A teoria corpuscular
Os artigos aqui reunidos constituem uma crítica espírita ao
livro do Sr. Hernani
Guimarães Andrade, A Teoria Corpuscular do Espírito, louvado
por diversos confrades, que o consideraram como verdadeiro acontecimento
doutrinário do ano de 1961. Crítica espírita, e não apenas crítica, porque
elaborada à luz dos princípios doutrinários, com a finalidade exclusiva de
verificar o enquadramento ou não da teoria nesses princípios. Foram publicados
na secção espírita do “Diário de São Paulo”.
O livro criticado é apenas o primeiro volume de uma série,
cujo segundo volume já está em circulação há algum tempo. Alguns leitores
poderão pensar que a nossa crítica é precipitada, que devíamos esperar a
conclusão da série. Mas não é assim. Porque, nesse primeiro volume, o autor
apresenta as bases da sua teoria corpuscular do espírito. Os demais volumes
servirão somente para completar a exposição. A nossa crítica é formulada nos
fundamentos da teoria, sendo válida, portanto, para toda a sua estrutura.
As intenções do Sr. Guimarães Andrade são boas. o seu desejo
expresso é o de colaborar para que o Espiritismo se firme no meio
científico. Não obstante, verá o leitor que a teoria corpuscular se propõe
reformar a doutrina espírita e a substituí-la. Toda a codificação de
Kardec é considerada como coisa do passado. Essa a razão que nos levou a
examinar a teoria. Se ela, realmente, abrisse perspectivas novas para o
Espiritismo, não teríamos dúvida em reconhecê-lo.
Deixemos
bem claro este ponto. Em primeiro lugar, como o leitor verá no correr dos
artigos, somos amigos pessoais do confrade Guimarães Andrade. Bater palmas a um
amigo é um dever que se cumpre com alegria. Em segundo lugar, no Espiritismo
não existem motivos de ordem sectária, eclesiástica, financeira, política, ou
de qualquer outra espécie, que nos impeçam de reconhecer a verdade nos
opositores, quanto mais nos colaboradores. Esta crítica não é ditada, pois,
senão pela consciência das responsabilidades doutrinárias; consciência
que, como sabem todos os espíritas, implica uma permanente atitude de
vigilância e de defesa dos princípios do Espiritismo.
Kardec legou-nos a codificação há pouco mais de cem anos. De
lá para cá, o mundo evoluiu rapidamente e os conhecimentos humanos alargaram-se
de maneira espantosa. A vertigem do progresso atordoa os homens, e desse
atordoamento não escapam os espíritas. Nada mais natural que o aparecimento,
nos nossos dias, de tantas tentativas de reforma do Espiritismo. Entendendo que
a codificação já foi ultrapassada pelo desenvolvimento das ciências, muitos
confrades se esforçam em ajudá-la a recuperar o terreno perdido. As intenções,
como vemos, são boas.
Acontece, porém, que o Espiritismo é uma doutrina do futuro
e não do passado ou do presente. Como os Evangelhos, que depois de dois mil
anos continuam a nos empurrar para a frente, a codificação está ainda muito
longe de ter sido superada. Pelo contrário, somente agora as ciências
estão dando os primeiros sinais de se aproximarem do Espiritismo. Dessa
maneira, os confrades aflitos, que se esfalfam na dura tarefa de “actualizar o
Espiritismo”, estão apenas equivocados.
No caso do confrade Guimarães Andrade o equívoco é tanto
maior, quanto se trata de uma tentativa de enquadrar o Espiritismo na
sistemática das ciências materialistas; praticamente, uma tentativa de
prender a doutrina espírita numa gaiola de conceitos físicos, materiais. Os
confrades que louvaram o livro fizeram-no por espírito fraterno, ou por não
terem compreendido a teoria que nele se expõe. Tendo tido o cuidado de examinar
a teoria, podemos oferecer a esses confrades uma contribuição sincera, para que
melhor ponderem a respeito. Os que não aceitarem a nossa contribuição deverão
pelo menos reexaminar o livro, com as suas próprias luzes, pois trata-se de
grave problema que está surgindo no movimento espírita brasileiro.
Na verdade, esse problema não deveria tomar corpo, uma vez
que a teoria corpuscular não oferece nenhuma consistência do ponto de vista
científico. Mas, como o livro é escrito para o povo, e o povo nada conhece das
questões científicas nele tratadas, o perigo é evidente. O Sr. Guimarães
Andrade, apoiado ainda pelos confrades que o louvam na imprensa espírita, vai
fazendo adeptos. Já está surgindo entre nós uma corrente de “espiritismo
corpuscular”, que ao lado de outras correntes em desenvolvimento poderá completar
a obra de enfraquecimento do movimento espírita brasileiro.
Para que o leitor possa bem avaliar o que isso representa,
queremos lembrar a situação ridícula em que se colocaria um cidadão de poucas
letras que se propusesse a discutir numa assembleia de letrados. O movimento
espírita brasileiro ainda não dispõe de um corpo de sábios, de homens de
ciência, capazes de enfrentar o problema doutrinário neste ou naquele campo das
especializações científicas. Propormo-nos a apresentar uma teoria científica do
espírito, sem as credenciais necessárias para isso, sem nos servirmos do
aparato técnico indispensável, é simplesmente querermos provocar o riso.
A
fragilidade da teoria corpuscular é evidente. A análise rápida que fizemos, em
artigos de jornal, revela numerosas contradições. Que diríamos de uma análise
mais profunda, realizada por especialistas dos vários ramos da ciência em que a
teoria se apoia? Mesmo no plano filosófico, de nossa especialidade, a análise
aprofundada da teoria seria desastrosa. O pouco que dissemos mostrará isso aos
que tiverem “ouvidos de ouvir”. Mas um físico, um matemático, um biólogo, o que
diriam, num exame aprofundado da teoria?
A nossa intenção não foi a de esmiuçar o livro, mas
tão-somente a de mostrar as suas incongruências mais gritantes, e de fazê-lo,
não no plano filosófico ou científico, mas no plano espírita. Escrevemos para o
meio doutrinário. Mesmo porque o livro só interessa ao nosso meio. Fora dele,
não terá repercussão. Não há nada, nessa tentativa de formulação teórica, que
possa interessar aos homens de ciência. Dessa maneira, o livro só tem, na
realidade, um sentido: o de lançar confusão no meio espírita e levá-lo a uma
posição desairosa.
Não acusamos desse crime o confrade Guimarães Andrade. Pelo
contrário, já dissemos que as suas intenções são boas. Mas o apóstolo Paulo exclamava,
em Romanos, 7:24: “Não faço o bem que desejo; mas o mal que não quero, esse
faço”. Se a Paulo aconteceu assim, depois da visão na Estrada de Damasco, não é
demais que aconteça a nós, quando tentamos avançar além das nossas
forças. A teoria corpuscular do espírito não faz o bem que o autor
pretende, mas o mal que ele por certo não queria. Isso decorre, evidentemente,
da fonte espiritual que o impulsiona nesse difícil caminho das formulações
científicas. Seríamos felizes se o nosso trabalho servisse de advertência ao
confrade, quanto aos perigos a que se expõe.
Depois da publicação dos nossos artigos, alguns confrades
lançaram novos louvores à teoria e ao seu autor, às vezes sem nenhum propósito.
Ao que parece, quiseram apenas oferecer-lhe o testemunho da sua solidariedade.
Gesto nobre, sem dúvida, mas extemporâneo. Sim, pois não atacamos o confrade,
nem quisemos diminuí-lo. Gostaríamos que esses companheiros, em vez de
elogiarem com palavras retumbantes a nova teoria, ou de a defenderem com golpes
de ironia, fizessem o que fizemos: uma análise objectiva da mesma. Porque, em
matéria de ciência, não valem os louvores. Por mais que louvemos um trabalho
errado, não o emendaremos.
Deixamos, pois, a nossa crítica nas mãos dos leitores
desapaixonados, que não se empolgam facilmente com formulações de aparência
brilhante. Oferecemo-la aos confrades conscientes da gravidade da hora que
atravessamos e da seriedade do Espiritismo. Se estivermos errados, que nos
revelem o nosso erro. Não teremos dúvida em voltar atrás. Será mesmo com
alegria que nos penitenciaremos. Seria mil vezes preferível termos errado por
excesso de zelo, na defesa da doutrina, a vermos confirmada a posição difícil
do autor da teoria.
Para terminar, queremos lembrar que, na própria Psicologia, as teorias
elementares ou atómicas já estão superadas. Wilhelm Dilthey, o
grande filósofo e psicólogo alemão, reagindo contra as correntes elementaristas
do século passado, dizia em seu livro O Mundo do Espírito, edição
Aubier de 1947: “A vida psíquica é originalmente e sempre, de suas formas
primárias até às mais elevadas, uma unidade. Não é feita de partes; não se
compõe de elementos; não é uma composição; não é um resultado da junção de
átomos sensíveis ou afectivos: é uma unidade primitiva e fundamental que
se encontra em toda parte”.
Quando, na própria Psicologia, – que trata do espírito na sua manifestação no
plano material, – se considera inadmissível a concepção atómica, derivada das
ciências físicas, como admitirmos semelhante atitude no plano real do Espírito?
/…
José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica
à Teoria Corpuscular do Espírito. A teoria corpuscular, 10º fragmento desta
obra.
(imagem de contextualização: As Colhedoras de Grãos,
pintura a óleo por Jean-François
Millet)
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