terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Quem quer que sejas, fica sabendo que nos encontraremos algum dia ~

O amor é a celeste atracção das almas e dos mundos, a potência divina que liga os Universos, governa-os e fecunda-os; o amor é o olhar de Deus!

Não se designe com tal nome a ardente paixão que atiça os desejos carnais. Esta não passa de uma imagem, de um grosseiro simulacro do amor. O amor é o sentimento superior em que se fundem e se harmonizam todas as qualidades do coração; é o coroamento das virtudes humanas, da doçura, da caridade, da bondade; é a manifestação na alma de uma força que nos eleva acima da matéria, até às alturas divinas, unindo todos os seres e despertando em nós a felicidade íntima, que se afasta extraordinariamente de todas as volúpias terrestres.

Amar é sentir-se viver em todos e por todos, é consagrar-se ao sacrifício, até à morte, em benefício de uma causa ou de um ser. Se quiseres saber o que é amar, considera os grandes vultos da Humanidade e, acima de todos, Cristo, o amor encarnado, Cristo, para quem o amor era toda a moral e toda a religião. Não disse ele: “Amai os vossos inimigos”?

Por essas palavras, Cristo não exige da nossa parte uma afeição que nos seja impossível, mas sim a ausência de todo ódio, de todo o desejo de vingança, uma disposição sincera para ajudar nos momentos precisos aqueles que nos atribulam, estendendo-lhes um pouco de auxílio.

Uma espécie de misantropia, de lassidão moral por vezes afasta do resto da Humanidade os bons Espíritos. É necessário reagir contra essa tendência para o insulamento; devemos considerar tudo o que há de grande e belo no ser humano, devemos recordar-nos de todos os sinais de afecto, de todos os actos benévolos de que temos sido objecto. Que poderá ser o homem separado dos seus semelhantes, privado da família e da pátria? Um ente inútil e desgraçado. As suas faculdades estiolam-se, as suas forças se enfraquecem, a tristeza invade-o. Não se pode progredir isoladamente. É imprescindível viver com os outros homens, ver neles companheiros necessários, O bom humor constitui a saúde da alma. Deixemos o nosso coração abrir-se às impressões sãs e fortes. Amemos para sermos amados!

Se a nossa simpatia deve abranger a todos os que nos rodeiam, seres e coisas, a tudo o que nos ajuda a viver e mesmo a todos os membros desconhecidos da grande família humana, que amor profundo, inalterável, não devemos aos nossos genitores: ao pai, cuja solicitude manteve a nossa infância, que por muito tempo trabalhou em aplanar a rude vereda da nossa vida; à mãe, que nos acalentou e nos reaqueceu no seu seio, que velou com ansiedade os nossos primeiros passos e as nossas primeiras dores! Com que carinhosa dedicação não deveremos rodear-lhes a velhice, reconhecer-lhes o afecto e os cuidados assíduos!

À pátria também devemos o nosso concurso e o nosso sacrifício. Ela recolhe e transmite a herança de numerosas gerações que trabalharam e sofreram para edificar uma civilização de que recebemos os benefícios ao nascer. Como guarda dos tesouros intelectuais acumulados pelas idades, ela vela pela sua conservação, pelo seu desenvolvimento; e, como mãe generosa, os distribui por todos os seus filhos. Esse património sagrado, ciências e artes, leis, instituições, ordem e liberdade, todo esse acervo produzido pelo pensamento e pelas mãos dos homens, tudo o que constitui a riqueza, a grandeza, o génio da nação, é compartilhado por todos. Saibamos cumprir os nossos deveres para com a pátria na medida das vantagens que auferimos. Sem ela, sem essa civilização que ela nos lega, não seríamos mais que selvagens.

Veneremos a memória desses que têm contribuído com as suas vigílias e com os seus esforços para reunir e aumentar essa herança; veneremos a memória dos heróis que têm defendido a pátria nas ocasiões criticas, de todos esses que têm, até à hora da morte, proclamado a verdade, servido à justiça, e que nos transmitiram, tingidas pelo seu sangue, as liberdades, os progressos que agora gozamos.

O amor, profundo como o mar, infinito como o céu, abraça todas as criaturas. Deus é o seu foco. Assim como o Sol se projecta, sem exclusões, sobre todas as coisas e reaquece a natureza inteira, assim também o amor divino vivifica todas as almas; os seus raios, penetrando através das trevas do nosso egoísmo, vão iluminar com trémulos clarões os recônditos de cada coração humano. Todos os seres foram criados para amar. As partículas da sua moral, os germes do bem que em si repousam, fecundados pelo foco supremo, expandir-se-ão algum dia, florescerão até que todos sejam reunidos numa única comunhão do amor, numa só fraternidade universal.

Quem quer que sejas, vós que ledes estas páginas, fica sabendo que nos encontraremos algum dia, quer neste mundo, nas existências vindouras, quer em esfera mais elevada ou na imensidade dos espaçossabei que somos destinados a nos influenciarmos no sentido do bem, a nos ajudarmos na ascensão comum. Filhos de Deus, membros da grande família dos Espíritos, marcados na fronte com o sinal da imortalidade, todos somos irmãos e estamos destinados a conhecermo-nos, a unirmo-nos na santa harmonia das leis e das coisas, longe das paixões e das grandezas ilusórias da Terra. Enquanto esperamos esse dia, que o meu pensamento se estenda sobre vós como testemunho de terna simpatia; que ele vos ampare nas dúvidas, vos console nas dores, vos conforte nos desfalecimentos e que se junte ao vosso próprio pensamento para pedir ao Pai comum que nos auxilie a conquistar um futuro melhor.

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LÉON DENIS, Depois da Morte, Parte Segunda Os Grandes Problemas – O Amor.
(imagem de ilustração: The Little Knitter_1882, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

São chegados os tempos ~

Os tempos marcados por Deus chegaram dizem-nos em todos os lados, durante os quais se realizarão grandes acontecimentos para regeneração da humanidade.

Que sentido devemos dar a estas palavras proféticas?

Para os incrédulos não têm qualquer importância; a seus olhos não passa da expressão de uma crença pueril sem fundamento; para a maior parte dos crentes elas têm qualquer coisa de místico e de sobrenatural que lhes parece ser o prenúncio da desorganização das leis da natureza. Estas duas interpretações são igualmente erradas: a primeira no que implica de negação da Providência; a segunda, no que estas palavras não anunciam a perturbação das leis da natureza, mas o seu cumprimento.

Tudo é harmonia na Criação; tudo revela uma previsão que não se desmente, nem nas mais pequenas coisas nem nas maiores; devemos portanto começar por afastar qualquer ideia de capricho inconciliável com a sabedoria divina; em segundo lugar, se a nossa época está marcada pela realização de certas coisas, é porque elas têm a sua razão de ser no andamento do conjunto.

Posto isto, diremos que o nosso globo, como tudo o que existe, está submetido à lei do progresso. Progride fisicamente pela purificação dos Espíritos encarnados e não encarnados que o povoam. Estes dois progressos seguem-se e caminham paralelamente, pois a perfeição da habitação está em relação com a do habitante. Fisicamente, o globo sofreu transformações constatadas pela ciência e que o foram sucessivamente tornando habitável pelos seres cada vez mais aperfeiçoados; moralmente, a humanidade progride com o desenvolvimento da inteligência, do sentido moral e suavização dos costumes.

Ao mesmo tempo que se opera a melhoria do globo sob o império das forças materiais, os homens concorrem para isso com os esforços da sua inteligência; saneiam as regiões insalubres, tornam as comunicações mais fáceis e a Terra mais produtiva.

Esta dupla evolução realiza-se de duas maneiras: uma lenta, gradual e insensível; a outra por mudanças mais bruscas, em cada uma das quais se opera um movimento ascensional mais rápido do que marca, por características definidas, os períodos progressivos da humanidade. Estes movimentos, subordinados nos pormenores ao livre-arbítrio dos homens, são de certo modo fatais no seu conjunto, porque estão submetidos a leis, como as que se operam na germinaçãocrescimento e maturidade das plantas; é por isso que o movimento progressivo é por vezes parcial, quer dizer, limitado a uma raça ou a uma nação, outras vezes geral.

O progresso da humanidade efectua-se portanto por virtude de uma lei; ora, como todas as leis da natureza são obra eterna da sabedoria e da presciência divinas, tudo o que é efeito destas leis é resultado da vontade de Deus, não de uma vontade acidental e caprichosa, mas de uma vontade inalterável. Quando então a humanidade estiver madura para subir um degrau, podemos dizer como também podemos dizer que em determinada estação os tempos chegaram para a maturação dos frutos e para a colheita.

Pelo facto de o movimento progressivo da humanidade ser inevitável por estar na natureza, não se segue que Deus lhe seja indiferente e que depois de ter estabelecido as leis tenha voltado à inacção deixando as coisas andarem sozinhas. As suas leis são eternas e imutáveis, sem dúvida, mas porque a sua vontade é ela mesma eterna e constante e que o seu pensamento anima todas as coisas sem interrupção; o seu pensamento, que tudo penetra, é a força inteligente e paciente que mantém tudo em harmonia; se esse pensamento deixar um só instante de agir, o Universo será como um relógio sem pêndulo regulador. Deus vela portanto incessantemente pelo cumprimento das suas leis e os Espíritos que povoam o espaço são os seus ministros encarregados dos pormenores, de acordo com as atribuições correspondentes ao seu grau de evolução.

O Universo é simultaneamente um mecanismo incomensurável conduzido por um número menos incomensurável de inteligências, um imenso governo onde cada ser inteligente tem a sua parte de acção sob o olhar soberano do Mestre, cuja vontade única mantém em todo o lado a unidade. Sob o império deste vasto poder regulador tudo se move, tudo funciona numa ordem perfeita; os que se nos apresentam como perturbações são os movimentos parciais e isolados que só nos parecem irregulares porque a nossa visão está circunscrita. Se pudéssemos abarcar o conjunto, veríamos que estas irregularidades não são aparentes e que elas se harmonizam no todo.

A humanidade realizou até hoje incontestáveis progressos; os homens, pela sua inteligência, chegaram a resultados que nunca tinham atingido no campo das ciências, das artes e do bem-estar material; falta-lhe ainda um imenso progresso a realizar: é fazer com que reine entre eles a caridade, a fraternidade e a solidariedade, para garantir o bem-estar moral. Não o poderiam com as suas crenças nem com as suas intuições antiquadas, resto de uma outra era, boas para uma certa época, suficientes para um estado transitório mas que, tendo dado o que continham, seriam hoje um ponto de paragem. Já não é somente o desenvolvimento da inteligência que faz falta aos homens, é a elevação do sentimento, e para isso é preciso destruir tudo o que possa sobreexcitar neles o egoísmo e o orgulho.

É assim o período em que vão doravante entrar e que marcará uma das fases principais da humanidade. Esta fase que se elabora neste momento é o complemento necessário do estado antecedente, assim como a idade viril é o complemento da juventude; podia portanto ser prevista e profetizada com antecedência e é por isso que dizemos que os tempos marcados por Deus já chegaram.

Neste tempo agora, não se trata de uma mudança parcial, de uma renovação limitada a uma região, a um povo, a uma raça; é um movimento universal que se opera no sentido do progresso moral. Uma nova ordem de coisas tende a estabelecer-se e os homens que mais se opõem a isso trabalham nesse sentido sem o saberem; a geração futura, liberta da escória do velho mundo e formada por elementos mais depurados, encontrar-se-á animada de ideias e de sentimentos muito diferentes da geração actual que se vai embora a passos de gigante. O velho mundo morrerá e viverá na história tal como hoje vivem os tempos da Idade Média com os seus costumes bárbaros e as suas crenças supersticiosas.

De resto, todos sabem quanto a ordem actual das coisas deixa ainda a desejar; depois de ter, de certa maneira, esgotado o bem-estar material que é produto da inteligência, conseguimos compreender que o complemento deste bem-estar só pode estar no desenvolvimento moral. Quanto mais se avança, mais se sente o que falta, sem no entanto o podermos definir claramente ainda: é o efeito do trabalho íntimo que se opera para a regeneração; têm-se desejosaspirações, que são como que o pressentimento de um estado melhor.

Mas uma mudança assim tão radical como a que se elabora não se pode realizar sem comoção; há aí uma luta inevitável entre as ideias. Deste conflito nascerão forçosamente perturbações temporárias até que o terreno esteja preparado e o equilíbrio restabelecido. É então da luta de ideias que surgirão os graves acontecimentos anunciados e não de cataclismos ou catástrofes puramente materiais. Os cataclismos gerais eram consequência do estado de formação da Terra; hoje, já não são as entranhas do globo que se agitam, são as da humanidade.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo XVIII, SÃO CHEGADOS OS TEMPOS – Sinais dos tempos, números de 1 a 7, fragmento. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de ilustração: Dafne, a Sibila délfica, afresco na Capela Sistina por Michelangelo)

sábado, 25 de janeiro de 2014

o sentido da vida ~

a formação do homem ~

O grande físico inglês, sir Oliver Lodge, escreveu uma pequena obra, sintetizando as conquistas da ciência e da filosofia, no terreno do conhecimento do homem em si mesmo, para concluir, de acordo com as novas perspectivas abertas pelo Espiritismo, em favor da tese renovadora de que o homem é ainda um processo em desenvolvimento. Essa tese contradiz os dogmas religiosos que definem o homem como obra consumada de Deus, mas não contradiz os ensinamentos mais profundos e mais antigos das escrituras sagradas, em que as religiões procuram assentar as suas bases, nem contradiz o resultado das modernas pesquisas científicas e a mais avançada concepção filosófica da origem e do destino do homem.

A teoria do transformismo, da evolução das espécies, de Charles Darwin, simultaneamente apresentada pelo grande botânico e zoólogo Alfred Russel Wallace, que mais tarde escreveu o seu famoso livro Os Milagres e o Moderno Espiritualismo, apresenta o homem como descendente directo de espécies inferiores, dos animais, e mais proximamente, do macaco.

Segundo essa teoria, o homem é um ser que vem sendo elaborado pela natureza através de longo processo, passando pelas mais variadas experiências biológicas, para chegar ao seu estado actual, e daqui avançar para a frente. Assim, a vida não é mais do que um trabalho constante de elaboração, e o homem é o mais elevado produto desse esforço multimilenar de todas as forças conhecidas e desconhecidas do universo que habitamos.

A teoria da selecção das espécies e da origem animal do homem ainda não está cientificamente comprovada, mas é geralmente aceita como a única explicação razoável do aparecimento da espécie humana na Terra, do ponto de vista científico. Os teólogos das várias religiões cristãs, e ultimamente alguns teósofos e ocultistas, levantam objecções teológicas e filosóficas a essa teoria, mas todas elas destituídas de qualquer fundamento científico. A tendência geral da ciência moderna é favorável a essa teoria e a maior parte dos biólogos a aceita e a endossa, sem qualquer restrição fundamental.

Há pessoas que entendem não ser possível tão estreito parentesco entre os homens e os animais, considerando tal facto depreciativo para a espécie humana. Puro e simples orgulho de um animal mais adiantado na escala evolutiva. E incoerência também, pois já não bastaria, para a satisfação desse orgulho, a suposição de que é o homem o máximo expoente do universo por ele habitado?

Em O Livro dos Espíritos, obra básica da doutrina, Allan Kardec deixou essa questão em aberto. Espírito cauteloso, que Flammarion chamou de bom senso encarnado, não quis o sábio professor de Lyon adiantar mais do que devia, no momento em que lançou aquele livro, já de si tão profundamente revolucionário. Deu, porém, as duas correntes de opiniões que havia encontrado no mundo dos espíritos, uma das quais favorável à origem animal do homem, e deixou a escolha ao critério dos leitores. Em A Génese - os milagres e as predições segundo o Espiritismo, Kardec define, porém, a posição do Espiritismo, no capítulo X, referente à génese orgânica, afirmando taxativamente:

“Ainda que isso lhe fira o orgulho, o homem deve resignar-se a não ver no seu corpo material senão o último anel da vida animal na Terra. O inexorável argumento dos factos aí está, contra o qual ele protestará em vão, mas, quanto mais o corpo diminui de valor aos seus olhos, mais ganha em importância o princípio espiritual. Vemos o círculo em que se fecha o animal, mas não vemos o limite a que poderá chegar o espírito do homem.”

Um dos grandes pioneiros e mestres do Espiritismo, que auxiliaram a tarefa esclarecedora de Allan Kardec, foi Gabriel Delanne. Com Léon Denis e Kardec, forma ele a trilogia dos construtores do moderno espiritualismo. Na sua obra A Evolução Anímica, dá-nos uma visão ainda mais ampla e minuciosa desse lento processo através do qual o homem vem sendo elaborado, na face da Terra. Darwin e os seus émulos e seguidores apresentaram-nos o problema do ponto de vista exclusivamente orgânico, materialista. O Espiritismo mostra-nos a outra face da questão, e por certo a mais importante, que é a espiritual, uma vez que o homem é espírito e não matéria. Kardec e Delanne colocam-nos a par dos princípios de um novo ramo da ciência biológica, a psicologia-fisiológica, que sir Oliver Lodge estuda no seu trabalho sobre a formação do homem.

Toda a natureza é um imenso e penoso trabalho de construção. A geologia nos mostra a formação da Terra, através dos séculos e dos milénios, como um lento e laborioso desenvolvimento de forças latentes. Vemos, graças aos estudos e às pesquisas científicas já agora indiscutíveis, que as várias classes de seres vivos estão todas ligadas numa ampla cadeia, descendendo umas das outras. Por que estranho motivo apenas o homem seria uma excepção à regra geral? E que estranha excepção seria essa, em detrimento de si próprio, ao invés de engrandecê-lo? Sim, pois se o homem não se enquadrasse nesse vasto panorama da evolução terrena, que hoje podemos abarcar num golpe de pensamento, qual seria a sua posição, num mundo de constante evolução? Tudo progrediria à sua volta, menos ele, o enteado da criação, abandonado às suas próprias fraquezas e encerrado no estreito limite da vida orgânica, entre o berço e o túmulo.

Vemos, assim, que o Espiritismo nos apresenta um quadro geral do Universo como um processo contínuo de evolução. Tudo flui e tudo se transforma, já dizia Heráclito, de Éfeso. Nesse imenso processo, o homem representa, segundo o Espiritismo, o ponto culminante da natureza. Poderemos dizer que ele é o momento do Universo mais próximo de Deus.

Mas Ele – Deus – não foi esquecido ou diminuído por essa nova concepção da vida e do mundo? Deus não ficou à margem, dando lugar a um simples entrechoque de forças desconhecidas, para a produção do mundo e das formas vivas, no espaço e no tempo?

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, A Formação do Homem, 3º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Giovanna ~

I (II)

Um incidente, contudo, está por vir, que pode romper a uniformidade desta vida, lançando uma agitação na alma cândida de Giovanna. Um dia, em que segue a vereda bem conhecida que conduz à morada dos Menoni, nuvens negras se acumulam sobre o vale, grandes gotas de água caem com ruído entre as moitas de aveleiras, e os trovões, murmurando a cada golpe, enchem os desfiladeiros dos montes com os seus estrepitosos estrondos. Apenas entra na cabana e a tempestade se desencadeia por trás dela com violência, curvando até à terra os cimos das árvores, cobrindo o horizonte com uma espessa cortina de chuva. A torrente, crescendo a olhos vistos, mistura a barulheira de suas águas aos clamores do temporal. Um jovem rapaz, vestido com roupa de caça, tendo na mão um fuzil, chega, correndo, ao casebre, e pede para aí se abrigar. Enquanto a tempestade castiga do lado de fora, ele pode examinar o lugar onde se encontra, com atenção. Vendo esse despojamento, o aspecto de Marta estendida sobre uma cama, sofrendo, ele parece interessar-se pelo seu infortúnio e coloca algumas questões, discretas, às quais Joana responde baixando os olhos. A presença, a função desse anjo consolador entre esses infelizes, o toca. Ele pede para se associar a esta boa obra e conversa, mostrando-se determinado; a tempestade tinha passado havia já algum tempo e o sol tinha voltado a sorrir, mas ele não pensava ainda em deixar aquela morada para onde o acaso o havia conduzido. Finalmente se retira, mas para voltar frequentemente. Não passava mais que um dia sem que se o visse aparecer na hora habitual em que Giovanna visitava a pobre família. Permanecia até à sua partida, cobrindo-a de olhares, admirando a sua graça virginal, a sua requintada bondade pela enferma. Acabou mesmo por prolongar as suas visitas por um bom tempo depois que ela já se tinha afastado, conversando com Léna sobre ela, incomodando-a com mil perguntas.

Ainda que, antes desse dia de tempestade, jamais tivesse franqueado o limiar dos Menoni, Maurice Ferrand não era certamente desconhecido deles. Quinze anos antes, um Francês, exilado em seguida a eventos políticos, tinha vindo fixar-se no país. Ele havia comprado em Domaso, aldeia que beira o lago, perto de Gravedona, uma pequena habitação, situada sobre uma colina, de onde a vista abraça o imenso panorama das águas e dos montes, a Brianza, a Valteline, os grandes picos dos Alpes. O exilado trouxe com ele o seu filho, um jovem menino de oito a dez anos, cuja mãe tinha morrido na França. Maurice, percorrendo a região, seguindo os pequenos pastores sobre as rochas à procura de ninhos de pombas, ou os pesqueiros de trutas que exploram o leito das torrentes, bem depressa aprendeu a língua poética e sonora dos Manzoni e dos Alfiéri. Mas era preciso renunciar a essas alegres diversões, e um dia o seu pai o acompanhou a Como, onde apanharam o caminho de ferro para Milão. Chegados a esta grande cidade, o primeiro cuidado do exilado foi colocar o menino numa das melhores instituições, depois do que, voltou a fechar-se no pavilhão onde vivia, só com os seus livros e uma velha servente do país.

Maurice fez progressos rápidos. A sua viva inteligência e a sua prodigiosa memória o serviram tão bem, que após alguns anos, nada mais tendo a aprender no estabelecimento onde havia sido colocado, devia prosseguir os seus estudos na Universidade de Pávia. Ao mesmo tempo em que a sua instrução se desenvolvia, o seu carácter se desenhava, carácter singular, mistura de sentimentos generosos e duros. Maurice amava instintivamente a solidão; tinha poucos amigos. Os comportamentos brilhantes, expansivos dos Lombardos e dos Toscanos, no meio dos quais se encontrava, lhe desagradavam. Vivia à parte, o mais possível, consagrando o seu lazer à leitura de poetas favoritos. Uma curiosidade profunda o levava, assim, para os estudos filosóficos. Em boa hora, é levado a procurar o porquê das coisas, querendo aprofundar esses misteriosos problemas que dominam toda a vida e que, semelhantes ao fluxo do mar, quando repelidos do nosso pensamento pela impotência, aí retornam mais imperiosos a cada vez.

O sentimento religioso tinha, de início, se manifestado nele por um vivo amor ao catolicismo. As pompas resplandecentes do culto italiano, a voz possante dos órgãos, os cantos, os perfumes, a magnificência dos edifícios, o “Dome” de Milão, maravilha da escultura, onde as estátuas de mármore se perfilam em legiões inumeráveis contra o azul do céu, todos esses esplendores do romanismo, preenchiam a alma de Maurice de uma emoção profunda. Mas, quando os sentidos ficaram habituados a essas pompas estrondosas, a sua razão quis descer ao fundo dos dogmas, analisá-los, desfolhá-los; quando, rasgado o véu brilhante e material que esconde, aos olhos do vulgo, a pobreza dos ensinamentos católicos, ele não vê senão uma moral embaciada pela casuística, os princípios de Cristo falseados, um Deus parcial e cruel, entronizado sobre um monte de superstições; procura então uma crença esclarecida, capaz de satisfazer o seu coração, a sua razão, a sua necessidade de fé e de justiça. Mergulha no estudo das diversas filosofias, desde a dos Gregos e dos Orientais até ao moderno e dessecante positivismo. Desse colossal exame, se destaca para ele uma fé espiritualista, baseada no estudo da natureza e da consciência, encontrando na comunicação íntima da alma com Deus uma força moral que acreditava suficiente para manter um homem no caminho recto. Suspeitava que a existência presente não seria a única para nós, que a alma deveria se elevar pelas vidas sucessivas e sempre renascentes, de mundos em mundos, rumo à perfeição.

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Léon Denis, Giovanna_1880, I 2º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Retrato, pequena pintura que especialistas de arte italiana atribuem a Rafael Sanzio)

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

o grande enigma ~

ao leitor |||

Nunca, talvez, no decurso de sua história, a França sentiu mais profundamente a oportunidade de uma nova orientação moral.

As religiões, dissemos, perderam muito do seu prestígio, e os frutos envenenados do materialismo mostram-se por toda a parte.

Já tinham feito nascer entre as nações esse conflito sangrento que nos aproveitou tão pouco. A obra nefasta prossegue na hora presente.

Ao lado do egoísmo e da sensualidade de uns, pompeiam a brutalidade e a avidez de outros. Os actos de violência, os assassínios e os suicídios se multiplicam.

As greves revestem carácter cada vez mais grave. É a luta das classes, o desencadeamento dos apetites e dos furores.

A voz popular sobe e retumba; o ódio dos pequenos, contra aqueles que possuem e gozam, tende a passar do domínio das teorias para o dos factos.

As práticas bárbaras, destruidoras de toda a civilização, penetram nos costumes do operariado. Esse estado de coisas, agravando-se, nos levaria directamente à guerra civil e à selvajaria.

Tais são os resultados de uma falsa educação nacional. Desde há séculos, nem a escola nem a Igreja têm ensinado ao povo aquilo de que ele tem mais necessidade de conhecer:

o porquê da existência, a lei do destino com o verdadeiro sentido dos deveres e responsabilidades que a ele se ligam.

Daí, em toda parte, o desarrazoar das inteligências e das consciências, a confusão, a desmoralização, a anarquia. Estamos ameaçados de falência social.

Será necessário descer até ao fundo do pélago das misérias públicas, para ver o erro cometido e compreender que se deve buscar, acima de tudo, o raio que esclareça a grande marcha humana na sua estrada sinuosa, através dos precipícios e das rochas que desabam?

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Léon Denis, O Grande Enigma, Ao Leitor 3 de 3, 3º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: La Madonna de Port Lligat, detalhe | 1950, Salvador Dali)

domingo, 19 de janeiro de 2014

Saberes e o tempo ~

O Espiritismo e a ciência – Princípios gerais

Reconhecemos a existência de uma causa eficiente e directora do universo: a sublimada inteligência que, pela sua vontade omnipotente, imutável, infinita, eterna, mantém a harmonia do Cosmos. A alma, a força e a matéria são igualmente eternas, não podem aniquilar-se.

A Ciência admite a conservação da matéria e da energia, (i) prova rigorosamente que são indestrutíveis, mas indefinidamente transformáveis. Do mesmo modo, o Espiritismo dá a certeza da imortalidade do eu pensante.

O princípio espiritual é a causa de todos os fenómenos intelectuais que se dão nos seres vivos. No homem, esse princípio se toma à alma, que se revela à observação como absolutamente distinta da matéria, não só porque as faculdades que a determinam (tais como a sensação, o pensamento ou a vontade) não se podem conceber revestidas de propriedades físicas, mas, sobretudo, por ser ela uma causa de movimento e por se conhecer plenamente a si mesma, o que a diferencia de todos os outros seres vivos e, com mais forte razão, dos corpos brutos.

É-nos desconhecida a natureza da alma. Tentar defini-la, dizendo que é imaterial, nada significa, a menos que com essa palavra se queira precisar a diferença que há entre a sua constituição e a da matéria. Qualquer, porém, que seja o seu modo de existir, ela se mostra simples e idêntica. Aliás, a nossa ignorância acerca da natureza da alma é da mesma ordem e tão absoluta, quanto acerca da natureza da matéria ou da natureza da energia. Até agora, somos de todo impotentes para penetrar as causas primárias e temos que nos contentar com o definir a alma, a matéria e a energia pelas suas manifestações, sem pretendermos indagar se, de qualquer maneira, procedem umas das outras.

Certamente a alma não é a resultante das funções cerebrais, pois que subsiste após a morte do corpo. Da análise de suas faculdades ressalta que ela é simples, isto é, indivisível e a experiência espírita confirma essa verdade, mostrando que a sua personalidade se mantém integral depois da morte. O Espiritismo, com o apoiar-se exclusivamente nos factos, reduz a nada todas as teorias segundo as quais a alma sofre uma desagregação qualquer. O que, ao contrário, se verifica é a indestrutibilidade do princípio pensante.

As suas faculdades a alma as desenvolve por uma evolução incessante que tem por teatro, alternativamente, o espaço e o mundo terrestre. Em cada uma dessas suas passagens, adquire ela nova soma de conhecimentos intelectuais e morais, que são conservados, aperfeiçoados e aumentados por uma evolução sem-fim.

Possui um livre-arbítrio proporcional ao número de suas encarnações, dependendo a sua responsabilidade do grau do seu adiantamento moral e intelectual. Assim como o mundo físico tem a regê-lo a lei imutável, também o mundo espiritual é regido por uma justiça infalível, de sorte que as leis morais têm sanção absoluta após a morte. Como o Universo não se limita ao imperceptível grão de areia por nós habitado, como o espaço formiga de sóis e planetas em número indefinido, admitimos que as futuras existências do princípio pensante podem desenvolver-se nesses diferentes sistemas de mundos, de maneira que a nossa vida se perpetua pela imensidade sem limites.

Como pode a alma executar esse processo evolutivo, conservando a sua individualidade e os conhecimentos que adquiriu? Como actua sobre a matéria tangível, durante a encarnação? É o que tentamos determinar no nosso estudo sobre a Evolução anímica. Aqui, temos que começar por compreender o papel de cada uma das partes que formam o homem vivo.

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(i) A descoberta da radioactividade dos corpos parece demonstrar que a matéria se destrói e retorna à energia que a engendrara. Entretanto, não há contradição, porquanto, sendo eterna a energia, se a matéria é um modo dessa energia, nada mais faz do que mudar de forma, sem se aniquilar.



Gabriel Delanne, A Alma é Imortal, Terceira parte – O Espiritismo e a ciência Capítulo I Princípios gerais, 2º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Pitágoras, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio (1509)

sábado, 18 de janeiro de 2014

Da sombra do dogma à luz da razão ~

Introdução ||
A Génese

Apesar da parte que compete à actividade humana na elaboração desta doutrina, a sua iniciativa pertence aos Espíritos, mas não se baseia na opinião pessoal de nenhum deles; não é, e não pode sê-lo, mais do que a consequência dos seus ensinamentos colectivos e concordantes. Só nesta condição se lhe pode dar o nome de doutrina dos Espíritos; caso contrário, não passaria da doutrina de um Espírito e teria apenas o valor de uma opinião pessoal.

Generalidade e consequência no ensino, é este o carácter essencial da doutrina, a própria condição da sua existência; daqui resulta que qualquer princípio que não tenha sido submetido ao controlo da generalidade não pode ser considerado parte integrante desta doutrina, mas simples opinião isolada de que o Espiritismo não pode assumir a responsabilidade.

É esta concordância colectiva das opiniões dos Espíritos, passada, além disso, pelo critério da lógica, que constitui a força da doutrina espírita, garantindo-lhe a perpetuidade. Para que se alterasse, seria necessário que a universalidade dos Espíritos mudasse de opinião e que, um dia, viessem dizer o contrário do que tinham dito; dado que tem a sua fonte nos ensinamentos dos Espíritos, para sucumbir, seria necessário que os Espíritos deixassem de existir. É também o que fará com que prevaleça sempre sobre as teorias pessoais que não têm, como ela, as suas raízes em todo o lado.

O Livro dos Espíritos só viu o seu prestígio consolidar-se por ser a expressão de uma ideia colectiva geral; no mês de Abril de 1867, viu cumprir-se o seu primeiro decénio; durante este intervalo, os princípios fundamentais a que colocou as bases foram sucessivamente completados e desenvolvidos como consequência do progressivo ensinamento dos Espíritos, mas nenhum deles sofreu o desmentido da experiência; todos, sem excepção, permaneceram de pé mais robustos do que nunca, enquanto, de todas as ideias contraditórias que tentaram opor-lhes, nenhuma prevaleceu, precisamente porque em todos os lados se ensinava o contrário. É este um resultado característico que podemos proclamar sem vaidade, já que nunca reivindicámos para nós o seu mérito.


Tendo as nossas outras obras sido redigidas com iguais escrúpulos, foi-nos possível classificá-las segundo os Espíritos, dado que tínhamos a certeza da sua conformidade com os ensinamentos gerais dos Espíritos. Passa-se o mesmo com esta, que podemos por motivos semelhantes, considerar complemento das precedentes, com a excepção, no entanto, de algumas teorias ainda hipotéticas que tivemos o cuidado de indicar como tal e que devem ser consideradas só como opiniões pessoais até serem confirmadas, ou contrariadas, para que sobre a doutrina não pese essa responsabilidade.

De resto, os leitores assíduos da Revista (i) terão podido aperceber-se do esboço da maior parte das ideias que se encontram desenvolvidas neste último trabalho, tal como fizemos para os precedentes. A Revista é frequentemente para nós um campo de ensaio destinado a sondar a opinião dos homens e dos Espíritos a respeito de certos princípios, antes de serem admitidos como partes constituintes da doutrina.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Introdução 2 de 2, 2º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de ilustração: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

domingo, 5 de janeiro de 2014

a voz que assim nos fala é a das almas queridas que nos precederam ~

Estabelecido o alvo da existência, mais alto que a fortuna, mais elevado que a felicidade, uma inteira revolução se produz nos nossos intuitos.

O Universo é uma arena em que a alma luta pelo seu engrandecimento e este só é obtido pelos seus trabalhos, sacrifícios e sofrimentos. A dor, física ou moral, é um meio poderoso de desenvolvimento e de progresso. As provas auxiliam-nos a conhecer, a dominar as nossas paixões e a amar realmente os outros. No curso que fazemos, o que devemos procurar adquirir é a ciência e o amor alternadamente. Quanto mais soubermos, mais amaremos e mais nos elevaremos. A fim de podermos combater e vencer o sofrimento, cumpre estudarmos as causas que o produzem e, com o conhecimento dos seus efeitos e a submissão às suas leis, despertar em nós uma simpatia profunda para com aqueles que o suportam. A dor é a purificação suprema, é a escola em que se aprendem a paciência, a resignação e todos os deveres austeros. É a fornalha onde se funde o egoísmo, em que se dissolve o orgulho. Algumas vezes, nas horas sombrias, a alma submetida à prova revolta-se, renega a Deus e sua justiça; depois, passada a tormenta, quando se examina a si mesma, vê que esse mal aparente era um bem; reconhece que a dor tornou-a melhor, mais acessível à piedade, mais caritativa para com os desgraçados.

Todos os males da vida concorrem para o nosso aperfeiçoamento. Pela dor, pela prova, pela humilhação, pelas enfermidades e pelos reveses o melhor desprende-se lentamente do pior. Eis por que neste mundo há mais sofrimento que alegria. A prova retempera os caracteres, apura os sentimentos, doma as almas fogosas ou altivas.

A dor física também tem a sua utilidade; desata quimicamente os laços que prendem o Espírito à carne; liberta-o dos fluidos grosseiros que o retêm nas regiões inferiores e que o envolvem, mesmo depois da morte. Essa acção explica, em certos casos, as curtas existências das crianças mortas com pouca idade. Essas almas puderam adquirir na Terra o saber e a virtude necessários para subirem mais alto; como um resto de materialidade impedisse ainda o seu voo, elas vieram terminar, pelo sofrimento, a sua completa depuração.

Não imitemos esses que maldizem a dor e que, nas suas imprecações contra a vida, recusam admitir que o sofrimento seja um bem. Desejariam levar uma existência a gosto, toda de bem-estar e de repouso, sem compreenderem que o bem adquirido sem esforço não tem nenhum valor e que, para apreciar a felicidade, é necessário saber-se quanto ela custa. O sofrimento é o instrumento de toda elevação, é o único meio de nos arrancarmos à indiferença, à volúpia. É quem esculpe a nossa alma, quem lhe dá mais pura forma, a beleza mais perfeita.

A prova é um remédio infalível para a nossa inexperiência. A Providência procede para connosco como mãe precavida para com o seu filho. Quando resistimos aos seus apelos, quando recusamos seguir-lhe os conselhos, ela nos deixa sofrer decepções e reveses, sabendo que a adversidade é a melhor escola da prudência.

Tal o destino do maior número neste mundo. Debaixo de um céu algumas vezes sulcado de raios, é preciso seguir o caminho árduo, com os pés dilacerados pelas pedras e pelos espinhos. Um Espírito de vestes lutuosas guia os nossos passos; é a dor santa que devemos abençoar, porque só ela sacode e nos desprende o ser das futilidades com que este gosta de paramentar-se, torna-o apto a sentir o que é verdadeiramente nobre e belo.

Sob o efeito desses ensinos, a que se reduz a ideia da morte? Perde todo o carácter assustador. A morte mais não é que uma transformação necessária e uma renovação, pois nada perece realmente. A morte é só aparente; somente muda a forma exterior; princípio da vida, a alma fica na sua unidade permanente, indestrutível. Esta se acha, além do túmulo, na plenitude das suas faculdades, com todas as aquisições com que se enriqueceu durante as suas existências terrestres: luzes, aspirações, virtudes e potências. Eis aí os bens imperecíveis a que se refere o Evangelho, quando diz: “Os vermes e a ferrugem não os consumirão nem os ladrões os furtarão.” São as únicas riquezas que poderemos levar connosco e utilizar na vida futura.

A morte e a reencarnação que se lhe segue, num dado tempo, são duas condições essenciais do progresso. Rompendo os hábitos acanhados que havíamos contraído, elas nos colocam em meios diferentes; obrigam a adaptarmo-nos às mil faces da ordem social, e universal.

Quando chega o declínio da vida, quando a nossa existência, semelhante à página de um livro, vai voltar-se para dar lugar a uma página branca e nova, aquele que for sensato consulta o seu passado e revê os seus actos. Feliz quem nessa hora puder dizer: meus dias foram bem preenchidos! Feliz aquele que aceitou as suas provas com resignação e as suportou com coragem! Esses, macerando a alma, deixaram expelir tudo o que nela havia de amargor e fel.

Rememorando na consciência as suas tribulações, bendirão os sofrimentos que suportaram e, com a paz íntima, verão sem receio aproximar-se o momento da morte.

Digamos adeus às teorias que fazem da morte a porta do nada, ou o prelúdio de castigos intermináveis. Adeus sombrios fantasmas da Teologia, dogmas medonhos, sentenças inexoráveis, suplícios infernais! Chegou a vez da esperança e da vida eterna! Não mais há negras trevas, porém, sim, luz deslumbrante que surge dos túmulos.

Já vistes a borboleta de asas multicores despir a informe crisálida, esse invólucro repugnante, no qual, como lagarta, se arrastava pelo solo? Já a vistes solta, livre, voejar ao calor do Sol, no meio do perfume das flores? Não há imagem mais fiel para o fenómeno da morte. O homem também está numa crisálida que a morte decompõe. O corpo humano, vestimenta de carne, volta ao grande monturo; o nosso despojo miserável entra no laboratório da Natureza; mas, o Espírito, depois de completar a sua obra, lança-se a uma vida mais elevada, para essa vida espiritual que sucede à vida corpórea, como o dia sucede à noite. Assim se distingue cada uma das nossas encarnações.

Firmes nesses princípios, não mais temeremos a morte. Como os gauleses, ousaremos encará-la sem terror. Não mais haverá motivo para receio, para lágrimas, cerimónias sinistras e cantos lúgubres. Os nossos funerais tornar-se-ão uma festa pela qual celebraremos a libertação da alma, a sua volta à verdadeira pátria.

A morte é uma grande reveladora. Nas horas de provação, quando as sombras nos rodeiam, perguntamos algumas vezes: Por que nasci eu? Por que não fiquei mergulhado lá na profunda noite, onde não se sente, onde não se sofre, onde só se dorme o eterno sono? E, nessas horas de dúvida e de angústia, uma voz vem até nós e diz-nos: Sofre para te engrandeceres, para te depurares! Fica sabendo que o teu destino é grande. Esta terra fria não é o teu sepulcro. Os mundos que brilham no âmbito dos céus são as tuas moradas futuras, a herança que Deus te reserva. Tu és para sempre cidadão do Universo; pertences aos séculos passados como aos futuros e, na hora actual, preparas a tua elevação. Suporta, pois, com calma, os males por ti mesmo escolhidos. Semeia na dor e nas lágrimas o grão que reverdecerá nas tuas próximas vidas. Semeia também para os outros assim como semearam para ti! Ser imortal, caminha com passo firme sobre a vereda escarpada até às alturas de onde o futuro te aparecerá sem véu! A ascensão é rude e o suor inundará muitas vezes o teu rosto, mas, no cimo, verás brilhar a grande luz, verás despontar no horizonte o Sol da Verdade e da Justiça!

A voz que assim nos fala é a voz dos mortos, é a voz das almas queridas que nos precederam no país da verdadeira vidaBem longe de dormirem nos túmulos, elas velam por nós. Do pórtico do invisível vêem-nos e sorriem para nós. Adorável e divino mistério! Comunicam-se connosco e dizem: Basta de dúvidas estéreis; trabalhai e amai. Um dia, preenchida a vossa tarefa, a morte nos reunirá.

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LÉON DENIS, Depois da Morte, Parte Segunda Os Grandes Problemas, XIII – As Provas e a Morte, fragmento solto da obra.
(imagem de ilustração: Criança trançando uma coroa_1874, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

sábado, 4 de janeiro de 2014

~~~Párias em Redenção~~~

O DUQUE DI BICCI DI M. (III)

A enfermidade que vitimara o dono do palácio fora breve. O seu organismo, antes robusto, recusara-se a lutar, dominado que se encontrava pela insuportável saudade da esposa – espírito de rara e peregrina beleza, que viera ter à Terra para alça-lo e aos seus a região superior da vida. Religiosa, fora Dona Ângela, antes tudo, piedosa, e as suas mãos delicadas, raramente adereçadas de gemas, repartiam bênçãos aos que a buscavam, reservando também um dia por semana para visitar os pobres e enfermos, de alguns dos quais ela mesma cuidava, embora os servos que a seguiam nas suas romagens de misericórdia e socorro, conduzindo volumes com repasto e guloseimas, moedas e agasalhos, formassem um séquito prestimoso e dedicado.

À sua chegada, enxugavam-se as lágrimas e a esperança refloria. Não foram poucos os que lhe receberam da bondade multiplicados pães e vestuários, unguentos e bálsamos. O médico e o sacerdote do palácio, por ordem sua, eram igualmente o esculápio e o pastor dos infelizes de todos aqueles sítios. As guerras contínuas ali haviam deixado várias gerações esfaimadas…

Em torno do seu nome e da sua pessoa eram tecidos comentários elevados, quais grinaldas de luz, e os múltiplos beneficiários nela sabiam reconhecer a dama da caridade, a irmã da compaixão…

duque, a seu turno, rejubilava-se, apesar de, zeloso, preocupar-se com a sua guarda, nas excursões fora dos muros da propriedade.

Pela estrada real, a ViaCassia, que conduzia de Siena a Florença, não eram poucos os bandoleiros em surtidas constantes, e as escaramuças contínuas com os salteadores exigiam que todos os senhores de terras mantivessem pequenos exércitos de mercenários, nos quais, no entanto, a abnegação e o dever estavam relacionados com o salário que o opositor lhes pudesse oferecer.

Como o bem aureola e defende todo aquele que o esparze, jamais qualquer dificuldade obstara a nobre senhora de realizar o exercício santo do amor fraterno. Parecia que no ministério da Caridade as suas forças se multiplicavam e os dons da alegria lhe refundiam ânimo e tranquilidade.

Quando da extinção da “Casa Médici”, em 1737, que passara o poder do grão-ducado da Toscana a Francisco de Lorena, esposo de Maria Teresa da Áustria – Segunda Casa de Lorena –, a Senhora Ângela, ao invés de quebrantar o ânimo mais o aumentara, tornando-se o estimulo constante e o encorajamento do esposo, que resolvera reagir e preservar o património, evitando evadir-se da região, como ocorrera a outros membros da família.

Antes da derrocada, todo o ducado readquirira com Cosme II o esplendor de outros tempos, embora o seu carácter fraco e pusilânime, sendo, pois, devedor de muitas das suas glórias de então à  tradicional família, descendente de Bonagiunta, o comerciante florentino que enriquecera nas transacções internacionais. De certo modo, o fausto e as extravagâncias de Cosme III, que sucedera, foram responsáveis pela decadência da Toscana, a vergonha e a quase miséria dele mesmo.

Com a elevação moral da esposa e o seu carácter inquebrantável, o duque reconquistara, também, o prestígio em torno do nome, enquanto que, amado, prosseguia, nos domínios em que se erguia a vila palaciana, como um reduto remanescente de mentes esclarecidas dos dias idos, não porém, apaixonado.

Desaparecida Ângela, as sombras da tristeza e do acabrunhamento desceram sobre o vetusto solar, cuja beleza somente se destacava através da alacridade infantil das três crianças, quando dos folguedos nos jardins ou nos corredores atapetados do majestoso edifício.

A saudade e a melancolia, cultivadas, são também sementes venenosas que aniquilam a seiva da vida no seio em que se agasalham. Parasitas, nutrem-se matando. Assim, quando a enfermidade surpreendeu o duque di Bicci di M., as forças morais se recusaram a lutar e o corpo se permitiu deixar vencer.

Especialmente convidado para as exéquias, o Bispo de Siena fez-se presente, acolitado por um séquito de ociosos, e o velório transformou-se em local em que sobressaíam o arrivismo e os seus sequazes, atendidos através de repasto abundante, tendo Lúcia no comando dos serviços, duramente vigiada por Girólamo, que maquinava planos sórdidos, e por Assunta, que se passava por sua amiga, enquanto os convidados se deixavam conduzir pelo vinho, consumindo os acepipes… A bulha era geral e o silêncio somente era feito pelo corpo desencarnado. As crianças adormeceram a custo, ajudadas por uma serva leal e da confiança de Lúcia. O solar mergulhava em dor, na alma de uns, e enchia de cobiça os espíritos infelizes de muitos.

A longa madrugada começa a despertar sobre o burgo encharcado das chuvas contínuas, enquanto Girólamo, maquiavélico, encoraja os próprios programas inditosos.

Enquanto Lúcia serve ao Bispo, que se locupleta em farta bandeja de doces e chá quente, Girólamo, se lhe acerca, simulando afectada gentileza, e da palestra incipiente, despropositada, sonda, maledicente, o ocioso religioso, quanto ao que consta sobre o testamento do tio.

Um tanto estimulado pelo capitoso vinho, ingerido em contínuas libações ao longo da noite, o sacerdote se refere à tutela que Lúcia exercerá sobre as crianças, com plenos poderes ao património, até que aquelas alcancem a maioridade. Encorajado pelo moço venal, comenta da sua estranheza quanto à atitude generosa do senhor em referência a uma jovem sem linhagem nem fortuna. Lamenta a situação do rapaz, que continuará sob mesada, a ser distribuída pela testamentária, sob fiscalização do poder público, e diz-se revoltado por a Igreja não ter sido aquinhoada, recordando-se, enfático, de que algumas décadas entes os religiosos eram prestigiados em toda a Toscana, graças à família…

Lisonjeado o moço, o representante religioso adianta que se este fora herdeiro tudo, certamente, seria diverso.

Girólamo, em febre, sorri, corado, inquieto, e medita.

O ódio lhe desperta as paixões subalternas, o ciúme o enceguece e o desespero o asfixia.

Mentalmente, tem o plano definido: não poderá falhar. Tudo concorre para o seu êxito. Tem mesmo a impressão de que conta com o conivente apoio do prelado ambicioso.

Intimamente gargalha. Entre dentes, murmura: “Pagar-me-ás, fera peçonhenta e espoliadora! Pagar-me-eis, tu e o vil Senhor di Bicci di M. Não suporto quase esperar! Pagar-me-eis logo mais. Paciência! Espera, Girólamo. Acalma-te!”.

Raia o dia nevoento e demorado. O calendário assinala: 22 de Dezembro de 1745.

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VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” LIVRO PRIMEIRO, 1. O DUQUE DI BICCI DI M. 3 de 3, 3º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

o Homem e a Sociedade numa nova Civilização ~ do Materialismo histórico a uma Dialéctica do espírito ~

A INVESTIGAÇÃO ONTOLÓGICA NA PARAPSICOLOGIA

1) É Acessível o Ontológico ao Parapsicológico?

Se a parapsicologia se nos apresenta como uma nova problemática do Ser, não há dúvida de que a sua missão científica, se assim podemos dizer, se defrontará com zonas do conhecimento que se acham em plena crise. A actualidade, propícia à investigação ontológica, oferece à parapsicologia excelente ocasião para assinalar as formas reais do conhecer, muitas das quais ainda não são percebidas pela sensibilidade normal do indivíduo. A simples possibilidade de um acesso ontológico à parapsicologia implica a urgência de um que-fazer filosófico apoiado numa sensibilidade incomum. Se é possível um conhecer extrassensorial, mesmo no seu aspecto mais limitado, o ontológico poderá ser alcançado (e essa é a nova esperança) por vias de facto que eliminem todo o obstáculo ao psicológico incomum.

A relação entre objecto e sujeito, parapsicologicamente considerada, implica a possibilidade de uma criptestesia, quepermitirá a captação de valores gnosiológicos provenientes de zonas profundas do homem e do Universo. Se pudéssemos penetrar ontologicamente as camadas do parapsicológico, o ser humano, com pleno direito, poderia aspirar a um futuro que signifique o de uma verdadeira realidade metafísica.

Os actos psíquicos e os momentos extrassensoriais da parapsicologia são, por si mesmos, valores espirituais, nos quais se oculta a face de um poderoso númeno, capaz de vencer a relatividade do mundo circundante, através de um novo Eu do indivíduo. Como de outras vezes, o campo do saber está sendo solicitado a ampliar-se, mas, desta vez, apoiado no númeno (i) parapsicológico. É evidente que a busca metapsíquica se aproxima, podemos dizer, de um verdadeiro desejo de encontrar para o indivíduo uma significação espiritual transcendente. Desta vez, se o factor ontológico for secundado pelo factor parapsicológico, o conhecimento estaria ante a possibilidade de beneficiar-se grandemente. Seria deplorável se a parapsicologia se desviasse do seu campo extrassensorial, por falta de inquietude filosófica; mas a filosofia deverá amparar a parapsicologia, para que o seu real objectivo não se converta num intranscendente parapsicologismo.

(i) Númeno é a essência do fenómeno, a coisa-em-si, enquanto o fenómeno é a manifestação do númeno. (Nota de José Herculano Pires).

2) O Espiritual Como Objecto da Parapsicologia

O parapsicológico experimental já percorreu uma trajectória suficiente para advertir, à crítica filosófica, que o extrassensorial não é somente de origem natural e fisiológica, ou ainda biológica, mas que nele se apresenta, superando o fenómeno, um novo ser espiritual, a indicar-nos que o espírito, no imanente como no transcendente, é o objecto obrigatório da parapsicologia. Se um exagerado naturalismo absorvesse a sua essência psíquica, o númenoparapsicológico ficaria postergado por muito tempo.

A excessiva naturalidade, que se pretende ver nos factos psíquicos, faz o filósofo vacilar em decidir-se a interpretá-los. Por isso já se disse, e com razão, que a demasiada naturalidade de um ramo da ciência diminui as suas perspectivas metafísicas. Um naturalismo superlativo poderia desvirtuar essa intencionalidade tão promissora, que se revela na parapsicologia. Se a técnica metapsíquica se mecanizar demasiado, teremos apenas uma máquina fenoménica. Entretanto, o que agora se denomina crise do homem exige penetração da investigação ontológica nas camadas inabituais da parapsicologia. A interpretação espiritual dos seus fenómenos poderia significar uma nova colocação do sentido metafísico do Ser, e ao mesmo tempo a fundamentação de um esquema religioso digno do grau evolutivo atingido pela cultura dos tempos actuais(ii)

(ii) “A religião  diz o professor – J.B. Rhine – é, sem dúvida, a área de interesse mais imediato para a parapsicologia. Definida como a investigação das funções não-físicas da natureza e dos princípios que a governam, a parapsicologia teria que reivindicar muitos dos problemas fundamentais da religião, assim como a patologia está necessariamente interessada nos problemas da medicina.” (Revista de Parapsicologia, n° 2 – Buenos Aires, 19,55).

Se é certo que a parapsicologia não poderá deter-se numa dada interpretação do homem e da existência, isso não impede que a investigação ontológica, baseada no realismo extrassensorial, a que Eugénio Osty chamou deconhecimento supranormal, busque um tipo espiritual do Ser, baseando-se no númeno parapsicológico.

A antiga psicologia baseava-se num trabalho estéril, acabando por se perder num campo de imaterialidade psicofísica irreal. Para o psicólogo comum, toda a extrassensorialidade humana é uma ilusão. Continuando apoiado nos obsoletos sistemas psicofisiológicos, apavora-se com a possibilidade de um indivíduo metapsíquico. Daí o acesso do espiritual ao parapsicológico não só representar um triunfo da nova psicologia, mas também um novo sentido para o Ser, na futura investigação ontológica.

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Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS Capítulo I A INVESTIGAÇÃO ONTOLÓGICA NA PARAPSICOLOGIA 1º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador Dali)

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

se a religião se recusa a avançar com a ciência, a ciência avança sozinha ~

No ponto a que chegou no século XIX, terá a ciência resolvido todas as dificuldades do problema da Génese?

Seguramente que não, mas é incontestável que destruiu sem retrocesso todos os erros capitais e que estabeleceu os fundamentos mais essenciais sobre dados irrecusáveis; os pontos ainda incertos não são, a bem dizer, mais do que questões de pormenor cuja solução, seja ela qual for no futuro, não poderá prejudicar o todo. Por outro lado, apesar de todos os recursos de que pode dispor, faltou-lhe até hoje um elemento importante  sem o qual a obra não poderia nunca estar completa.

De todas as Géneses antigas, a que mais se aproxima dos dados científicos modernos, apesar dos erros que contém e que são hoje demonstrados à evidência, é incontestavelmente a de Moisés. Alguns desses erros são mesmo mais aparentes do que reais e provêm quer da falsa interpretação de certas palavras cujo primitivo significado se perdeu ao passar de língua para língua em traduções ou cuja acepção se alterou com os hábitos dos povos, quer da forma alegórica característica do estilo oriental e de que tomámos a letra em vez de procurarmos o espírito.

A Bíblia contém evidentemente factos que a razão, desenvolvida pela ciência, hoje não poderia aceitar e outros que parecem estranhos e repugnam porque se ligam a costumes que já não são nossos. Mas, juntamente com isso, haveria parcialidade em não reconhecer que encerra grandes e belas coisas. A alegoria tem aí um lugar considerável e, sob esse véu, esconde verdades sublimes que surgem se procurarmos o fundo da ideia, porque então o absurdo desaparece.

Nesse caso, por que não levantámos esse véu mais cedo? É, por um lado, a falta de saber que só a ciência e uma sã filosofia poderiam proporcionar e, do outro, o princípio de imutabilidade absoluta da fé, consequência de um respeito demasiado cego pela letra perante a qual a razão se deveria inclinar e, portanto, o receio de comprometer o enorme monte de crenças construído sobre o sentido literal. Partindo estas crenças de um ponto primitivo, receou-se que, acabassem por separar; foi por isso que, apesar de tudo, se fecharam os olhos; mas fechar os olhos ao perigo não é evitá-lo. Quando um edifício cede, não é mais prudente substituir imediatamente as pedras más por boas em vez de esperar, por respeito para com a velhice do edifício, que o mal não tenha remédio e que seja preciso reconstruí-lo do princípio ao fim?

A ciência, levando as suas investigações até às entranhas da Terra e profundidade do céu, demonstrou então de forma irrecusável os erros da Génese moseísta tomada à letra e a impossibilidade material das coisas se terem passado tal como aí são textualmente relatadas; por isso mesmo, lesou profundamente as crenças seculares. A fé ortodoxa sensibilizou-se com isso porque julgou ver retirados os seus fundamentos; mas quem teria razão: a ciência, caminhando prudente e progressivamente no terreno sólido dos números e da observação, sem nada afirmar antes de ter a prova na mão, ou uma relação escrita numa época em que os meios de observação faltavam em absoluto? Quem deve vencer, afinal: o que diz que 2 e 2 são 5 e se recusa a verificar ou o que diz que 2 e 2 são 4 e o prova?

Mas então, dir-se-á, se a Bíblia é uma revelação divina, Deus enganou-se? Se não é uma revelação divina, já não tem autoridade e a religião cai por falta de base. Das duas uma: ou a ciência não tem razão ou tem-na; se tem razão, não pode fazer com que uma opinião contrária seja verdadeira; não há revelação que possa vencê-la quando à autoridade dos factos.

Incontestavelmente, Deus, que é todo verdade, não pode induzir os homens em erro, nem consciente nem inconscientemente, sem o que não seria Deus. Se então os factos contradizem as palavras que lhe são atribuídas, é preciso concluir logicamente que não as pronunciou ou que foram tomadas no sentido errado.

Se a religião sofre nalgumas partes destas contradições, o defeito não é de maneira nenhuma da ciência, que não pode fazer com que aquilo que é não o seja, mas dos homens, por terem criado prematuramente dogmas absolutos, de que fizeram uma questão de vida ou de morte, sobre hipóteses susceptíveis de serem desmentidas pela experiência.

Há coisas com o sacrifício das quais temos de nos resignar, de boa ou má vontade, quando não podemos proceder doutro modo. Quando o mundo avança, não podendo a vontade de alguns fazer com que pare, o mais sensato é segui-lo e acomodarmo-nos ao novo estado de coisas, em vez de nos agarrarmos ao passado que desaba, correndo o risco de cairmos com ele.

Era preciso, por respeito para com os textos considerados sagrados, impor o silêncio à ciência? Seria uma coisa tão impossível como impedir a Terra de girar. As religiões, sejam elas quais forem, nunca ganharam nada em sustentar erros manifestos. A missão da ciência é descobrir as leis da natureza; ora, como estas leis são obra de Deus, não podem ser contrárias às religiões fundadas na verdade. Lançar um anátema ao progresso por atentatório da religião, pois é lançá-lo à própria obra de Deus; é, além disso, trabalho inútil, pois todos os anátemas do mundo não impediriam a ciência de avançar, nem a verdade de surgir à luz do diaSe a religião se recusa a avançar com a ciência, a ciência avança sozinha.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo IV, PAPEL DA CIÊNCIA NA GÉNESE, números de 4 a 9, fragmento. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de ilustração: São Bartolomeu, segurando a faca do seu martírio e a sua pele arrancada. O rosto na pele é um auto-retrato de Michelangelo. Detalhe de "O Juizo Final" afresco pintado na parede do altar da Capela Sistina, por Michelangelo)

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

O Mundo Invisível e a Guerra ~

Outubro de 1914

Factos temerosos vêm acontecendo há alguns meses, e uma tempestade de ferro e fogo desabou sobre a Europa, abalando os alicerces da civilização. Não são milhares, são milhões de homens que se entrechocam numa batalha formidável, numa luta jamais presenciada pelo mundo. O número de vidas humanas sacrificadas é tão grande que deixa estarrecido o pensamento.

Até o próprio destino das nações é posto em dúvida. Em determinadas horas trágicas, a França viu passar sobre ela o vento da ruína e da morte, e talvez o nosso país terminasse destruído, se não fossem os auxílios do Alto e a incontável legião de espíritos, acudindo de todos os pontos do Espaço, para ajudar os seus defensores, aumentar-lhes a energia, favorecer-lhes o ânimo e estimular-lhes o ardor.

Diante desse drama terrível indagamos, como num pesadelo, que lição fica desses factos dolorosos.

Observemos, diante da primeira análise, que esses acontecimentos eram anunciados antecipadamente. Os avisos vinham de toda parte; por nosso lado sentíamos aproximar-se a tempestade e um mal-estar indefinível invadia as nossas almas. Segundo as palavras de um pensador, os grandes acontecimentos que abalam o mundo projectam primeiramente a sua própria sombra.

Todavia, a massa dos homens continuava indiferente. A França principalmente, há 20 anos adormecera numa ilusão de bem-estar e de sensualidade, sendo que a maior parte dos seus filhos só objectivava conquistar a riqueza e desfrutar os prazeres que ela proporciona.

A consciência pública, a noção do dever, a disciplina familiar e social, sem as quais não há nações progressistas, atrofiavam-se cada vez mais.

Processos escandalosos revelavam um estado de terrível corrupção; o alcoolismo, a prostituição e a pequena percentagem de nascimentos daí resultante pareciam encaminhar a nação para a inevitável decadência.

Os nossos inimigos achavam os franceses um povo exausto e se preparavam para disputar os seus despojos.

Por acaso as discussões inúteis em que estávamos empenhados não nos condenavam à fraqueza? No entanto, a nossa desunião era apenas aparente, pois, diante do perigo que ameaça a pátria, todos os corações sabem unir-se para um esforço supremo.

Como em todos os instantes solenes da História (como na época de Joana d’Arc), o mundo invisível interferiu e, impulsionadas pelo Alto, as forças profundas da raça, que dormitam dentro de cada um de nós, despertaram, entraram em acção e, num grande ardor, fizeram renascer, com toda a plenitude, as virtudes heróicas dos séculos passados.

O general Joffre é, sem dúvida, um estratega de valor, mas sabemos, com segurança, que as suas melhores inspirações, sem que ele o soubesse, vieram do além.

O nosso país, que parecia corrompido, condenado a desaparecer, mostrou ao mundo assombrado que havia nele um poder irresistível, em estado latente.

Premida pela provação e por vontade superior, a França despertou. Num ímpeto supremo e disposta a todos os sacrifícios, ergueu-se contra um invasor sem escrúpulos, cego pelo orgulho e ávido para implantar no mundo o seu domínio bárbaro e brutal.

Julguem o que julgarem os alemães, há justiça no Universo. Não basta ter nos lábios, a cada instante, o nome de Deus; seria muito melhor guardar no coração as suas leis imutáveis.

O direito não é uma palavra vã e o poder material não é absoluto neste mundo.

As mentiras, a perfídia, a violação dos tratados, o incêndio das cidades, a morte dos fracos e dos inocentes não podem encontrar desculpas diante da majestade divina.

Qualquer mal praticado atinge, com as suas consequências, quem o produziu e a violação do direito dos fracos se volta contra os poderes dos ultrajantes.

A invasão e a devastação da Bélgica e do norte da França provocaram indignação geral e uma grande reacção das forças invisíveis. Das regiões devastadas um grito de angústia subiu ao céu, que não ficou surdo a tão desesperados apelos. Os poderes do Além entram em acção: são eles que sustentam a França e animam os seus filhos ao combate.

À retaguarda dos que sucumbem, outros aparecerão, até que o invasor sinta que a sua disposição se enfraquece e que o destino se ergue contra ele.

Os que morreram voltam ao Espaço com a glória do dever cumprido e o exemplo deles animará as vindouras gerações.

A lição que fica desses terríveis acontecimentos consiste em que o homem deve aprender a elevar os seus pensamentos acima dos tristes espectáculos do mundo e voltar as suas vistas para esse Além de onde descem os socorros, as forças necessárias para empreender uma nova etapa, objectivando o fim grandioso que lhe está designado.

Os nossos contemporâneos haviam depositado o seu pensamento e as suas amizades nas coisas materiais, porém os factos demonstraram que elas eram passageiras e precárias e que as esperanças e as glórias que elas suscitam são também efémeras.

Nenhum bem, nenhum poder terrestre está protegido das catástrofes; só os do espírito imortal possuem verdadeira duração, riqueza ou esplendor, porque só o espírito é capaz de transformar as obras de morte em obras de vida. Porém, para compreender tão profunda lei é necessária a escola do sofrimento. Assim como o raio de luz precisa decompor-se no prisma para produzir as cores brilhantes do arco-íris, também a alma humana deve purificar-se pela provação, a fim de que brilhem todas as energias e todas as qualidades que nela dormitam.

É especialmente na desgraça que o homem pensa em Deus, e assim que as paixões ardentes se tiverem  apaziguado e que a sociedade tiver recomeçado a vida normal, começará a missão dos espíritas.

Quantas lutas haverá então para consolar! Quantas chagas morais para curar! quantas almas dilaceradas para socorrer!

Pela actuação lenta, profunda e eficiente do sofrimento, um grande número de seres ficará acessível às verdades de que somos responsáveis depositários. Aproveitemos, portanto, as trágicas situações que atravessamos e a Providência fará delas nascer benefícios para a humanidade.

Todas as almas fortes, que mantiveram sangue frio no meio da borrasca, suplicarão, connosco, que as provações sofridas pelo nosso país lhes façam vibrar na alma os sentimentos de honra, união e concórdia, que são poderosos meios de ressurgimento.

Tais sentimentos, por sua intensidade, poderiam actuar contra os flagelos da sensualidade, do egoísmo e do personalismo desmesurado que se implantaram, como senhores, em nossa França, abafando generosos instintos que sempre estavam prontos a reviverem nela.

Que os franceses, raça inteligente e nobre, de mãos estendidas e corações abertos, voltem a ser admirados, como exemplo vivo que todas as nações se alegram em seguir.

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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, I – O Espiritualismo e a Guerra 2º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)