O DUQUE DI BICCI DI M. (III)
A enfermidade que vitimara o dono do palácio fora breve. O
seu organismo, antes robusto, recusara-se a lutar, dominado que se encontrava
pela insuportável saudade da esposa – espírito de rara e peregrina beleza, que
viera ter à Terra para alça-lo e aos seus a região superior da vida. Religiosa,
fora Dona Ângela, antes tudo, piedosa, e as suas mãos delicadas, raramente
adereçadas de gemas, repartiam bênçãos aos que a buscavam, reservando também um
dia por semana para visitar os pobres e enfermos, de alguns dos quais ela mesma
cuidava, embora os servos que a seguiam nas suas romagens de misericórdia e
socorro, conduzindo volumes com repasto e guloseimas, moedas e agasalhos,
formassem um séquito prestimoso e dedicado.
À sua chegada, enxugavam-se as lágrimas e a esperança refloria. Não foram
poucos os que lhe receberam da bondade multiplicados pães e vestuários,
unguentos e bálsamos. O médico e o sacerdote do palácio, por ordem sua, eram
igualmente o esculápio e o pastor dos infelizes de todos aqueles sítios. As
guerras contínuas ali haviam deixado várias gerações esfaimadas…
Em torno do seu nome e da sua pessoa eram tecidos comentários elevados, quais
grinaldas de luz, e os múltiplos beneficiários nela sabiam reconhecer a dama da
caridade, a irmã da compaixão…
O duque, a seu turno, rejubilava-se, apesar de, zeloso,
preocupar-se com a sua guarda, nas excursões fora dos muros da propriedade.
Pela estrada real, a ViaCassia, que conduzia de Siena a Florença, não eram poucos os bandoleiros em
surtidas constantes, e as escaramuças contínuas com os salteadores exigiam que
todos os senhores de terras mantivessem pequenos exércitos de mercenários, nos
quais, no entanto, a abnegação e o dever estavam relacionados com o salário que
o opositor lhes pudesse oferecer.
Como o bem aureola e defende todo aquele que o esparze, jamais qualquer
dificuldade obstara a nobre senhora de realizar o exercício santo do amor
fraterno. Parecia que no ministério da Caridade as suas forças se multiplicavam
e os dons da alegria lhe refundiam ânimo e tranquilidade.
Quando da extinção da “Casa Médici”, em 1737, que passara o poder do
grão-ducado da Toscana a Francisco de Lorena, esposo de Maria Teresa da Áustria
– Segunda Casa de Lorena –, a Senhora Ângela, ao invés de quebrantar o ânimo
mais o aumentara, tornando-se o estimulo constante e o encorajamento do esposo,
que resolvera reagir e preservar o património, evitando evadir-se da região,
como ocorrera a outros membros da família.
Antes da derrocada, todo o ducado readquirira com Cosme II o esplendor de
outros tempos, embora o seu carácter fraco e pusilânime, sendo, pois, devedor
de muitas das suas glórias de então à tradicional família,
descendente de Bonagiunta, o comerciante florentino que enriquecera nas
transacções internacionais. De certo modo, o fausto e as extravagâncias de
Cosme III, que sucedera, foram responsáveis pela decadência da Toscana, a
vergonha e a quase miséria dele mesmo.
Com a elevação moral da esposa e o seu carácter inquebrantável, o duque reconquistara,
também, o prestígio em torno do nome, enquanto que, amado, prosseguia, nos
domínios em que se erguia a vila palaciana, como um reduto remanescente de
mentes esclarecidas dos dias idos, não porém, apaixonado.
Desaparecida Ângela, as sombras da tristeza e do acabrunhamento desceram sobre
o vetusto solar, cuja beleza somente se destacava através da alacridade
infantil das três crianças, quando dos folguedos nos jardins ou nos corredores
atapetados do majestoso edifício.
A saudade e a melancolia, cultivadas, são também sementes venenosas que
aniquilam a seiva da vida no seio em que se agasalham. Parasitas, nutrem-se
matando. Assim, quando a enfermidade surpreendeu o duque di
Bicci di M., as forças morais se recusaram a lutar e o corpo se permitiu deixar
vencer.
Especialmente convidado para as exéquias, o Bispo de Siena fez-se presente,
acolitado por um séquito de ociosos, e o velório transformou-se em local em que
sobressaíam o arrivismo e os seus sequazes, atendidos através de repasto
abundante, tendo Lúcia no comando dos serviços, duramente vigiada por Girólamo,
que maquinava planos sórdidos, e por Assunta, que se passava por sua amiga,
enquanto os convidados se deixavam conduzir pelo vinho, consumindo os acepipes…
A bulha era geral e o silêncio somente era feito pelo corpo desencarnado. As
crianças adormeceram a custo, ajudadas por uma serva leal e da confiança de
Lúcia. O solar mergulhava em dor, na alma de uns, e enchia de cobiça os
espíritos infelizes de muitos.
A longa madrugada começa a despertar sobre o burgo encharcado das chuvas
contínuas, enquanto Girólamo, maquiavélico, encoraja os próprios programas
inditosos.
Enquanto Lúcia serve ao Bispo, que se locupleta em farta bandeja de doces e chá
quente, Girólamo, se lhe acerca, simulando afectada gentileza, e da palestra
incipiente, despropositada, sonda, maledicente, o ocioso religioso, quanto ao
que consta sobre o testamento do tio.
Um tanto estimulado pelo capitoso vinho, ingerido em contínuas libações ao
longo da noite, o sacerdote se refere à tutela que Lúcia exercerá sobre as
crianças, com plenos poderes ao património, até que aquelas alcancem a
maioridade. Encorajado pelo moço venal, comenta da sua estranheza quanto à
atitude generosa do senhor em referência a uma jovem sem linhagem nem fortuna.
Lamenta a situação do rapaz, que continuará sob mesada, a ser distribuída pela
testamentária, sob fiscalização do poder público, e diz-se revoltado por a Igreja
não ter sido aquinhoada, recordando-se, enfático, de que algumas décadas entes
os religiosos eram prestigiados em toda a Toscana, graças à família…
Lisonjeado o moço, o representante religioso adianta que se este fora herdeiro
tudo, certamente, seria diverso.
Girólamo, em febre, sorri, corado, inquieto, e medita.
O ódio lhe desperta as paixões subalternas, o ciúme o enceguece e o desespero o
asfixia.
Mentalmente, tem o plano definido: não poderá falhar. Tudo concorre para o seu
êxito. Tem mesmo a impressão de que conta com o conivente apoio do prelado
ambicioso.
Intimamente gargalha. Entre dentes, murmura: “Pagar-me-ás, fera peçonhenta e
espoliadora! Pagar-me-eis, tu e o vil Senhor di Bicci di M. Não suporto quase
esperar! Pagar-me-eis logo mais. Paciência! Espera, Girólamo. Acalma-te!”.
Raia o dia nevoento e demorado. O calendário assinala: 22 de Dezembro de 1745.
/...
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” LIVRO PRIMEIRO,
1. O DUQUE DI BICCI DI M. 3 de 3, 3º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado
a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera
e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)
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