terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Giovanna ~

I (II)

Um incidente, contudo, está por vir, que pode romper a uniformidade desta vida, lançando uma agitação na alma cândida de Giovanna. Um dia, em que segue a vereda bem conhecida que conduz à morada dos Menoni, nuvens negras se acumulam sobre o vale, grandes gotas de água caem com ruído entre as moitas de aveleiras, e os trovões, murmurando a cada golpe, enchem os desfiladeiros dos montes com os seus estrepitosos estrondos. Apenas entra na cabana e a tempestade se desencadeia por trás dela com violência, curvando até à terra os cimos das árvores, cobrindo o horizonte com uma espessa cortina de chuva. A torrente, crescendo a olhos vistos, mistura a barulheira de suas águas aos clamores do temporal. Um jovem rapaz, vestido com roupa de caça, tendo na mão um fuzil, chega, correndo, ao casebre, e pede para aí se abrigar. Enquanto a tempestade castiga do lado de fora, ele pode examinar o lugar onde se encontra, com atenção. Vendo esse despojamento, o aspecto de Marta estendida sobre uma cama, sofrendo, ele parece interessar-se pelo seu infortúnio e coloca algumas questões, discretas, às quais Joana responde baixando os olhos. A presença, a função desse anjo consolador entre esses infelizes, o toca. Ele pede para se associar a esta boa obra e conversa, mostrando-se determinado; a tempestade tinha passado havia já algum tempo e o sol tinha voltado a sorrir, mas ele não pensava ainda em deixar aquela morada para onde o acaso o havia conduzido. Finalmente se retira, mas para voltar frequentemente. Não passava mais que um dia sem que se o visse aparecer na hora habitual em que Giovanna visitava a pobre família. Permanecia até à sua partida, cobrindo-a de olhares, admirando a sua graça virginal, a sua requintada bondade pela enferma. Acabou mesmo por prolongar as suas visitas por um bom tempo depois que ela já se tinha afastado, conversando com Léna sobre ela, incomodando-a com mil perguntas.

Ainda que, antes desse dia de tempestade, jamais tivesse franqueado o limiar dos Menoni, Maurice Ferrand não era certamente desconhecido deles. Quinze anos antes, um Francês, exilado em seguida a eventos políticos, tinha vindo fixar-se no país. Ele havia comprado em Domaso, aldeia que beira o lago, perto de Gravedona, uma pequena habitação, situada sobre uma colina, de onde a vista abraça o imenso panorama das águas e dos montes, a Brianza, a Valteline, os grandes picos dos Alpes. O exilado trouxe com ele o seu filho, um jovem menino de oito a dez anos, cuja mãe tinha morrido na França. Maurice, percorrendo a região, seguindo os pequenos pastores sobre as rochas à procura de ninhos de pombas, ou os pesqueiros de trutas que exploram o leito das torrentes, bem depressa aprendeu a língua poética e sonora dos Manzoni e dos Alfiéri. Mas era preciso renunciar a essas alegres diversões, e um dia o seu pai o acompanhou a Como, onde apanharam o caminho de ferro para Milão. Chegados a esta grande cidade, o primeiro cuidado do exilado foi colocar o menino numa das melhores instituições, depois do que, voltou a fechar-se no pavilhão onde vivia, só com os seus livros e uma velha servente do país.

Maurice fez progressos rápidos. A sua viva inteligência e a sua prodigiosa memória o serviram tão bem, que após alguns anos, nada mais tendo a aprender no estabelecimento onde havia sido colocado, devia prosseguir os seus estudos na Universidade de Pávia. Ao mesmo tempo em que a sua instrução se desenvolvia, o seu carácter se desenhava, carácter singular, mistura de sentimentos generosos e duros. Maurice amava instintivamente a solidão; tinha poucos amigos. Os comportamentos brilhantes, expansivos dos Lombardos e dos Toscanos, no meio dos quais se encontrava, lhe desagradavam. Vivia à parte, o mais possível, consagrando o seu lazer à leitura de poetas favoritos. Uma curiosidade profunda o levava, assim, para os estudos filosóficos. Em boa hora, é levado a procurar o porquê das coisas, querendo aprofundar esses misteriosos problemas que dominam toda a vida e que, semelhantes ao fluxo do mar, quando repelidos do nosso pensamento pela impotência, aí retornam mais imperiosos a cada vez.

O sentimento religioso tinha, de início, se manifestado nele por um vivo amor ao catolicismo. As pompas resplandecentes do culto italiano, a voz possante dos órgãos, os cantos, os perfumes, a magnificência dos edifícios, o “Dome” de Milão, maravilha da escultura, onde as estátuas de mármore se perfilam em legiões inumeráveis contra o azul do céu, todos esses esplendores do romanismo, preenchiam a alma de Maurice de uma emoção profunda. Mas, quando os sentidos ficaram habituados a essas pompas estrondosas, a sua razão quis descer ao fundo dos dogmas, analisá-los, desfolhá-los; quando, rasgado o véu brilhante e material que esconde, aos olhos do vulgo, a pobreza dos ensinamentos católicos, ele não vê senão uma moral embaciada pela casuística, os princípios de Cristo falseados, um Deus parcial e cruel, entronizado sobre um monte de superstições; procura então uma crença esclarecida, capaz de satisfazer o seu coração, a sua razão, a sua necessidade de fé e de justiça. Mergulha no estudo das diversas filosofias, desde a dos Gregos e dos Orientais até ao moderno e dessecante positivismo. Desse colossal exame, se destaca para ele uma fé espiritualista, baseada no estudo da natureza e da consciência, encontrando na comunicação íntima da alma com Deus uma força moral que acreditava suficiente para manter um homem no caminho recto. Suspeitava que a existência presente não seria a única para nós, que a alma deveria se elevar pelas vidas sucessivas e sempre renascentes, de mundos em mundos, rumo à perfeição.

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Léon Denis, Giovanna_1880, I 2º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Retrato, pequena pintura que especialistas de arte italiana atribuem a Rafael Sanzio)

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