O materialismo e o idealismo |
Falemos da possibilidade que o Espiritismo abre, no
mundo de hoje, para a solução de velhas rixas filosóficas que pareciam para
sempre insolúveis. A natureza de síntese dos conhecimentos humanos, de que se reveste
a doutrina, dá-lhe inesperada capacidade nesse terreno. E assim como a velha
questão do corpo e espírito encontra a equação imediata nos postulados
espíritas, assim também a luta aparente entre o materialismo e o idealismo, no
campo da filosofia, nos revela a sua face de simples equívoco.
De um lado alegam os materialistas que não podem tomar
conhecimento do Espiritismo, por ser ele uma doutrina idealista, que joga com
improbabilidades. Fugindo ao terreno material, entra o Espiritismo pelos
caminhos nebulosos da suposição ou das deduções empíricas, sem base
experimental e racional. De outro lado, porém, são os idealistas que acusam o
Espiritismo de procurar reduzir coisas do espírito a soluções materiais. Quando
falamos da possibilidade de comunicação dos espíritos, os idealistas censuram o
nosso materialismo, no trato das coisas espirituais. Ao mesmo tempo – e pelo
mesmo motivo – os materialistas rotulam-nos de metafísicos, de
pescadores de coisas impossíveis.
Diante da celeuma que de um campo e do outro se levanta,
perguntaremos: onde ficará o Espiritismo? É verdade que Kardec anotou, no
subtítulo de O Livro dos Espíritos, a filiação da doutrina à
filosofia espiritualista. Mas não estaremos hoje diante de um facto novo,
que nos mostra, na prática a impropriedade desse divisionismo no campo
filosófico? A velha disputa que nos vem, como sempre, da velha Grécia,
envolvendo Demócrito e Platão, para as figuras de Hegel e Fauerbach, afinal
superadas, nas suas contradições, pelo trabalho de Marx e Engels, criadores
do materialismo dialéctico, não estaria resolvida com o aparecimento do
Espiritismo?
É claro que materialistas e espiritualistas, marxistas,
existencialistas e outros, em quantas centenas de variantes se dividem as novas
teorias filosóficas, ao longo daquelas duas correntes, considerarão utópica,
senão mesmo absurda, a questão que levantamos aqui. Mas todos aqueles que
quiserem deixar de lado, por um momento, a bagagem dos seus preconceitos, para
olhar as coisas com os próprios olhos, verão que a aceitação dos
princípios espíritas liberta o homem das contradições do materialismo e do
espiritualismo. Estamos, aliás, diante do conhecido processo de síntese,
decorrente do choque das contradições.
O Espiritismo não
se prende ao terreno exclusivamente idealista, porque não é subjectivo. As suas
afirmações decorrem da experiência e não da simples suposição ou dedução. Kardec afirma que o
Espiritismo é ciência de observação, e como tal tem de realizar o seu
desenvolvimento. Não nos oferece a doutrina uma interpretação
idealista, mas um conhecimento objectivo e real dos factos e das coisas.
A existência do espírito não nos é apresentada como abstracção, de verificação
impossível, mas como realidade que pode ser objectivamente comprovada. E
mais do que isso, como parte integrante da própria natureza objectiva.
Os casos, por exemplo, de obsessão colocam o problema no terreno da própria
patologia médica, incluindo os espíritos entre os factores de anomalias
físicas, ao lado dos micróbios e de outros agentes provocadores de doenças
e lesões orgânicas.
Por outro lado, diante de todas essas características
materialistas, o Espiritismo não
se prende aos factos do mundo físico, reconhecendo a existência de um
plano hiper-físico na natureza e, de fenómenos com ele relacionados. Prega
também a independência do espírito e a sua sobrevivência à morte do corpo
somático. Isso basta para identificá-lo com as correntes idealistas.
Essas aparentes contradições do Espiritismo revelam a
sua natureza sintética e a sua extraordinária capacidade de solucionar os
velhos e intrincados problemas da filosofia tradicional. Na realidade, o
Espiritismo não é idealista nem materialista, mas simplesmente realista. Ele
observa e interpreta a natureza de um ponto de vista diverso aos daquelas duas
correntes, tendo uma visão panorâmica da vida e do mundo nas suas múltiplas
manifestações espirituais e materiais. Na trama complexa da vida, o Espiritismo
não escolheu um determinado ramo para pousar. E com isso, de uma vez
por todas, ele conseguiu solucionar o velho impasse, mostrando que tanto Platão
como Demócrito estavam com a razão, e Marx e Engels, ao procurar a síntese
entre Hegel e Fauerbach, cometeram o erro filosófico de optar por uma das duas
tendências.
Para o Espiritismo, o mundo é uma realidade ao mesmo
tempo física e espiritual, objectiva e subjectiva. Não se pode tomar a vida e o
mundo por um único dos seus aspectos, sob pena de mutilação e de conflito.
O exaustivo conflito entre o materialismo e o idealismo ficou, assim,
solucionado e o Espiritismo demonstrou
que ele não passava de um dos muitos equívocos em que os homens se têm perdido,
nas suas exigências intelectualistas,
ao longo dos séculos e das civilizações.
/…
José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Materialismo
e Idealismo, 7º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A
escola de Atenas de Rafael
Sanzio, 1509)
Sem comentários:
Enviar um comentário