sábado, 12 de dezembro de 2020

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


A Irlanda 
(III de III) 

Através da história dramática dessa ilha que soube, pelos seus próprios meios e sem nenhum auxílio externo, reconquistar a sua independência, reencontrar-se, sob a pena dos seus escritores, esse mesmo gosto dos mistérios do Além, do sentido encoberto das coisas, desse sentimento profundo do oculto que caracteriza esta raça. 

Sob os véus do Cristianismo aparece a alma primitiva dos antigos celtas. Ela vibra na poesia gaélica como nas cordas das harpas de Ossian. O mundo invisível é, para os seus bardos, uma realidade viva e, se lhes acontece, algumas vezes, atribuir-lhe nomes e formas fantasiosas, eles não reconhecem menos, sob os seus aspectos diversos e inconstantes, a sobrevivência e a imortalidade da alma humana. 

Portanto, nos nossos dias, o sentimento do oculto tomou, na Irlanda, nuances mais nítidas e mais precisas. Ele se revestiu de uma forma experimental, tornando-se uma ciência, um método que tem as suas regras e as suas leis. Neste país, como em todo o ocidente, os fenómenos do Além são agora observados, estudados por técnicos conhecedores dos processos de laboratório e que prosseguem essas experiências num rigoroso espírito de controlo com uma atenção escrupulosa. 

Os resultados obtidos pelo professor Crawford, de Belfast, com a Srta. Goligher tiveram grande repercussão. Mas a obra mais importante sobre esses fenómenos é, certamente, a de Sir William Barrett, professor da Universidade de Dublin, membro da Academia Real de Ciências e um dos fundadores da “Sociedade de Pesquisas Psíquicas de Londres”, da qual foi presidente honorário. O seu livro No Limiar do Invisível, traduzido para o francês (e para o português), publicado em 1923, é um dos mais notáveis que têm sido escritos sobre este vasto assunto. Ele resume, de forma clara e em grande profundidade de vistas, os frutos de meio século de observações e experiências. 

Recomendamos a sua leitura e dele nos limitaremos a citar as belas conclusões: 

“A mudança mais radical do pensamento, desde a era cristã, será, provavelmente, a aceitação, pela ciência, da imanência do mundo espiritual. A fé cessará de hesitar ao se esforçar em conceber a vida do invisível, a morte se despojará do terror que inspira aos próprios corações cristãos, os milagres parecerão apenas relíquias supersticiosas de um tempo bárbaro. Pelo contrário, se, como eu acredito, a telepatia é indiscutível, se os seres da criação se impressionam reciprocamente sem a voz nem a palavra, o Espírito Infinito, cuja sombra nos cobre, será, sem dúvida, revelado, no correr dos séculos, aos corações humanos capazes de entendê-lo. 

Para algumas almas privilegiadas foram dadas a intuição, a clarividência, a palavra inspirada, mas todos nós, às vezes, percebemos uma voz dentro de nós mesmos, débil eco dessa vida mais ampla que a humanidade expressa lentamente, porém, seguramente, à medida que os séculos passam. Mesmo para aqueles que estudarão esses fenómenos apenas sob o ponto de vista científico, o benefício será imenso, fazendo-lhes mais evidente a solidariedade humana, a imanência do invisível, a soberania do pensamento e do espírito, noutras palavras, a unidade transcendental e a continuidade da vida. 

Não estamos separados do Cosmo nem perdidos nele: a luz dos sóis e das estrelas alcança-nos, a força misteriosa da gravitação une as diferentes partes do Universo num todo orgânico; a mais pequena molécula e a mais distante trajectória estão sujeitas ao mesmo meio. Mas acima e além desses vínculos materiais, está a solidariedade do espírito. Do mesmo modo que a significação essencial e a unidade de um favo de mel não estão na cera dos alvéolos, mas na vida e no propósito dos seus construtores, do mesmo modo o verdadeiro sentido da natureza não está no mundo material, mas no espírito que lhe dá a sua interpretação, que suporta e une, que vai além e cria o mundo fenomenal através do qual cada um de nós passa um momento.” 

/… 


LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO II – A Irlanda (III de III), 10º fragmento desta obra) 
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, OssianDesaixKléberMarceauHocheChampionnet, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

O Espiritismo na Arte ~


Parte III 

Senso artístico. Constituição e evolução.  
(março de 1922)

Em que consiste o senso artístico? 

O estudo atento da alma nos mostra que tudo na natureza – os sons, os perfumes, os raios de luz, as cores – encontra em nós as suas correspondências, as suas analogias e, que as suas radiações se fundem e se harmonizam às profundezas do ser, na medida da nossa evolução. É isso o que constitui o senso artístico, a compreensão do belo sob todas as formas. 

A evolução desse senso íntimo, a faculdade de expressá-lo, desenvolvem-se nas almas de vidas em vidas e terminam por produzir o talento, o génio. Nos aspectos superiores da arte, o artista encontra a alta concepção da beleza eterna; ele compreende que a sua fonte única está em Deus. Do infinito, essa fonte se lança sobre todos os seres e os penetra de acordo com o seu grau de receptividade. 

Raios de luz e cores, sons e perfumes, estão ligados por um encadeamento, uma espécie de escala da qual cada nota representa uma soma particular de vibrações e que constituem, no seu conjunto, uma unidade perfeita. Se a ela se juntam as formas e as linhas, essa unidade se tornará a lei geral do belo e, a arte, nas suas múltiplas manifestações, terá por objectivo reproduzi-las. 

O estudo da arte e as suas realizações nos impregnam, pouco a pouco, de esplendores do Universo. Inicialmente insensível e inconsciente no homem primitivo, esse trabalho acaba consciente, acentua-se, revela-se sob formas crescentes para se tornar como que um reflexo da beleza suprema. 

Porém, na Terra, a arte ainda é apenas um balbucio. Nos outros mundos e, principalmente no espaço, dizem-nos os nossos guias, ela produz maravilhas perto das quais as mais belas obras humanas pareceriam muito pobres e quase infantis. Chegada a essas alturas, a arte torna-se a forma mais sublime do culto prestado à divindade

Até aqui o artista se inspirou nas coisas do mundo visível ou tangível; dele ouviu as vozes, as harmonias; estudou-lhe as formas, as cores e com elas conseguiu impregnar as suas obras. Assim, o artista criou uma comunhão mais íntima entre o homem e a natureza. Graças a ele, as coisas obscuras e mudas tomaram a alma e as suas vagas aspirações, as suas queixas, as suas dores encontraram expressões que, tornando-as mais vivas, as aproximavam de nós, ao mesmo tempo que a alma humana se tornava mais sensível ao contacto da vida exterior. 

Assim, a arte entregou à vida do globo o sentido profundo que lhe faltava. Por meio da arte, as forças cegas da natureza penetraram em nós e adquiriram como que um reflexo da nossa consciência e dos nossos sentimentos. A alma humana foi em direcção às coisas e a sua influência lhes deu um modo mais intenso de vida e de sensações; por intermédio dessa comunhão a alma da Terra se elevou ao conhecimento de si mesma, do seu papel e do seu grande destino. 

Agora, como se pode ver pelas lições de o Esteta, é todo um outro mundo que se abre, é toda uma vida ignorada que surge, mais rica, mais abundante, mais variada do que tudo o que conhecemos até aqui e, a arte vai encontrar nesse meio desconhecido de fontes inesgotáveis de inspiração e de poesia, formas insuspeitáveis do pensamento e da vida. 

Desde agora, o domínio da matéria subtil e dos fluidos foi aberto, revelando-se sob aspectos prestigiosos, oferecendo ao homem meios de estudo e de observação que se estendem ao infinito ao campo das suas pesquisas e dos seus conhecimentos científicos. As aparições de espíritos nos familiarizaram com todas essas formas de existência extraterrestre, desde as materializações mais densas e mais grosseiras, até às manifestações da mais ideal e mais radiosa vida. 

Nas nossas conversas regulares com os espíritos-guias, obtemos indicações sobre a vida no espaço, sobre a grandiosidade de formas e de cores, sobre as suas suaves e poderosas harmonias, que abrem ao músico, ao pintor, ao escultor, caminhos múltiplos e inexplorados. 

Aqueles que possuem faculdades medianímicas irão percebê-los directamente e, com eles, todos os recursos da arte serão enriquecidos. O vasto mundo dos espíritos torna-se acessível aos nossos sentidos, pelos espectáculos e ensinamentos que ele nos reserva. As forças intelectuais da humanidade serão centuplicadas e, o seu génio artístico criará obras que superarão tudo o que os séculos realizaram. 

/… 


LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte III – Senso artístico: constituição e evolução, 10º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: A Virgem dos Rochedos Versão do Louvre (primeira versão) 1483–1486, detalhe (a mão da virgem por cima da mão do anjo Uriel), pintura de Leonardo da Vinci)

terça-feira, 20 de outubro de 2020

literatura do além-túmulo ~


Capítulo III ~

Tendo eu falado de um caso passado em Itália, direi algumas palavras sobre um outro, recente, que aconteceu a um grupo a efectuar experiências na Lombardia, onde se manifestou uma entidade que afirmava ser o espírito de um escritor falecido muito jovem, havia poucos anos. 

Fora ele, em vida, autor genial de novelas com traços característicos de estilo, de forma de imaginação difícil de imitar. Ora, aconteceu que a entidade em questão, a título de prova de identificação pessoal, ditou vários contos absolutamente conformes aos que escrevia quando vivo. 

Esses documentos mediúnicos foram publicados. A pessoa que promoveu essa iniciativa enviou-me um exemplar da obra e eu fiquei surpreendido com a semelhança incontestável da técnica literária e da imaginação criadora existentes entre os contos escritos durante a sua vida e os ditados pela entidade comunicante. 

Propus-me, então, a analisar, a fundo, o caso em apreço, da presente monografia. Infelizmente, os pais do falecido moço opuseram-se à divulgação da obra, o editor teve de retirá-la de circulação o que me desautorizou a falar dela. 

Isso é tanto mais deplorável quando se trata de documentos mediúnicos donde sobressairiam detalhes mais instrutivos e sugestivos pouco vulgares na maior parte dos escritos desta espécie. 

O que me consola um pouco é pensar que, como nenhuma vontade humana pode impedir o defunto de continuar a manifestar-se, ditando produções literárias com o fito de demonstrar a sua sobrevivência, outras provas virão juntar-se às primeiras e o caso de identificação do autor terá cada vez mais valor, esperando-se o dia em que for levantado o veto injustificado pela vontade daqueles que o impuseram, ou por qualquer outro motivo. 

Capítulo IV 

Nada querendo omitir na enumeração dos casos especiais de que me ocupo neste estudo, devo ainda aflorar o tão conhecido episódio relativo ao romance de Charles DickensEdwin Drood, que ficou inacabado por ocasião do seu falecimento e, que o espírito do romancista teria, ele próprio, terminado post mortem, por intermédio do médium T. P. James, jovem operário mecânico dos Estados Unidos da América, sem cultura literária de espécie alguma. 

O caso deu-se em 1873 e parece-me incontestável e autêntico. As condições nas quais se desenrolou esta série de sessões são muito interessantes e também bastante conhecidas, sobretudo devido à obra de Aksakof, não havendo, portanto, necessidade de recordá-las. A origem supranormal da obra mediúnica em questão foi, alternativamente, afirmada e contestada por numerosos comentadores que o fizeram, empregando, igualmente e com a mesma eficácia, a análise comparada das duas partes – a autêntica e a póstuma – do romance em questão. Os que são favoráveis à solução puramente consciente do enigma tratam, sobretudo, de salientar e comentar os defeitos e as incoerências de natureza geral. Assim, por exemplo, a sra. Fairbanks faz notar que se encontrou, nos papéis póstumos de Charles Dickens, uma cena que este autor escrevera, com antecedência, para a segunda parte do seu romance; ora, esta cena foi ignorada no ditado mediúnico. A sra. Vessel nota, por sua vez, que, lendo essa segunda parte póstuma do romance em apreço, encontrou, pela primeira vez, Dickens monótono e pesado. Ao contrário, os que sustentam a proveniência, autenticamente espírita do ditado mediúnico, não deixam de ter bons argumentos para o fazerem valer. Estes fazem notar que a narração é retomada no ponto exacto em que Dickens a interrompera, ao morrer. 

Isto se dá com tal naturalidade que a crítica mais sagaz não seria capaz de assinalar o ponto de transição. 

Fazem da mesma maneira sobressair detalhes de forma, de estilo, de construção, de ortografia, realmente eloquentes no sentido afirmativo. Assim, por exemplo, a palavra traveller (viajante) está constantemente escrita com “L” duplo, como se escreve na Inglaterra, enquanto que nos Estados Unidos da América se escreve com um único “L”. A palavra coal (carvão) está invariavelmente escrita com um “s” final, à maneira dos ingleses e, não segundo o costume dos americanos. Finalmente, passa-se, no ditado mediúnico, do tempo passado ao presente, sobretudo nas cenas movimentadas, hábito característico de Dickens, pouco vulgar noutros romancistas. 

Sir Conan Doyle, analisando, por sua vez, este caso, num artigo publicado na Fortnightly Review (dezembro de 1927), salienta outras analogias do mesmo género, começando pelos títulos dos capítulos, que guardam, constantemente, na obra mediúnica, a impressão original dos títulos caros a Dickens. Ele cita, além disso, duas passagens descritivas, extraídas do ditado mediúnico, as quais põe em confronto com duas passagens do mesmo género, tiradas da parte autêntica do romance, sem indicar os textos a que pertenciam os diferentes trechos e convida os críticos a distinguirem as autênticas das mediúnicas. Sir Arthur declara que a coisa não está longe de ser conseguida, dada a identidade do estilo e da forma, assim como a sua beleza literária, sinal do mesmo temperamento artístico. 

Apesar disso, sir Arthur também reconhece que o verdadeiro Dickens teria provavelmente feito agir, de modo diferente, certos personagens do romance, porém observa: 

“Parece-me, entretanto, que não se deveria insistir muito neste ponto, pretender que um Dickens, entorpecido pela mediação com o médium James, deva ficar, mentalmente, tão ágil quanto um Dickens, senhor absoluto de si próprio. É preciso, logicamente, admitir este tipo de constrangimento.” 

Noto, por minha parte, que esta última consideração está conforme ao que já fiz observar a propósito dos ditados mediúnicos de Francesco Scaramuzza

Não obstante, Conan Doyle conclui dizendo que, no romance póstumo em questão, “se está bem longe ainda de ficar autorizado a afirmar a existência de uma inspiração real da parte do grande romancista”. 

É nesse sentido que concluiremos também, isto é, que, se os processos da análise comparada, ainda desta vez, são, no seu conjunto, mais favoráveis à hipótese mediúnica do que à contrária, esta circunstância não autoriza, entretanto, a formação de juízos precisos a tal respeito. Deve-se, antes, reconhecer que o caso Dickens ainda não pode ser registado entre os que servem para fazer pender a balança das probabilidades a favor da interpretação espírita dos factos. 

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Ernesto Bozzano, Literatura do Além-túmulo  Capítulo III e IV, 4º fragmento da obra. 
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac | 1900, tempera no painel de Edgard Maxence)

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

~ nas garras do pensamento crítico


Interpretação do homem ~ 

O homem, segundo o materialismo, seja ele mecanicista dialéctico, é um animal pensante. Para Marx, e portanto para o dialéctico, é ainda o resultado da acção simultânea do trabalho, sobre ele e a natureza. Agindo sobre o meio em que vive, trabalhando-o, ele se modifica a si mesmo. Essa concepção materialista do homem não se enquadraria na doutrina de nenhuma das religiões corporificadas em igrejas. O Espiritismo, entretanto, não a contradiz. Apenas a amplia, ensinando que o princípio inteligente, no homem como no animal, independe do corpo. E por isso é condenado e combatido, ao mesmo tempo e por todos os lados, pelos religiosos e pelos materialistas. 

No capítulo III de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, encontramos esta definição: “O trabalho é lei da natureza, por isso que constitui uma necessidade e, a civilização obriga o homem a trabalhar mais porque lhe aumenta as necessidades e os gozos.” Logo mais adiante: “Sem o trabalho, o homem permaneceria sempre na infância, quanto à inteligência.” 

A lei de causa e efeito é o princípio fundamental da doutrina, a evolução constitui a sua própria essência. Por outro lado, o Espiritismo não se estruturou através de formulações hipotéticas. Todo o seu edifício doutrinário assenta na observação e na experimentação. Charles Richet, que condenava a “credulidade excessiva” de Kardec, já o notara, no Traité. Dialéctico por natureza, em essência e pelos métodos que emprega, o Espiritismo, se bem estudado, revela-se o legítimo e natural herdeiro do título a que se candidata o materialismo dialéctico: a síntese do conhecimento. 

Realmente, o Espiritismo, diante dos mundos em litígio do materialismo e do espiritualismo, não peca por exclusão, não comete o pecado proudhoniano ou marxista da escolha. Na sua estrutura encontraremos aquelas duas concepções, não apenas conjugadas ou ajustadas, mas superadas na transfiguração de um novo corpo – a síntese –, em que a ciência, a filosofia e a religião, as três províncias antagónicas do conhecimento, aparecem encadeadas no verdadeiro “processus” da mais pura dialéctica, uma resultando da outra. 

No Anti-DühringEngels lembra as origens do marxismo e expõe a doutrina como a sequência lógica destas fases: a filosofia, a economia-política e o socialismo. No Espiritismo, a sequência tresdobra-se na ciência, na filosofia e na religião. Partindo da observação e da análise dos fenómenos materiais, de natureza supranormal, criamos a filosofia do ser e, atingimos, logo a seguir, a religião. Esta, porém, não se traduz na organização de uma nova igreja, de um novo culto, de um novo “suborno da divindade”. Nem se traduz no antropomorfismo socialista, erguido no altar da produção. Mas é, ao mesmo tempo, a comunhão de bens, de corações e de espíritos, pela qual todos ansiamos, espiritualistas e materialistas, para a construção do mundo melhor amanhã. 

Porque o homem, para o Espiritismo, não é apenas “o último anel da vida animal na terra” (in A Génese, Kardec), nem o produto quase exclusivo da acção simultânea do trabalho; mas também aquele ser que se mostra nos fenómenos de materialização, de aparição, de visão, de voz directa, de incorporação, de psicografia ou de tiptologia, para demonstrar “aos que ficaram” que ele não se extinguiu com a morte e, que o seu conteúdo moral continua a viver e a desenvolver-se indefinidamente, da multiplicidade das formas, sem prejuízo da identidade substancial. 

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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, Interpretação do homem, 10º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Victor Hugo | uma chama de fogo a iluminar as idades

Um Discurso Palingenésico para Materialistas e Ateus ~

  Depois de um jantar oferecido por Victor Hugo a amigos seus, foi ele convidado a expor os seus pensamentos. Entre os comensais encontravam se ateus, agnósticos e materialistas, mas, apesar disto o poeta derramou o perfume poético e filosófico de suas ideias espirituais. Como sempre as suas asas de águia se abriram por cima de todos e de sua boca brotaram os mais excelsos conceitos, que foram reconhecidos pelo ilustre poeta Arsène Houssaye (i). O autor de Os Miseráveis respondeu assim ao convite:

 "Quem pode dizer-nos que eu não volte a encontrar-me nos séculos futuros? Shakespeare escreveu: 'A vida é um conto de fadas que se lê pela segunda vez'. Poderia ter dito pela milésima vez. Porque não há século pelo qual eu não veja passar a minha sombra.

  "Vós não acreditais nas personalidades moventes, quer dizer, nas reencarnações, com o pretexto de que não recordais nada das vossas existências passadas, mas como as lembranças dos séculos desvanecidos poderiam estar impressas em vós quando não vos recordais nada das mil e uma cenas de vossa vida presente? Desde 1802 hei-de ter tido em mim dez Victor Hugo! Creis vós que me lembro de todas as acções e de todos os seus pensamentos?

  "Quando houver atravessado o túmulo para voltar a encontrar outra luz, todos esses Victor Hugo me serão um pouco estranhos, mas esta será sempre a mesma alma!

  "Sinto em mim toda uma vida nova, toda uma vida futura; sou como a selva que muitas vezes foi derrubada; os jovens rebentos são cada vez mais fortes e vivazes. Eu subo, subo, subo até ao infinito. Tudo é radiante à minha frente, a terra me dá a sua seiva generosa, mas o céu me ilumina com o reflexo dos mundos entrevistos.

  "Dizeis vós que a alma é a expressão das forças corporais: por que então a minha alma é mais luminosa quando as forças corporais já me irão abandonar? O inverno está sobre a minha cabeça, a primavera está na minha alma; aspiro aqui nesta hora às lilases e às rosas como se tivesse vinte anos. À medida que me aproximo da velhice, melhor escuto à minha volta as imortais sinfonias dos mundos que me chamam. É maravilhoso e sensível. É um conto de fadas, mas é uma história.

  ''Faz meio século que escrevo o meu pensamento em prosa e em verso, história e filosofia, drama, novela, legenda, sátira, ode, canção; de tudo tenho tratado, mas sinto que não disse mais que a milionésima parte do que é meu. Quando estiver no túmulo poderei dizer, como tantos outros: ''terminei a minha jornada!" e não "terminei a minha vida". A minha jornada recomeçará no outro dia, de manhã. O túmulo não é um labirinto sem saída; é uma avenida, que se fecha no crepúsculo e volta a abrir-se pela aurora.

  "Se eu não perco um minuto é porque amo este mundo como a uma pátria, porque a verdade me atormenta, como atormentou Voltaire, esse deus humano. A minha obra não é mais do que um começo; o meu monumento apenas saiu da terra; quisera eu vê-lo subir ainda; subir sempre. A sede de infinito prova o infinito. Que dizeis vós, senhores ateus?

  "Escuta-me. O homem não é mais do que um exemplar de Deus infinitamente pequeno, a edição em 32 do in-fólio gigantesco, mas o mesmo livro. Glória inaudita para o homem! Eu sou o homem, eu, uma partícula invisível, uma gota no oceano, um grão de areia na praia. Contudo, pequeno que sou, sinto-me deus porque também desenvolvo o caos que está em mim. Eu faço livros – quer dizer, sonhos – que são os mundos. Oh! falo sem orgulho porque já não tenho mais vaidade que a formiga que edificou a Babilónia, nem vaidade como o menor dos pássaros, que canta no coro universal.

  "Eu não sou nada. Jaz aqui Victor Hugo, um abismo, um eco que passa, uma nuvem que foi, uma onda que morre na praia. Eu não sou nada, mas deixa-me continuar a minha obra começada; deixa-me subir de século em século a todas as rochas, todos os perigos, todos os amores, todas as paixões, todas as angústias. Quem vos disse que um dia, depois de milhares de ascensões, não haveria eu, como todos os homens de boa vontade, conquistado um posto de ministro no supremo conselho desse adorável tirano que se chama Deus''.

  Como vemos, Victor Hugo falou de personalidades moventes, quer dizer, de seres dinâmicos que, sobrepujando as trevas do sepulcro, avançam para o verdadeiro Ser, para a aquisição da soberana personalidade espiritual. Essas personalidades moventes assinaladas pelo poeta representam a evolução palingenésica do espírito que, como vemos, constitui a base da sua obra poética e filosófica.

  Reconhece-se ele mesmo uma série de Victor Hugo, que vem ascendendo através da história espiritual do Ser. A perene evolução do seu Espírito aproximou-o de Deus até vencer as trevas do nada e da morte. Esta catarse não foi experimentada por Jean-Paul Sartre e o existencialismo ateu que ele encabeça, pois só o Espírito como entidade palingenésica poderá dar ao homem moderno o verdadeiro existencialismo: a existência baseada nas vidas sucessivas da alma.

 Frente ao nada, Victor Hugo proclamou a vida eterna; frente ao túmulo, aceitou a revelação mediúnica dos Espíritos, cuja valorização filosófica e religiosa se encontra na obra ''O Livro dos Espíritos", de Allan Kardec.

 De facto, o poeta das grandes iluminações espirituais era espírita porque não pôde ser um espiritualista sem bases verdadeiras nem mediúnicas. Foi espírita porque comprovou que a morte não aniquila o homem, cujo espírito imortal e divino é quem rege os processos do mundo material. Sentiu a presença dos mortos como uma protecção e inspiração que eleva e transforma a condição humana. Repeliu o mundo estático e fixo para aceitar a filosofia da vida universal, concebendo que almas e mundos se enlaçam dialecticamente à causa da lei da reencarnação a que tudo está submetido.

  Victor Hugo foi o gigante da visões cósmicas, o poeta dos salmos e odes que igualaram as mais belas páginas dos profetas bíblicos. Tinha no seu espírito a poesia e o saber da filosofia espírita. Sentiu de forma ampla os postulados da ciência da alma em relação com a ciência do céu. Foi assim que compreendeu que o ser passa de um mundo ao outro mediante vidas e mortes sucessivas, para se transformar num colaborador do Plano Divino.

 Do pensamento filosófico e poético de Victor Hugo deduz-se que não haverá autêntico espiritualismo sem as bases mediúnicas do Espiritismo. Toda a verdadeira concepção espiritualista deverá assentar-se sobre a concepção revelada pelo génio espiritual e religioso do mundo invisível. Para o poeta, as manifestações mediúnicas não eram o resultado de sombras larvais, de resíduos psíquicos do ser nem de sedutores demónios. As manifestações, para Victor Hugo, eram mensagens dos mundos imateriais destinadas a penetrar a natureza humana para iluminá-la pelo amor e pela beleza.

  No seu país, outro génio poético das vidas sucessivas foi Alphonse de Lamartine, que cantou a concepção da reencarnação da alma. A história espiritual que anima os seus dois livros - A queda de um anjo Jocelyn - está entretecida pelo amor entre dois seres que se buscam através dos tempos. Lamartine, na sua obra Uma viagem ao Oriente, revela as reminiscências palingenésicas de passado distante. Disse assim num dos seus capítulos: "Quando visitei a Judeia, não tinha nas mãos nem a Bíblia nem mapas, nada que me servisse de indicação de lugares, sequer uma pessoa capaz de me dar o nome actual dos lugares nem o antigo dos vales e montanhas. Apesar disso, reconheci imediatamente o Vale de Terebinto e o campo de batalha de Saul. Quando fomos ao convento, os padres me confirmaram a exactidão de minhas previsões. Os meus companheiros ficaram admirados e apenas davam crédito a isso.

  "Em Sephora, designei com o dedo e mencionei pelo nome uma colina coroada por um castelo arruinado, como o provável lugar do nascimento de Maria. No dia seguinte, ao pé de uma montanha árida, reconheci o túmulo dos macabeus, no que disse a verdade sem o saber. Exceptuando os vales do Líbano, não tenho encontrado na Judeia um lugar, uma coisa que não fosse para mim como uma recordação.

  "Temos vivido, pois, duas vezes ou mil? A nossa memória não é quiçá mais que uma imagem adormecida, que o sopro de Deus faz reanimar" (ii). Victor Hugo e Alfonso de Lamartine coincidem nesta concepção palingenésica do ser. Ambos sentiam ''misteriosos estremecimentos'' ao encontrarem-se frente a ruínas antigas; percebiam como a sombra de "outra sombra" se projectava sobre o presente. De facto, estes génios da gaia ciência somente pela ideia da pré-existência das almas puderam alcançar tão alto nível lírico e religioso. Isto nos mostra que a criação poética voltará às suas verdadeiras fontes quando o poeta se reconhecer como um ser que nasce, morre e renasce. Em suma, a poesia palingenésica será o que despertará a alma encarnada do seu sono terreno e que lhe fará recordar as suas vidas anteriores entretecidas de misteriosas longitudes espirituais.

/...
(i) Suzanne Misset-Hopes: Presença de Victor Hugo, Ed Amoure Vie, Bugnolet (Sense,
França). N. do Autor.
(ii) Citado por Petit de Julleville em sua Histoire de la literature française, t. VII. N. do Autor.


Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, UM DISCURSO PALINGENÉSICO PARA MATERIALISTAS E ATEUS, 9º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

a pedra e o joio ~


A teoria corpuscular

Os artigos aqui reunidos constituem uma crítica espírita ao livro do Sr. Hernani Guimarães AndradeA Teoria Corpuscular do Espírito, louvado por diversos confrades, que o consideraram como verdadeiro acontecimento doutrinário do ano de 1961. Crítica espírita, e não apenas crítica, porque elaborada à luz dos princípios doutrinários, com a finalidade exclusiva de verificar o enquadramento ou não da teoria nesses princípios. Foram publicados na secção espírita do “Diário de São Paulo”.

O livro criticado é apenas o primeiro volume de uma série, cujo segundo volume já está em circulação há algum tempo. Alguns leitores poderão pensar que a nossa crítica é precipitada, que devíamos esperar a conclusão da série. Mas não é assim. Porque, nesse primeiro volume, o autor apresenta as bases da sua teoria corpuscular do espírito. Os demais volumes servirão somente para completar a exposição. A nossa crítica é formulada nos fundamentos da teoria, sendo válida, portanto, para toda a sua estrutura.

As intenções do Sr. Guimarães Andrade são boas. o seu desejo expresso é o de colaborar para que o Espiritismo se firme no meio científico. Não obstante, verá o leitor que a teoria corpuscular se propõe reformar a doutrina espírita e a substituí-la. Toda a codificação de Kardec é considerada como coisa do passado. Essa a razão que nos levou a examinar a teoria. Se ela, realmente, abrisse perspectivas novas para o Espiritismo, não teríamos dúvida em reconhecê-lo.

Deixemos bem claro este ponto. Em primeiro lugar, como o leitor verá no correr dos artigos, somos amigos pessoais do confrade Guimarães Andrade. Bater palmas a um amigo é um dever que se cumpre com alegria. Em segundo lugar, no Espiritismo não existem motivos de ordem sectária, eclesiástica, financeira, política, ou de qualquer outra espécie, que nos impeçam de reconhecer a verdade nos opositores, quanto mais nos colaboradores. Esta crítica não é ditada, pois, senão pela consciência das responsabilidades doutrinárias; consciência que, como sabem todos os espíritas, implica uma permanente atitude de vigilância e de defesa dos princípios do Espiritismo.

Kardec legou-nos a codificação há pouco mais de cem anos. De lá para cá, o mundo evoluiu rapidamente e os conhecimentos humanos alargaram-se de maneira espantosa. A vertigem do progresso atordoa os homens, e desse atordoamento não escapam os espíritas. Nada mais natural que o aparecimento, nos nossos dias, de tantas tentativas de reforma do Espiritismo. Entendendo que a codificação já foi ultrapassada pelo desenvolvimento das ciências, muitos confrades se esforçam em ajudá-la a recuperar o terreno perdido. As intenções, como vemos, são boas.

Acontece, porém, que o Espiritismo é uma doutrina do futuro e não do passado ou do presente. Como os Evangelhos, que depois de dois mil anos continuam a nos empurrar para a frente, a codificação está ainda muito longe de ter sido superada. Pelo contrário, somente agora as ciências estão dando os primeiros sinais de se aproximarem do Espiritismo. Dessa maneira, os confrades aflitos, que se esfalfam na dura tarefa de “actualizar o Espiritismo”, estão apenas equivocados.

No caso do confrade Guimarães Andrade o equívoco é tanto maior, quanto se trata de uma tentativa de enquadrar o Espiritismo na sistemática das ciências materialistas; praticamente, uma tentativa de prender a doutrina espírita numa gaiola de conceitos físicos, materiais. Os confrades que louvaram o livro fizeram-no por espírito fraterno, ou por não terem compreendido a teoria que nele se expõe. Tendo tido o cuidado de examinar a teoria, podemos oferecer a esses confrades uma contribuição sincera, para que melhor ponderem a respeito. Os que não aceitarem a nossa contribuição deverão pelo menos reexaminar o livro, com as suas próprias luzes, pois trata-se de grave problema que está surgindo no movimento espírita brasileiro.

Na verdade, esse problema não deveria tomar corpo, uma vez que a teoria corpuscular não oferece nenhuma consistência do ponto de vista científico. Mas, como o livro é escrito para o povo, e o povo nada conhece das questões científicas nele tratadas, o perigo é evidente. O Sr. Guimarães Andrade, apoiado ainda pelos confrades que o louvam na imprensa espírita, vai fazendo adeptos. Já está surgindo entre nós uma corrente de “espiritismo corpuscular”, que ao lado de outras correntes em desenvolvimento poderá completar a obra de enfraquecimento do movimento espírita brasileiro.

Para que o leitor possa bem avaliar o que isso representa, queremos lembrar a situação ridícula em que se colocaria um cidadão de poucas letras que se propusesse a discutir numa assembleia de letrados. O movimento espírita brasileiro ainda não dispõe de um corpo de sábios, de homens de ciência, capazes de enfrentar o problema doutrinário neste ou naquele campo das especializações científicas. Propormo-nos a apresentar uma teoria científica do espírito, sem as credenciais necessárias para isso, sem nos servirmos do aparato técnico indispensável, é simplesmente querermos provocar o riso.

A fragilidade da teoria corpuscular é evidente. A análise rápida que fizemos, em artigos de jornal, revela numerosas contradições. Que diríamos de uma análise mais profunda, realizada por especialistas dos vários ramos da ciência em que a teoria se apoia? Mesmo no plano filosófico, de nossa especialidade, a análise aprofundada da teoria seria desastrosa. O pouco que dissemos mostrará isso aos que tiverem “ouvidos de ouvir”. Mas um físico, um matemático, um biólogo, o que diriam, num exame aprofundado da teoria?

A nossa intenção não foi a de esmiuçar o livro, mas tão-somente a de mostrar as suas incongruências mais gritantes, e de fazê-lo, não no plano filosófico ou científico, mas no plano espírita. Escrevemos para o meio doutrinário. Mesmo porque o livro só interessa ao nosso meio. Fora dele, não terá repercussão. Não há nada, nessa tentativa de formulação teórica, que possa interessar aos homens de ciência. Dessa maneira, o livro só tem, na realidade, um sentido: o de lançar confusão no meio espírita e levá-lo a uma posição desairosa.

Não acusamos desse crime o confrade Guimarães Andrade. Pelo contrário, já dissemos que as suas intenções são boas. Mas o apóstolo Paulo exclamava, em Romanos, 7:24: “Não faço o bem que desejo; mas o mal que não quero, esse faço”. Se a Paulo aconteceu assim, depois da visão na Estrada de Damasco, não é demais que aconteça a nós, quando tentamos avançar além das nossas forças. A teoria corpuscular do espírito não faz o bem que o autor pretende, mas o mal que ele por certo não queria. Isso decorre, evidentemente, da fonte espiritual que o impulsiona nesse difícil caminho das formulações científicas. Seríamos felizes se o nosso trabalho servisse de advertência ao confrade, quanto aos perigos a que se expõe.

Depois da publicação dos nossos artigos, alguns confrades lançaram novos louvores à teoria e ao seu autor, às vezes sem nenhum propósito. Ao que parece, quiseram apenas oferecer-lhe o testemunho da sua solidariedade. Gesto nobre, sem dúvida, mas extemporâneo. Sim, pois não atacamos o confrade, nem quisemos diminuí-lo. Gostaríamos que esses companheiros, em vez de elogiarem com palavras retumbantes a nova teoria, ou de a defenderem com golpes de ironia, fizessem o que fizemos: uma análise objectiva da mesma. Porque, em matéria de ciência, não valem os louvores. Por mais que louvemos um trabalho errado, não o emendaremos.

Deixamos, pois, a nossa crítica nas mãos dos leitores desapaixonados, que não se empolgam facilmente com formulações de aparência brilhante. Oferecemo-la aos confrades conscientes da gravidade da hora que atravessamos e da seriedade do Espiritismo. Se estivermos errados, que nos revelem o nosso erro. Não teremos dúvida em voltar atrás. Será mesmo com alegria que nos penitenciaremos. Seria mil vezes preferível termos errado por excesso de zelo, na defesa da doutrina, a vermos confirmada a posição difícil do autor da teoria.

Para terminar, queremos lembrar que, na própria Psicologia, as teorias elementares ou atómicas já estão superadas. Wilhelm Dilthey, o grande filósofo e psicólogo alemão, reagindo contra as correntes elementaristas do século passado, dizia em seu livro O Mundo do Espírito, edição Aubier de 1947: “A vida psíquica é originalmente e sempre, de suas formas primárias até às mais elevadas, uma unidade. Não é feita de partes; não se compõe de elementos; não é uma composição; não é um resultado da junção de átomos sensíveis ou afectivos: é uma unidade primitiva e fundamental que se encontra em toda parte”.

Quando, na própria Psicologia, – que trata do espírito na sua manifestação no plano material, – se considera inadmissível a concepção atómica, derivada das ciências físicas, como admitirmos semelhante atitude no plano real do Espírito?

/…


José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. A teoria corpuscular, 10º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Oliver Lodge, por que creio na imortalidade da alma ~


Introdução
(II)

Os sábios, que são tão humanos quanto cientistas, reagiram individual e diversamente contra tal tendência para o supranormal, que se poderia chamar justamente de milagroso. Alguns vão até ao desprezo e à condenação dessas experiências, que estão fora da verdadeira ciência; outros as aceitam humildemente, como herança da humanidade, sem as procurar pesquisar ou compreender. A maioria, porém, considerando de forma respeitosa e mesmo compassiva a conduta das pessoas religiosas, é de opinião que essas coisas nada têm a ver com as suas ocupações profissionais e intelectuais e, sem positivamente as negar, por elas não se interessam. O grupo extremo dos cientistas, que pretendem ser filósofos, olhando a vida sob o ponto de vista materialista ou sensualista, não tem eloquência, nem entusiasmo, tendendo para o dogmatismo, a fim de consolidar a sua filosofia robusta, porém algo árida.

Tais homens se vangloriam da sua emancipação da tradição religiosa e convidam os outros a compartilharem dessa audaciosa rejeição das fontes do consolo humano, mostrando uma calma estóica no meio do que, para os demais, pareceria a ruína e a desolação. Citarei, para exemplo, um extracto do ensaio de Bertrand Russell, membro da Royal Society, intitulado A Free Man’s Worship (O culto de um homem livre), e numerosas profissões de fé, menos eloquentes, de outros escritores, poderiam ser citadas, mas diriam a mesma coisa que este extracto:

“Que o homem é produto de causas sem nenhuma previsão do fim que buscam; que a sua origem, o seu desenvolvimento, as suas esperanças e os seus medos, as suas afeições e crenças são apenas o resultado do aglomerado fortuito de átomos; que nenhum entusiasmo, nenhum heroísmo, nenhuma intensidade de pensamento ou sentimento podem conservar a vida individual além-túmulo; que os trabalhos de todas as idades, a devoção, a inspiração, o brilho resplendente do génio humano estão votados à extinção com o desaparecimento grandioso do sistema solar e que o templo inteiro das obras humanas deve ficar infalivelmente soterrado sob os destroços de um universo em ruínas – todas essas coisas, se não são indiscutíveis, são quase tão certas que uma filosofia que as repila não se poderá sustentar. Só com o alicerce dessas verdades e sobre a sólida base de um desespero intransigente será doravante possível construir, com toda a segurança, a habitação da alma humana.”

Esse conselho de desespero final está impregnado de uma convicção quase triunfal. Talvez seja um cântico guerreiro destinado a sustentar a moral dos combatentes. Não está ele afastado dessa triste contemplação da sorte dos seres humanos pela qual os poetas da Antiguidade se mostravam às vezes cheios de aflição? Alfred Tennyson assim apostrofa a Virgílio:

Tu, que vês toda a Natureza Universal movida pelo Espírito Universal,
Tu, majestoso na tua tristeza pelo destino duvidoso da Espécie Humana.

No agnosticismo (i) hodierno, essa triste asserção foi substituída por um sentimento que se assemelha mais à exaltação do facto de que o destino não é aparentemente duvidoso. Se isto fosse verdade, não poderíamos deixar de admirar esse estoicismo, espantando-nos por ver tanta energia dispensada ao serviço de uma raça votada ao desaparecimento. A única razão que me leva à discussão de tal filosofia e de tal ética é que, por mais admirável que seja em si mesma, creio firmemente que, no fundo, é cientificamente falsa.

O agnosticismo do século XIX esquecia-se às vezes de ser simplesmente ateu e, assim como o professor W. K. Clifford, se comprazia na negação exuberante de toda a existência espiritual ou supra-sensorial. Essa fé negativa é hoje compartilhada por grande número de pessoas, inclusive a clientela desse infalível e pouco modesto periódico The Freethinker (O Livre Pensador). Tais pessoas muito se regozijam do que consideram como a sua liberdade de pensamento, que não é mais do que um ponto de vista limitado:

“O Universo é composto de éter e de átomos e nele não há lugar para espíritos.”

Negações especulativas dessa espécie deveriam ser confirmadas por conhecimentos mais extensos e aceites com o veredicto da Ciência, mas no decurso destes últimos anos, vários daqueles que haviam consagrado as suas vidas aos estudos científicos fixaram a sua atenção sobre certos fenómenos bizarros e pouco comuns, fenómenos que muitas pessoas consideram como a demonstração da existência de um mundo invisível e supranormal, e provavelmente espiritual, um mundo de realidades individuais e imateriais, na expressão de Frederic Myers.

Após detido estudo desses fenómenos, alguns chegaram à conclusão, não sem vivo sentimento da sua responsabilidade, de que a explicação mais fácil que se pode dar deles se encontra na hipótese de que a nossa existência não é apenas limitada à Terra e às coisas terrestres, como supomos, e que estamos em relação e em contacto com uma outra espécie de vida. Assim, a nossa atitude para com tais fenómenos, mesmo de ordem mental, deverá modificar-se e tornar-se cósmica e universal. Dito de outra maneira, os fenómenos não podem ser explicados se os limitarmos a experiências ordinárias e normais da vida terrestre.

Uma segunda revolução de Copérnico está assim em curso: a Terra, inclusive os outros planetas que se lhe assemelham, não é a única morada da inteligência. Começo, com efeito, a pensar, não como consequência de intuições religiosas, mas na razão de indicações, ainda um pouco obscuras, numa ciência nascente, mais vasta, em que a inteligência não é limitada às superfícies das massas planetárias, mas que penetra e domina o Espaço. Ela está activa em toda a parte, não está ausente em parte nenhuma. Parece-me possível e mesmo provável que a essência da vida e da inteligência deve habitar o éter; todavia, se tem necessidade de um veículo físico, ela só se encarna na matéria excepcional e temporariamente quando as circunstâncias são favoráveis e se verificam delicadas e excepcionais condições.

Assim, parece que a vida encarnada (i), tal como a conhecemos, tem necessidade da substância complexa a que chamamos protoplasma, à guisa de morada. Essa aglomeração molecular complexa não se pode formar senão a uma temperatura bastante baixa. O mesmo se dá com certos átomos de que ela se compõe. Ora, sabemos nós que a maior parte da matéria que compõe o Universo está a uma temperatura muito elevada e mesmo incandescente. Entre as massas que se encontram bastante arrefecidas, muitas são bem pequenas para reter uma atmosfera. É inteiramente excepcional que um corpo celeste tenha uma massa bastante importante para reter, pela gravidade, gases na sua superfície, sem ser bastante volumosa para aí conservar ou desenvolver muito calor. Para conservar a vida, um planeta não deve ter uma temperatura muito baixa, que solidificaria a água, nem muito elevada, o que lhe valeria a evaporação. A fim de que a água possa existir em estado líquido e que o protoplasma viva, é preciso exactamente a escala das temperaturas que se encontra na atmosfera terrestre.

A vida na Terra encontra-se distinta e evidentemente associada à matéria, em toda a parte que isso seja possível. Nos seres superiores a vida expande-se em inteligência. Assim, de um modo curioso, e apesar de tudo bastante natural, chegamos à conclusão de que a vida e o espírito não podem coexistir senão associados à matéria, e quando o veículo da vida fica gasto e é abandonado, somos levados a crer que a vida e a inteligência, emancipados, desapareceram, para sempre, da existência.

O que surpreende não é que sobrevivam às suas encarnações materiais, mas que não tenham nunca podido se encarnar pouco que seja. Sou levado a admitir a verdade provável, tanto quanto posso saber, de que a união da vida e do espírito com a matéria é uma coisa excepcional. Creio que tal associação é mais perfeita na região cósmica e interplanetária, quase ignorada ainda hoje pelas ciências ortodoxas, tanto biológicas como fisiológicas. Admito que um veículo qualquer seja praticamente necessário para o exercício da inteligência, mas não suponho que o corpo seja unicamente composto da reunião de cargas eléctricas positivas e negativas a que chamamos comummente “matéria”. Isso me parece uma suposição gratuita e mal fundada, assim como muitas outras suposições que teorias científicas recentes (especialmente as pretensas doutrinas da Relatividade) nos levaram a rejeitar.

Posso imaginar uma outra estrutura composta de éter, tão sólida e substancial quanto a matéria ordinária, mas com a diferença de que ela ultrapassa o limite dos nossos actuais sentidos corporais e que não está sujeita à intervenção muscular directa. As partículas que compõem um bloco material são mantidas juntas por forças de coesão, de afinidades químicas e gravitação e essas forças imateriais ou tensões são cada vez mais conhecidas como funções do éter do Espaço. O corpo material, que vemos e tocamos, não é nunca o corpo inteiro; ele deve possuir uma contraparte para manter a sua entidade e eu penso que, no caso dos seres vivos, é a contraparte etérica que é verdadeiramente animada. Na minha opinião, a vida e o espírito não estão nunca directamente associados à matéria e não podem agir senão indirectamente através das suas conexões com um veículo etérico que é o seu real instrumento, um corpo etérico, que, por sua inter-reacção, é capaz de influenciar a matéria.

As partículas materiais, reunidas pelo corpo etérico, sofrem uma modificação contínua, a sua natureza é fortuita e temporária; são às vezes desagradáveis e mal dispostas, finalmente, o corpo material deteriora-se. A matéria tem numerosas imperfeições, porém o éter jamais deu algum sinal de imperfeição. É absolutamente transparente e não deixa nenhuma energia escapar-se; toda a estrutura composta de éter é, segundo toda a probabilidade, permanente. Possuímos um corpo etérico independente de todo o acidente que possa acontecer ao conjunto da matéria associada, e continuamos a possuir sempre esse corpo etérico depois do desaparecimento do nosso corpo material. A única objecção a esta realidade reside no facto de que nada existe, de natureza etérica, susceptível de impressionar os nossos sentidos actuais. Tudo o que pertence ao éter (mesmo na ciência física) deve ser conhecido por deduções. A observação directa parece sem esperança. Pode suceder que vivamos num corpo etérico permanente e invulnerável, do qual não conhecemos absolutamente nada, porque ele penetra todo o conjunto das partículas do corpo material, que estão perpétuamente em vibração, activando constantemente os nossos nervos e atraindo toda a nossa atenção.

Tal é, de forma sumária, a conclusão a que lentamente cheguei. Fica por indicar, de maneira geral, a base da experimentação sobre a qual ela repousa e tudo o que ela implica. Não posso empenhar-me aqui na discussão dos argumentos actuais relativos ao éter e da sua necessidade filosófica para a compreensão de todos os fenómenos tratados de uma forma abstracta, mas procurarei resumir a posição geral que a observação dos factos me levou a tomar. Tratarei, a seguir, dos factos, tais como me são conhecidos. Um método, que consiste em citar as deduções, antes de mencionar os factos sobre os quais elas repousam, parecerá talvez um método algo paradoxal, mas uma hipótese de trabalho que serve sempre de auxílio. Assemelha-se a um fio ao qual se pode enfiar uma pérola. Sem uma pista, batemos o campo, perdidos num labirinto, sem meios para nos orientar. Se uma hipótese não estiver em harmonia com a verdade, deverá ser ela modificada ou abandonada e assim avança por si, porém, se esperarmos, ela nos poderá ser útil e a melhor maneira de se lhe verificar os pontos fracos é submetê-la à prova.

/...
"Mais do que verdadeiramente grande cientista e engenheiro, Sir Oliver Lodge era um sensitivo que sabia ser seu dever de cientista; ser verdadeiro para o mundo espiritual em primeiro lugar, uma vez que era a fonte de toda a inspiração, toda a vida e toda a realidade. (in AETHERFORCE, Open Source Living Science). Nota em apêndice desta publicação.


Oliver LodgePor que creio na imortalidade da Alma, Introdução, Capítulo I Visão cósmica da vida e do Espírito (II de II), 2º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Sir Oliver Joseph Lodge, com alguns dos seus inventos)

sábado, 6 de junho de 2020

o sentido da vida ~


Sobrevivência e Imortalidade ~

Prega a ciência moderna, como já vimos, baseada nos seus resultados materialistas, a imortalidade do homem e de todas as coisas através da eternidade do Universo. A imagem do mar, eterno no seu conteúdo e, no seu aspecto e, variável na sucessão das ondas, dá-nos maior compreensão desse quadro transcendente e supranormal que a ciência materialista nos pinta. Os homens e as coisas são como simples vagas, que aparecem e desaparecem. Não têm qualquer espécie de forma permanente. Só a água, o conteúdo universal, é que sobrevive através dos tempos, renovando as formas, sem qualquer continuidade daquelas em si mesmas.

Essa visão, que muito se assemelha à do antigo panteísmo e à de certas escolas de ocultismo, que consideram o homem como fagulha divina momentaneamente destacada de Deus, e que a Ele voltará depois da morte – excluindo-se naturalmente as que assim pensam dentro da linha reencarnacionista – já foi estudada por Allan Kardec em O Livro dos Espíritos.

Em certo momento pergunta ali o codificador:

“Que nos importa ter uma alma, se, extinguindo-se-nos a vida, ela desaparece na imensidade, como as gotas d’água no oceano? A perda da nossa individualidade não equivale, para nós, ao nada?”

Realmente, duas concepções existem, que conduzem o homem à desesperança. A de aniquilamento total do ser por meio da morte física e a dessa imortalidade por transmissão, que nada significa. Também a ideia da imortalidade através da sobrevivência de um princípio místico e misterioso, que seria a alma destinada ao inferno ou ao céu, não satisfaz a nenhuma inteligência racionalista. Somente a concepção espírita, aliás, comprovada pela observação, que nos fala da imortalidade pessoal, oferece ao homem a visão real do seu destino e, mais do que isso, da sua responsabilidade em face da vida e do mundo.

Entre os que aceitam o Espiritismo, subsiste, entretanto, uma pequena divergência de opinião, no tocante à interpretação do sentido imortalista da sobrevivência. Provamos, através das comunicações e dos fenómenos espíritas, a sobrevivência do homem. Provamos que a morte física não é o fim do indivíduo consciente. Provamos mesmo, que essa morte não chega a modificar o homem, pois ele continua, na vida espiritual, com todas as suas características individuais da vida material. A perda do corpo unicamente priva o indivíduo do contacto visível com a matéria. Assemelha-se extraordinariamente ao abandono do escafandro pelo escafandrista, que, longe de perder em si mesmo alguma coisa com isso, readquire a sua agilidade corporal e perde apenas a capacidade de viver no fundo do mar.

Entretanto, isso não nos prova a imortalidade, que implica na eternidade do ser. Imortalidade pessoal, portanto, é um termo com o qual se procura interpretar uma suposição, decorrente da verificação do facto real da sobrevivência. Nesse caso, dizem alguns, o que está provado é a sobrevivência, não a imortalidade.

Os espíritos que transmitiram a Kardec as linhas mestras da doutrina ensinaram que o homem é imortal. Seguiram, aliás, a linha tradicional dos ensinamentos superiores, das revelações dadas ao homem em todos os tempos, pelas forças do Alto. Todas as religiões afirmam o carácter imortalista do homem e as ordens ocultas e esotéricas do passado, algumas das quais ainda sobrevivem, também ensinaram sempre a mesma coisa. A revelação espírita não fugiu a essa norma geral e o simples facto dessa concordância nos faz pensar na possibilidade de se tratar de um facto real.

Do ponto de vista espírita, entretanto, essa questão não tem razão de ser. O Espiritismo não se perde em cogitações dessa natureza, tão semelhante às infindáveis controvérsias escolásticas da idade média. Se não temos recursos para investigar a possibilidade dessa coisa que mal podemos compreender, a imortalidade, que equivale à eternidade, como poderemos manter discussões estéreis a respeito? Basta-nos, evidentemente, saber que há a sobrevivência. E é indiscutível que a sobrevivência nos autoriza a super-existência ilimitada, pelo menos com os seus limites muito além das possibilidades de verificação.

No primeiro capítulo de O Livro dos Espíritos, questão nº 14, título Panteísmo, os espíritos que orientavam Kardec deixaram de maneira clara, bem definida, a posição do Espiritismo em face desses enigmas escolásticos.

Respondendo a uma pergunta do codificador sobre a natureza de Deus, responderam eles:

“Deus existe; disso não podeis duvidar e é o essencial. Crede-me, não avanceis além. Não vos percais num labirinto donde não lograríeis sair. Isso não vos tornaria melhores, antes um pouco mais orgulhosos, pois que acreditaríeis saber, quando na realidade nada saberíeis. Deixai, pois, de lado todos esses sistemas; tendes muitas coisas que vos tocam mais de perto, a começar por vós mesmos. Estudai as vossas próprias imperfeições, a fim de vos libertardes delas, o que será mais útil do que pretender penetrar no que é impenetrável.”

Afirma a ciência moderna que o homem é limitado na sua capacidade de conhecimento. O Espiritismo concorda com essa afirmação, não procurando iludir-se e iludir os demais a respeito de coisas inverificáveis. A natureza experimental da doutrina não nos permite essas fugas para o mais além. E embora os materialistas nos acusem de desertores, repetindo, como papagaios, que não sabemos enfrentar a realidade, os que se derem ao trabalho de estudar a doutrina verificarão que, pelo contrário, procuramos enfrentar a realidade num sentido muito mais amplo, racional e coerente do que o defendido pelos materialistas.

Basta-nos, pois, verificar o facto, já agora incontestável, da sobrevivência, que continuaremos a chamar de imortalidade porque ela representa, na verdade, a negação da morte.

Aos conceitos pretensamente científicos de imortalidade-cósmica, num sentido geral e não individual, opomos o resultado das nossas experiências, que demonstram à saciedade a sobrevivência pessoal. Contra factos não há argumentos, nem prevalecem os raciocínios, por mais bem tecidos que se nos apresentem.

Os espíritas não inventaram uma explicação para os fenómenos; foram estes mesmos que revelaram a sua natureza íntima. Os próprios espíritos desencarnados se incumbiram de dizer aos homens, por múltiplas formas e em múltiplas ocasiões, dirigindo-se a sábios, filósofos, teólogos e simples curiosos, que eram eles os agentes, conscientes e intencionais, dos fenómenos observados. Eles mesmos se incumbiram de provar que não eram entidades misteriosas, pertencentes a qualquer escala desconhecida de seres infernais ou celestiais, mas simplesmente as almas daqueles que haviam morrido.

A nossa crença na imortalidade pessoal não se baseia, pois, em suposições, mas em factos concretos, mil vezes repetidos e comprovados, e cuja ocorrência jamais se interrompeu na face da Terra.

A essa convicção, que podemos sem a menor dúvida chamar de científica, pretendem alguns eruditos de hoje opor, em nome da própria investigação científica, o absurdo da imortalidade cósmica, através dos elementos naturais e da sua constante transformação. Não se baseiam, para isso, em nenhuma experiência demonstrativa. Partem apenas da base frágil das suposições e, mais espantoso é que, defendendo os métodos científicos, não se lembram de que toda a teoria contraditada pelos factos não pode subsistir.

Uma das teses mais recentes e perigosas é a de que a imortalidade individual contradiz o princípio da evolução geral. Afirma-se isso com foros de grande e profunda verdade, com a intenção evidente de fechar a porta, de uma vez por todas, a qualquer tentativa de esclarecimento do assunto. Mas temos o direito de perguntar ainda aqui os motivos dessa contradição e, de afirmar justamente o inverso do que pretendem dizer os defensores ilustres desse ponto de vista. Para isso, não precisamos de silogismos de espécie alguma. Basta-nos lembrar que toda a evolução das coisas, à nossa volta e nas imensas extensões do Universo conhecido, se processa através de um único método, firmado pela natureza em toda a parte, sem excepção: o da evolução individual.

Evoluem os espécimes, para que evolua a espécie. Evoluem os homens, evoluem os povos, uns se adiantando aos outros para que evolua a humanidade. Evoluem os elementos, para que evolua a Terra. Evoluem os mundos no espaço para que, certamente, evoluam os sistemas planetários e o próprio cosmos. Por que estranha razão, mais uma vez encontramos o pensamento humano deslocado da ordem geral, no momento em que tem de encarar o problema da própria evolução? Por que motivo misterioso a evolução individual, unicamente no tocante ao problema da sobrevivência, teria de contrariar o princípio da evolução geral? Mistérios, ou melhor, delícias da caturrice humana. 

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Sobrevivência e Imortalidade, 10º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

sábado, 2 de maio de 2020

o grande enigma ~

Unidade substancial do Universo
(II)

A grande querela secular que dividia as escolas filosóficas reduz-se, pois, a uma questão de palavras. Nas experiências em que a William Crookes coube tomar a iniciativa, a matéria funde-se, o átomo desaparece; em seu lugar surge a energia. A substância é um Protão que reveste mil formas inesperadas. Os gases, que se consideravam permanentes, se liquefazem; o ar se decompõe em elementos muito mais numerosos do que a ciência de ontem ensinava; a radioactividade, isto é, a aptidão dos corpos à desagregação, emitindo eflúvios análogos aos raios catódicos, revela-se qual um facto universal. Uma revolução se dá nos domínios da Física e da Química. Por toda a parte, à nossa volta, vemos expandirem-se fontes de energia, imensos reservatórios de forças, muito superiores em potência a tudo quanto até hoje se conhecia. A Ciência se encaminha, pouco a pouco, para a grande síntese unitária, que é a lei fundamental da Natureza. As suas mais recentes descobertas têm um alcance incalculável, no sentido de demonstrar, experimentalmente, o grande princípio constitutivo do Universo: unidade das forças, unidade das leis. O encadeamento prodigioso das forças e dos seres – precisa-se, completa-se. Verifica-se existir continuidade absoluta, não só entre todos os estados da Matéria, mas ainda entre estes e os diferentes estados da força. (*)

A energia parece ser a substância única, universal. No estado compacto, ela reveste as aparências a que chamamos matéria sólidalíquidagasosa; sob um modo mais subtil, constitui os fenómenos de luz, calor, electricidade, magnetismo, afinidade química. Estudando a acção da vontade sobre os eflúvios e as irradiações, poderíamos, talvez, entrever o ponto, o vértice em que a força se torna inteligente, em que a Lei se manifesta, em que o Pensamento se transforma em vida. (**)

E isso porque tudo se liga e encadeia no Universo. Tudo é regulado pela lei do número, da medida, da harmonia. As manifestações mais elevadas de energia confinam com a inteligência. A força se transforma em atracção; a atracção se faz amor. Tudo se resume num poder único e primordial, motor eterno e universal, ao qual se dão nomes diversos e é apenas o Pensamento, a Vontade divina. As suas vibrações animam o Infinito! Todos os seres, todos os mundos se banham no oceano das irradiações que emanam do inesgotável foco.

Consciente da sua ignorância e da sua fraqueza, o homem fica confundido diante dessa unidade formidável que abrange todas as coisas e com ela conduz a vida das Humanidades. Ao mesmo tempo, entretanto, o estudo do Universo lhe abre fontes profundas de gozos e de emoções. Apesar da nossa enfermidade intelectual, o pouco que entrevemos das leis universais nos arrebatam; na Potência ordenadora das leis e dos mundos pressentimos Deus e, por isso, adquirimos a certeza de que o Bom, o Belo, a Harmonia perfeita, reina acima de tudo.

/…
(*) “Os produtos da dissociação dos átomos – diz Gustave Le Bon – constituem uma substância intermediária, por suas propriedades, entre os corpos ponderáveis e o éter imponderável, isto é, entre dois mundos profundamente separados até aqui.” (Revue Scientifique, 17 de Outubro de 1903).
“As observações precedentes – diz ainda esse eminente químico – parecem provar que os diversos corpos simples derivam de matéria única. Essa matéria primitiva seria produzida por uma condensação do éter.” (Revue Scientifique, 24 de Outubro de 1901).
(**) Ver nota complementar nº 2, no fim deste volume.


Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte Deus e o Universo, II Unidade substancial do Universo (2 de 2), 10º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: La Madonna de Port Lligat, detalhe | 1950, Salvador Dali)