poeta, quando ele nos lembra que "há mais coisas no céu e na Terra que supõe a nossa filosofia". (i)

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(i) Shakespeare, em Hamlet. Nota do tradutor.


Alfred Russel WallaceO Aspecto Científico do Sobrenatural, III Os milagres modernos vistos como fenómenos naturais 1 de 2, 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel, detalhe, de Edgard Maxence)

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