Sobrevivência e Imortalidade ~
Prega a ciência moderna, como já vimos, baseada nos seus resultados
materialistas, a imortalidade do homem e de todas as coisas através da
eternidade do Universo. A imagem do mar, eterno no seu conteúdo e, no
seu aspecto e, variável na sucessão das ondas, dá-nos maior compreensão desse
quadro transcendente e supranormal que a ciência materialista nos pinta. Os
homens e as coisas são como simples vagas, que aparecem e desaparecem. Não têm
qualquer espécie de forma permanente. Só a água, o conteúdo universal, é que
sobrevive através dos tempos, renovando as formas, sem qualquer continuidade
daquelas em si mesmas.
Essa visão, que muito se assemelha à do antigo panteísmo e à
de certas escolas de ocultismo, que consideram o homem como fagulha
divina momentaneamente destacada de Deus, e que a Ele voltará depois
da morte – excluindo-se naturalmente as que assim pensam dentro da linha
reencarnacionista – já foi estudada por Allan Kardec em O
Livro dos Espíritos.
Em certo momento pergunta ali o codificador:
“Que nos importa ter uma alma, se, extinguindo-se-nos a
vida, ela desaparece na imensidade, como as gotas d’água no oceano? A perda da
nossa individualidade não equivale, para nós, ao nada?”
Realmente, duas concepções existem, que conduzem o homem à
desesperança. A de aniquilamento total do ser por meio da
morte física e a dessa imortalidade por transmissão, que nada significa. Também
a ideia da imortalidade através da sobrevivência de um princípio místico e
misterioso, que seria a alma destinada ao inferno ou ao céu, não satisfaz a
nenhuma inteligência racionalista. Somente a concepção espírita, aliás,
comprovada pela observação, que nos fala da imortalidade pessoal, oferece
ao homem a visão real do seu destino e, mais do que isso, da sua responsabilidade
em face da vida e do mundo.
Entre os que aceitam o Espiritismo, subsiste, entretanto,
uma pequena divergência de opinião, no tocante à interpretação do sentido
imortalista da sobrevivência. Provamos, através das comunicações e
dos fenómenos espíritas, a sobrevivência do homem. Provamos que a morte
física não é o fim do indivíduo consciente. Provamos mesmo, que essa morte
não chega a modificar o homem, pois ele continua, na vida espiritual, com todas
as suas características individuais da vida material. A perda do corpo
unicamente priva o indivíduo do contacto visível com a matéria. Assemelha-se
extraordinariamente ao abandono do escafandro pelo escafandrista, que, longe de
perder em si mesmo alguma coisa com isso, readquire a sua agilidade corporal e perde
apenas a capacidade de viver no fundo do mar.
Entretanto, isso não nos prova a imortalidade, que implica
na eternidade do ser. Imortalidade pessoal, portanto, é um termo
com o qual se procura interpretar uma suposição, decorrente da verificação do
facto real da sobrevivência. Nesse caso, dizem alguns, o que está provado é a
sobrevivência, não a imortalidade.
Os espíritos que transmitiram a Kardec as linhas mestras da
doutrina ensinaram que o homem é imortal. Seguiram, aliás, a linha
tradicional dos ensinamentos superiores, das revelações dadas ao homem em todos
os tempos, pelas forças do Alto. Todas as religiões afirmam o carácter
imortalista do homem e as ordens ocultas e esotéricas do passado, algumas das
quais ainda sobrevivem, também ensinaram sempre a mesma coisa. A revelação
espírita não fugiu a essa norma geral e o simples facto dessa concordância nos
faz pensar na possibilidade de se tratar de um facto real.
Do ponto de vista espírita, entretanto, essa questão não tem
razão de ser. O Espiritismo não se perde em cogitações dessa natureza, tão
semelhante às infindáveis controvérsias escolásticas da idade média. Se
não temos recursos para investigar a possibilidade dessa coisa que mal podemos
compreender, a imortalidade, que equivale à eternidade, como poderemos manter
discussões estéreis a respeito? Basta-nos, evidentemente, saber que há a
sobrevivência. E é indiscutível que a sobrevivência nos autoriza a
super-existência ilimitada, pelo menos com os seus limites muito além das
possibilidades de verificação.
No primeiro capítulo de O
Livro dos Espíritos, questão nº 14, título Panteísmo, os
espíritos que orientavam Kardec deixaram de maneira clara, bem definida, a
posição do Espiritismo em face desses enigmas escolásticos.
Respondendo a uma pergunta do codificador sobre a natureza
de Deus, responderam eles:
“Deus existe; disso não podeis duvidar e é o essencial.
Crede-me, não avanceis além. Não vos percais num labirinto donde não
lograríeis sair. Isso não vos tornaria melhores, antes um pouco mais
orgulhosos, pois que acreditaríeis saber, quando na realidade nada saberíeis.
Deixai, pois, de lado todos esses sistemas; tendes muitas coisas que vos tocam
mais de perto, a começar por vós mesmos. Estudai as vossas próprias
imperfeições, a fim de vos libertardes delas, o que será mais útil do que
pretender penetrar no que é impenetrável.”
Afirma a ciência moderna que o homem é limitado na sua capacidade
de conhecimento. O Espiritismo concorda com essa afirmação, não procurando
iludir-se e iludir os demais a respeito de coisas inverificáveis. A
natureza experimental da doutrina não nos permite essas fugas para o mais além. E
embora os materialistas nos acusem de desertores, repetindo, como papagaios,
que não sabemos enfrentar a realidade, os que se derem ao trabalho de estudar a
doutrina verificarão que, pelo contrário, procuramos enfrentar a realidade
num sentido muito mais amplo, racional e coerente do que o defendido pelos
materialistas.
Basta-nos, pois, verificar o facto, já agora incontestável,
da sobrevivência, que continuaremos a chamar de imortalidade porque ela
representa, na verdade, a negação da morte.
Aos conceitos pretensamente científicos de
imortalidade-cósmica, num sentido geral e não individual, opomos o resultado
das nossas experiências, que demonstram à saciedade a sobrevivência pessoal.
Contra factos não há argumentos, nem prevalecem os raciocínios, por mais bem
tecidos que se nos apresentem.
Os espíritas não inventaram uma explicação para os
fenómenos; foram estes mesmos que revelaram a sua natureza íntima. Os
próprios espíritos desencarnados se incumbiram de dizer aos homens, por
múltiplas formas e em múltiplas ocasiões, dirigindo-se a sábios, filósofos,
teólogos e simples curiosos, que eram eles os agentes, conscientes e
intencionais, dos fenómenos observados. Eles mesmos se incumbiram de
provar que não eram entidades misteriosas, pertencentes a qualquer escala
desconhecida de seres infernais ou celestiais, mas simplesmente as almas
daqueles que haviam morrido.
A nossa crença na imortalidade pessoal não se baseia, pois,
em suposições, mas em factos concretos, mil vezes repetidos e comprovados, e
cuja ocorrência jamais se interrompeu na face da Terra.
A essa convicção, que podemos sem a menor dúvida chamar de científica,
pretendem alguns eruditos de hoje opor, em nome da própria investigação
científica, o absurdo da imortalidade cósmica, através dos elementos naturais e
da sua constante transformação. Não se baseiam, para isso, em nenhuma
experiência demonstrativa. Partem apenas da base frágil das suposições e, mais
espantoso é que, defendendo os métodos científicos, não se lembram de que toda
a teoria contraditada pelos factos não pode subsistir.
Uma das teses mais recentes e perigosas é a de que
a imortalidade individual contradiz o princípio da evolução geral. Afirma-se
isso com foros de grande e profunda verdade, com a intenção evidente de
fechar a porta, de uma vez por todas, a qualquer tentativa de esclarecimento do
assunto. Mas temos o direito de perguntar ainda aqui os motivos dessa
contradição e, de afirmar justamente o inverso do que pretendem dizer os
defensores ilustres desse ponto de vista. Para isso, não precisamos de
silogismos de espécie alguma. Basta-nos lembrar que toda a evolução das coisas,
à nossa volta e nas imensas extensões do Universo conhecido, se processa
através de um único método, firmado pela natureza em toda a parte, sem
excepção: o da evolução individual.
Evoluem os espécimes, para que evolua a espécie. Evoluem
os homens, evoluem os povos, uns se adiantando aos outros para que evolua a
humanidade. Evoluem os elementos, para que evolua a Terra. Evoluem os mundos no
espaço para que, certamente, evoluam os sistemas planetários e o próprio
cosmos. Por que estranha razão, mais uma vez encontramos o pensamento humano
deslocado da ordem geral, no momento em que tem de encarar o problema da
própria evolução? Por que motivo misterioso a evolução individual, unicamente
no tocante ao problema da sobrevivência, teria de contrariar o princípio da
evolução geral? Mistérios, ou melhor, delícias da caturrice humana.
/…
José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Sobrevivência
e Imortalidade, 10º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles,
pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)
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