domingo, 22 de maio de 2016

a pedra e o joio ~

~ a questão metodológica |

Quem se atreve a afirmar, por exemplo, que o roustainguismo é simples questão de opinião e por isso não deve ser discutido, ou que este ou aquele pretenso cientista tem o direito de formular as suas teorias, dá uma prova espontânea da sua ignorância do problema espírita na sua inelutável posição epistemológica. Como obra evidente de mistificação, um decalque malfeito e deformador da obra de Kardec, visando a ridicularizar a doutrina verdadeira, o roustainguismo não pode (absolutamente não pode) ser aceite por nenhum espírita consciente, a não ser por efeito de fascinação. O direito de uma pessoa formular teorias em qualquer campo do conhecimento está sujeito a uma exigência elementar e básica: a de conhecer a fundo esse campo. Sem isso, e sem dar provas disso, ninguém, por mais aparentemente culto que possa ser considerado ou que se diga, não tem o direito de formular e divulgar teorias a respeito. Isso é ponto pacífico em todo o mundo.

Vamos a exemplos concretos:

Quando o Sr. Oswaldo Polidoro, na sua incultura e na sua ingenuidade, se propõe a fazer um Espiritismo do Século XX, chamando-o de Espiritismo Divinista – pois entende que Kardec se sujeitou à Ciência humana e negou a divina –, só os que ignoram a posição metodológica de Kardec e a sua importância cultural podem aceitar esse absurdo. No outro extremo, quando Hernani Andrade elabora em bases físicas uma Teoria Corpuscular do Espírito para superar o suposto mecanicismo de Kardec, só as pessoas incapazes de compreender a posição kardeciana e a função cultural do Espiritismo podem bater palmas a essa tentativa absurda.

Esclareçamos um pouco mais, se possível:

Quando o Sr. Luciano dos Anjos, representando toda a Directoria da Federação Espírita Brasileira, sustenta e propaga o roustainguismo e nega aos espíritas o direito de instituir cursos de doutrina e de organizar instituições culturais espíritas (defendendo ridiculamente o autodidatismo como ideal de formação cultural), só os que nada entendem dos problemas culturais podem apoiá-lo nessa proposta de retorno ao primitivismo. Nenhuma pessoa de bom senso e de certa cultura poderá aceitar esse ilogismo a menos que esteja sujeita a um processo de fascinação, essa forma aguda de obsessão que afecta a capacidade de julgar.

Quando o Sr. Artur Massena, presidente leigo da Sociedade de Medicina e Espiritismo do Rio de Janeiro, acha que as suas experiências de 36 anos no trato da mediunidade (não como cientista, que não é, mas como um prático, um curioso e no máximo um amador) lhe dá o direito de contradizer Kardec e introduzir novidades no assunto, só os que ignoram por completo o que seja Ciência e o que seja cultura podem aprovar essa temeridade.

É necessário compreendermos o absurdo dessas posições, se quisermos prestar algum serviço, por mínimo que seja, à causa espírita. Ainda neste caso aplica-se admiravelmente a recomendação de Erasto a Kardec: é preferível rejeitar dez possíveis verdades ou acertos nesse terreno do que aceitar uma única mentira. Porque essa única mentira porá o Espiritismo em má situação perante os homens de bom senso. E porque, como advertiu Kardec, devemos pisar no terreno sólido da realidade, deixando as utopias, por mais fascinantes que se apresentem, que se submetam à prova inexorável do tempo. Não somos utópicos, somos realistas. Não jogamos com possibilidades, mas com factos. E fora dos factos e da sua pesquisa rigorosa não temos Espiritismo.

Quem não compreender isso pode aderir a qualquer das formas de utopia que levaram o Espiritualismo ao descrédito no século passado e continuam a propagar-se nos nossos dias com ampla liberdade. Quem quiser permanecer no Espiritismo terá de submeter-se às exigências culturais da doutrina, que são sobretudo de ordem metodológica.

Até agora, o Espiritismo só foi conhecido no Brasil através dos cinco volumes da Codificação. Só agora dispomos da colecção da Revista Espírita do tempo de Kardec, tão importante que ele mesmo a incluiu no rol das leituras necessárias para o bom conhecimento da doutrina, como vemos em O Livro dos Médiuns. Ninguém, entre nós, conhece Kardec em profundidade. Homens de cultura, considerados como grandes conhecedores da doutrina, publicaram trabalhos que provam a superficialidade espantosa desse conhecimento. Se leram e estudaram, não aprenderam, não assimilaram.

Dirigentes de grandes instituições doutrinárias mostram-se ignorantes do sentido e da natureza da doutrina, enxertando-a com estranhos conceitos provindos da época anterior ao aparecimento do Espiritismo. Chega-se a combater, como perigoso, o desenvolvimento cultural do Espiritismo, e isso nas altas rodas das instituições de cúpula.

Essa situação desoladora favorece o aparecimento de pretensos reformadores e actualizardores da doutrina, que tanto surgem do meio do povo – através de médiuns ao serviço de espíritos mistificadores –, quanto das elites culturais, através de teóricos improvisados, que se aproveitam dos seus títulos universitários ou posições sociais para impor ao povo as suas ideias pessoais, não raro tão absurdas como as dos místicos sertanejos. E há também, para maior espanto das pessoas sensatas, os que exercendo funções de responsabilidade no meio espírita, se mostram admirados com os prodígios de mediunismo nas formas de sincretismo religioso afro-brasileiro – como a Umbanda, a Quimbanda, o Candomblé – e bandeiam-se para os terreiros.

Tudo isso resulta de uma fonte única: a ignorância da doutrina. As molas secretas da vaidade, da auto-suficiência e das obsessões encorajam essa proliferação de tolices, cuja finalidade evidente é a ridicularização do Espiritismo. Urge, pois, que os espíritas sensatos e responsáveis tomem posição contra essa avalanche de absurdos, tenham a coragem e a franqueza de falar a verdade em defesa do Espiritismo, doa a quem doer.

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José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. A questão metodológica, 2 de 2, 7º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

sábado, 7 de maio de 2016

o sentido da vida ~


O materialismo e o idealismo |

Falemos da possibilidade que o Espiritismo abre, no mundo de hoje, para a solução de velhas rixas filosóficas que pareciam para sempre insolúveis. A natureza de síntese dos conhecimentos humanos, de que se reveste a doutrina, dá-lhe inesperada capacidade nesse terreno. E assim como a velha questão do corpo e espírito encontra a equação imediata nos postulados espíritas, assim também a luta aparente entre o materialismo e o idealismo, no campo da filosofia, nos revela a sua face de simples equívoco.

De um lado alegam os materialistas que não podem tomar conhecimento do Espiritismo, por ser ele uma doutrina idealista, que joga com improbabilidades. Fugindo ao terreno material, entra o Espiritismo pelos caminhos nebulosos da suposição ou das deduções empíricas, sem base experimental e racional. De outro lado, porém, são os idealistas que acusam o Espiritismo de procurar reduzir coisas do espírito a soluções materiais. Quando falamos da possibilidade de comunicação dos espíritos, os idealistas censuram o nosso materialismo, no trato das coisas espirituais. Ao mesmo tempo – e pelo mesmo motivo – os materialistas rotulam-nos de metafísicos, de pescadores de coisas impossíveis.

Diante da celeuma que de um campo e do outro se levanta, perguntaremos: onde ficará o Espiritismo? É verdade que Kardec anotou, no subtítulo de O Livro dos Espíritos, a filiação da doutrina à filosofia espiritualista. Mas não estaremos hoje diante de um facto novo, que nos mostra, na prática a impropriedade desse divisionismo no campo filosófico? A velha disputa que nos vem, como sempre, da velha Grécia, envolvendo Demócrito e Platão, para as figuras de Hegel e Fauerbach, afinal superadas, nas suas contradições, pelo trabalho de Marx e Engels, criadores do materialismo dialéctico, não estaria resolvida com o aparecimento do Espiritismo?

É claro que materialistas e espiritualistas, marxistas, existencialistas e outros, em quantas centenas de variantes se dividem as novas teorias filosóficas, ao longo daquelas duas correntes, considerarão utópica, senão mesmo absurda, a questão que levantamos aqui. Mas todos aqueles que quiserem deixar de lado, por um momento, a bagagem dos seus preconceitos, para olhar as coisas com os próprios olhos, verão que a aceitação dos princípios espíritas liberta o homem das contradições do materialismo e do espiritualismo. Estamos, aliás, diante do conhecido processo de síntese, decorrente do choque das contradições.

Espiritismo não se prende ao terreno exclusivamente idealista, porque não é subjectivo. As suas afirmações decorrem da experiência e não da simples suposição ou dedução. Kardec afirma que o Espiritismo é ciência de observação, e como tal tem de realizar o seu desenvolvimentoNão nos oferece a doutrina uma interpretação idealista, mas um conhecimento objectivo e real dos factos e das coisas. A existência do espírito não nos é apresentada como abstracção, de verificação impossível, mas como realidade que pode ser objectivamente comprovada. E mais do que isso, como parte integrante da própria natureza objectiva. Os casos, por exemplo, de obsessão colocam o problema no terreno da própria patologia médica, incluindo os espíritos entre os factores de anomalias físicas, ao lado dos micróbios e de outros agentes provocadores de doenças e lesões orgânicas.

Por outro lado, diante de todas essas características materialistas, o Espiritismo não se prende aos factos do mundo físico, reconhecendo a existência de um plano hiper-físico na natureza e, de fenómenos com ele relacionados. Prega também a independência do espírito e a sua sobrevivência à morte do corpo somático. Isso basta para identificá-lo com as correntes idealistas.

Essas aparentes contradições do Espiritismo revelam a sua natureza sintética e a sua extraordinária capacidade de solucionar os velhos e intrincados problemas da filosofia tradicional. Na realidade, o Espiritismo não é idealista nem materialista, mas simplesmente realista. Ele observa e interpreta a natureza de um ponto de vista diverso aos daquelas duas correntes, tendo uma visão panorâmica da vida e do mundo nas suas múltiplas manifestações espirituais e materiais. Na trama complexa da vida, o Espiritismo não escolheu um determinado ramo para pousar. E com isso, de uma vez por todas, ele conseguiu solucionar o velho impasse, mostrando que tanto Platão como Demócrito estavam com a razão, e Marx e Engels, ao procurar a síntese entre Hegel e Fauerbach, cometeram o erro filosófico de optar por uma das duas tendências.

Para o Espiritismo, o mundo é uma realidade ao mesmo tempo física e espiritual, objectiva e subjectiva. Não se pode tomar a vida e o mundo por um único dos seus aspectos, sob pena de mutilação e de conflito. O exaustivo conflito entre o materialismo e o idealismo ficou, assim, solucionado e o Espiritismo demonstrou que ele não passava de um dos muitos equívocos em que os homens se têm perdido, nas suas exigências intelectualistas, ao longo dos séculos e das civilizações.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Materialismo e Idealismo, 7º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)