I (II)
Um incidente, contudo, está por vir, que pode romper a uniformidade desta vida, lançando uma agitação na alma cândida de Giovanna. Um dia, em que segue a vereda bem conhecida que conduz à morada dos Menoni, nuvens negras se acumulam sobre o vale, grandes gotas de água caem com ruído entre as moitas de aveleiras, e os trovões, murmurando a cada golpe, enchem os desfiladeiros dos montes com os seus estrepitosos estrondos. Apenas entra na cabana e a tempestade se desencadeia por trás dela com violência, curvando até à terra os cimos das árvores, cobrindo o horizonte com uma espessa cortina de chuva. A torrente, crescendo a olhos vistos, mistura a barulheira de suas águas aos clamores do temporal. Um jovem rapaz, vestido com roupa de caça, tendo na mão um fuzil, chega, correndo, ao casebre, e pede para aí se abrigar. Enquanto a tempestade castiga do lado de fora, ele pode examinar o lugar onde se encontra, com atenção. Vendo esse despojamento, o aspecto de Marta estendida sobre uma cama, sofrendo, ele parece interessar-se pelo seu infortúnio e coloca algumas questões, discretas, às quais Joana responde baixando os olhos. A presença, a função desse anjo consolador entre esses infelizes, o toca. Ele pede para se associar a esta boa obra e conversa, mostrando-se determinado; a tempestade tinha passado havia já algum tempo e o sol tinha voltado a sorrir, mas ele não pensava ainda em deixar aquela morada para onde o acaso o havia conduzido. Finalmente se retira, mas para voltar frequentemente. Não passava mais que um dia sem que se o visse aparecer na hora habitual em que Giovanna visitava a pobre família. Permanecia até à sua partida, cobrindo-a de olhares, admirando a sua graça virginal, a sua requintada bondade pela enferma. Acabou mesmo por prolongar as suas visitas por um bom tempo depois que ela já se tinha afastado, conversando com Léna sobre ela, incomodando-a com mil perguntas.
Um incidente, contudo, está por vir, que pode romper a uniformidade desta vida, lançando uma agitação na alma cândida de Giovanna. Um dia, em que segue a vereda bem conhecida que conduz à morada dos Menoni, nuvens negras se acumulam sobre o vale, grandes gotas de água caem com ruído entre as moitas de aveleiras, e os trovões, murmurando a cada golpe, enchem os desfiladeiros dos montes com os seus estrepitosos estrondos. Apenas entra na cabana e a tempestade se desencadeia por trás dela com violência, curvando até à terra os cimos das árvores, cobrindo o horizonte com uma espessa cortina de chuva. A torrente, crescendo a olhos vistos, mistura a barulheira de suas águas aos clamores do temporal. Um jovem rapaz, vestido com roupa de caça, tendo na mão um fuzil, chega, correndo, ao casebre, e pede para aí se abrigar. Enquanto a tempestade castiga do lado de fora, ele pode examinar o lugar onde se encontra, com atenção. Vendo esse despojamento, o aspecto de Marta estendida sobre uma cama, sofrendo, ele parece interessar-se pelo seu infortúnio e coloca algumas questões, discretas, às quais Joana responde baixando os olhos. A presença, a função desse anjo consolador entre esses infelizes, o toca. Ele pede para se associar a esta boa obra e conversa, mostrando-se determinado; a tempestade tinha passado havia já algum tempo e o sol tinha voltado a sorrir, mas ele não pensava ainda em deixar aquela morada para onde o acaso o havia conduzido. Finalmente se retira, mas para voltar frequentemente. Não passava mais que um dia sem que se o visse aparecer na hora habitual em que Giovanna visitava a pobre família. Permanecia até à sua partida, cobrindo-a de olhares, admirando a sua graça virginal, a sua requintada bondade pela enferma. Acabou mesmo por prolongar as suas visitas por um bom tempo depois que ela já se tinha afastado, conversando com Léna sobre ela, incomodando-a com mil perguntas.
Ainda que, antes desse dia de tempestade, jamais tivesse
franqueado o limiar dos Menoni, Maurice Ferrand não era
certamente desconhecido deles. Quinze anos antes, um Francês, exilado em
seguida a eventos políticos, tinha vindo fixar-se no país. Ele havia comprado
em Domaso, aldeia que beira o lago, perto de
Gravedona, uma pequena habitação, situada sobre uma colina, de onde a vista
abraça o imenso panorama das águas e dos montes, a Brianza, a Valteline, os
grandes picos dos Alpes. O exilado trouxe com ele o seu filho, um jovem menino
de oito a dez anos, cuja mãe tinha morrido na França. Maurice, percorrendo a
região, seguindo os pequenos pastores sobre as rochas à procura de
ninhos de pombas, ou os pesqueiros de trutas que exploram o leito das torrentes,
bem depressa aprendeu a língua poética e sonora dos Manzoni e dos Alfiéri. Mas
era preciso renunciar a essas alegres diversões, e um dia o seu pai o
acompanhou a Como, onde
apanharam o caminho de ferro para Milão. Chegados a esta grande cidade, o
primeiro cuidado do exilado foi colocar o menino numa das melhores
instituições, depois do que, voltou a fechar-se no pavilhão onde vivia, só com
os seus livros e uma velha servente do país.
Maurice fez progressos rápidos. A sua viva inteligência e a
sua prodigiosa memória o serviram tão bem, que após alguns anos, nada mais
tendo a aprender no estabelecimento onde havia sido colocado, devia prosseguir
os seus estudos na Universidade de Pávia. Ao mesmo tempo em que a sua instrução
se desenvolvia, o seu carácter se desenhava, carácter singular, mistura de sentimentos
generosos e duros. Maurice amava instintivamente a solidão; tinha poucos
amigos. Os comportamentos brilhantes, expansivos dos Lombardos e dos Toscanos,
no meio dos quais se encontrava, lhe desagradavam. Vivia à parte, o mais
possível, consagrando o seu lazer à leitura de poetas favoritos. Uma
curiosidade profunda o levava, assim, para os estudos filosóficos. Em boa hora,
é levado a procurar o porquê das coisas, querendo aprofundar esses misteriosos
problemas que dominam toda a vida e que, semelhantes ao fluxo do mar, quando
repelidos do nosso pensamento pela impotência, aí retornam mais imperiosos a
cada vez.
O sentimento religioso tinha, de início, se manifestado nele
por um vivo amor ao catolicismo. As pompas resplandecentes do culto italiano, a
voz possante dos órgãos, os cantos, os perfumes, a magnificência dos edifícios,
o “Dome” de Milão, maravilha da escultura, onde as estátuas de mármore se
perfilam em legiões inumeráveis contra o azul do céu, todos esses esplendores
do romanismo, preenchiam a alma de Maurice de uma emoção profunda. Mas, quando
os sentidos ficaram habituados a essas pompas estrondosas, a sua razão quis
descer ao fundo dos dogmas, analisá-los, desfolhá-los; quando, rasgado o
véu brilhante e material que esconde, aos olhos do vulgo, a pobreza dos
ensinamentos católicos, ele não vê senão uma moral embaciada pela casuística,
os princípios de Cristo falseados, um Deus parcial e cruel, entronizado sobre
um monte de superstições; procura então uma crença esclarecida, capaz de
satisfazer o seu coração, a sua razão, a sua necessidade de fé e de justiça.
Mergulha no estudo das diversas filosofias, desde a dos Gregos e dos Orientais
até ao moderno e dessecante positivismo. Desse colossal exame, se destaca para
ele uma fé espiritualista, baseada no estudo da natureza e da consciência,
encontrando na comunicação íntima da alma com Deus uma força moral que
acreditava suficiente para manter um homem no caminho recto. Suspeitava que a
existência presente não seria a única para nós, que a alma deveria se elevar
pelas vidas sucessivas e sempre renascentes, de mundos em mundos, rumo à
perfeição.
/...
Léon Denis, Giovanna_1880, I 2º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Retrato, pequena
pintura que especialistas de arte italiana atribuem a Rafael Sanzio)
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