Capítulo Primeiro
AGÉNERE OU APARIÇÃO TANGÍVEL (II)
Aqui, porém, é preciso esclarecer a aparente contradição
entre uma afirmativa anterior de Allan Kardec e outra
de São Luiz. Disse Kardec que o agénere "pode ter longa duração, conforme
a necessidade... " enquanto São Luiz afirmou que os agéneres "são
excessivamente raros e jamais têm um carácter de permanência". O que quer
dizer Kardec com longa duração? A resposta parece estar com o próprio Kardec ao
dizer que esta longa duração se dá quando o Espírito precisa
"estabelecer relações sociais com um ou vários indivíduos". Ou
seja, uma aparição que inicialmente duraria alguns minutos poderia durar hora
ou mais, "conforme a necessidade". O que não parece correcto seria
entender que, por "longa duração", quisesse Kardec dar um carácter de
permanência à aparição. As suas colocações posteriores sobre o assunto também
encaminham para essa conclusão, uma vez que estão de acordo pleno com o que
afirmou São Luiz sobre ser o agénere um facto raro e rápido.
Ainda pelo diálogo transcrito, fica-se sabendo que o
agénere perfeito dificilmente pode ser reconhecido como tal, "a
não ser pelo desaparecimento inesperado". Dessa forma, ele pode ser
confundido com qualquer pessoa encarnada. "Um Espírito cujo corpo fosse
inteiramente visível e palpável - diria Kardec - dar-nos-ia a aparência de um
ser humano, poderia conversar connosco, sentar-se no nosso lar, como qualquer
visita, pois que o tomaríamos como um de nossos semelhantes."
Outra afirmativa - e surpreendente - feita por São Luiz é a
de que os Espíritos que geralmente tomam a aparência de encarnados são das
classes inferiores e o seu objectivo é quase sempre o mal. Toma como exemplo o
facto de que as manifestações físicas são produzidas por Espíritos inferiores.
Falando em tese, porém, diz que, havendo um fim útil, os bons Espíritos
também podem tomar aparência corporal. Isso explicaria os milhares de casos
de "assombração" que as gentes, principalmente do interior, conhecem
e contam.
Em O Livro dos Médiuns, na questão número 24,
Kardec pergunta e os Espíritos respondem: "Os Espíritos que aparecem não
podem ser agarrados e são inacessíveis ao tacto? - Não podem ser agarrados como
em sonho, no seu estado normal; entretanto podem produzir impressão ao acto e
deixar traços da sua presença e mesmo, em certos casos, tornarem-se
momentaneamente tangíveis, o que prova que entre eles e vocês há uma
matéria".
Mas é em A Génese que o Codificador trata
do assunto com profundidade, principalmente em dois capítulos: o XIV, "Os
Fluidos", e o XV, "Os milagres do Evangelho"; no primeiro,
aborda a questão mais pelo seu aspecto técnico e, no segundo, estuda-a sob
a viabilidade de Jesus ter tido um corpo fluídico. Ficaremos no presente
capítulo com "Os Fluidos", deixando para outra oportunidade a questão
do corpo de Jesus.
A compreensão dos agéneres assenta em três pontos básicos: o
Espírito como agente, o perispírito como intermediário e
os fluídos como matéria necessária à aparição e a sua
tangibilidade. Estudando esses dois últimos perispírito e fluidos - Kardec dá a
medida exacta dos agéneres. Eis como o mestre vê a questão:
"O perispírito é invisível para nós no seu estado
normal; porém, como é formado de matéria etérea, o Espírito pode, em certos
casos, lhe fazer receber, por um acto de sua vontade, uma modificação
molecular que o torna momentaneamente visível. É assim que se produzem as
aparições, as quais, como também outros fenómenos, não estão fora das leis da natureza.
Esse fenómeno não é mais extraordinário que o do vapor, o qual é invisível
quando é muito rarefeito, e torna-se visível quando é condensado.
"Segundo o grau de condensação do fluido perispirital -
prossegue Kardec -, a aparição é algumas vezes vaga e vaporosa;
outras vezes é mais nitidamente definida; e outras, enfim, tem todas as
aparências da matéria tangível; pode mesmo chegar à tangibilidade real, ao
ponto em que se pode duvidar da natureza do ser que temos diante de nós.
"As aparições vaporosas são frequentes - é ainda Kardec
quem fala - e sucede muitas vezes que indivíduos assim se apresentam às pessoas
a quem têm afeição. As aparições tangíveis são mais raras, embora haja delas
numerosos exemplos, perfeitamente autênticos. Se o Espírito deseja fazer-se
conhecido, dará ao seu envoltório todos os sinais exteriores que tinha enquanto
vivia."
Observe-se, por esta transcrição, que Kardec, oito anos
depois do diálogo travado com São Luiz sobre os agéneres, pois que se passaram
estes tempos todos desde a publicação do referido diálogo em 1859 e o
lançamento de A Génese, em 1868, está perfeitamente concorde com as
afirmações do Espírito naquela oportunidade, fornecendo, ainda, outros detalhes
que facilitam a compreensão do assunto. A questão da raridade das aparições
tangíveis e a sua semelhança com os encarnados são detalhes ditos por São Luiz
e repetidos, aqui, por Kardec. Prossigamos com o Codificador:
"Deve notar-se que as aparições tangíveis não têm senão
as aparências da matéria carnal, porém não as suas qualidades; em razão de sua
natureza fluídica, não podem ter a mesma coesão, porque, na realidade, não se
trata de carne. Elas se formam instantaneamente e do mesmo modo
desaparecem ou se evaporam pela desagregação das moléculas fluídicas. Os
seres que se apresentam nestas condições não nascem nem morrem como os outros
homens; são vistos, e depois não são vistos mais, sem saber de onde vieram,
como vieram, nem onde vão; não se poderia matá-los, nem os acorrentar, nem os
prender, pois que não possuem o corpo carnal; os golpes que lhes fossem
infligidos o seriam no vácuo.
"Tal é o carácter dos agéneres -
prossegue o Codificador - com os quais podemos tratar, sem duvidar do que
sejam, mas que jamais demoram por muito tempo, e não podem tornar-se comensais
habituais de uma casa, nem figurar entre os membros de uma família.
"Aliás - assevera -, há em toda a sua pessoa, nos seus ademanes, algo
de estranho e de insólito que se relaciona com a materialidade e com a
espiritualidade: o seu olhar, vaporoso e penetrante ao mesmo tempo, não tem a
nitidez do olhar dos olhos de carne; a sua linguagem, breve e quase sempre
sentenciosa, nada tem do brilho e da volubilidade da linguagem humana; a sua
aproximação faz experimentar uma sensação particular indefinível de surpresa,
que inspira uma espécie de medo, e embora os tomemos por indivíduos iguais
aos demais do mundo, involuntariamente se diz: eis um ser singular."
Esta mostra permite verificar, já, a perfeita coerência
entre Kardec e São Luiz, no que diz respeito ao corpo fluídico. Curiosamente, e
de maneira toda especial e própria, Kardec dá elasticidade às informações de
São Luiz, expandindo o raciocínio, o que possibilita ao estudioso formar uma
ideia mais precisa sobre as particularidades do agénere. O agénere é um ser que
se parece com o encarnado, a ponto de ser confundido com este, mas o
seu corpo não possui as qualidades do corpo de carne. Assim, do mesmo modo que
aparece de surpresa, surpreendentemente ele desaparece. O agénere não nasce
e não morre. Não se pode absolutamente querer matá-lo, pois "os golpes que
lhes fossem infligidos o seriam no vácuo". Devido a essas e outras
particularidades, os agéneres não "podem se tornar comensais habituais de
uma casa, nem figurar entre os membros de uma família", ou como diria São
Luiz, o agénere jamais teria "carácter de permanência". Mas para
Kardec, apesar de toda a semelhança que possa existir entre um agénere perfeito
e um encarnado, o agénere será sempre "um ser singular", pelas
características do seu corpo, por sua linguagem, por seu olhar e até pela
"espécie de medo" que inspira àquele de quem se aproxima, apesar dos
pesares, porque "há em toda a sua pessoa, nos seus ademanes, algo de
estranho e de insólito", alguma coisa próxima da matéria e do espírito,
pairando entre um e o outro.
As materializações, das quais o agénere está muito próximo,
dão, por seu turno, provas dessas diferenças no olhar, na voz, nos ademanes,
etc. Espíritos que se materializam, chegam a aparentar um perfeito ser humano,
mas ainda assim com diferenças que permitem separá-los desses últimos. Em todo
caso, a grande semelhança entre o agénere perfeito e o encarnado faz com que
inúmeras pessoas os confundam, principalmente se estiverem despidas do senso de
observação, de qualquer agudez crítica.
Em resumo, o agénere é um ser fluídico, tangível, que se
apresenta com bastante raridade e cuja existência é de curta duração. Os estudos
de Kardec, sob a assessoria dos Espíritos, conduzem o raciocínio para essa
definição. Se alguma dúvida existia nas palavras de Kardec, em 1859, quando
falou do assunto na Revista Espírita e asseverou que essa
aparição "corpórea pode ter longa duração", essa dúvida desapareceu
na continuidade do estudo, culminando com a publicação do livro A
Génese em 1868.
Há outros aspectos que podem ser melhor desenvolvidos, como
por exemplo os referentes aos fluidos de que se servem os Espíritos para se
materializarem, os processos da materialização, as suas dificuldades, etc.
Como, porém, o escopo deste estudo visa apenas mostrar o desenvolvimento e
posicionamento final de Kardec relativamente à natureza dos agéneres,
encerramos aqui o assunto, podendo o estudioso prossegui-lo noutras fontes.
/…
Wilson
Garcia, O Corpo Fluídico, Capítulo Primeiro – AGÉNERE OU
APARIÇÃO TANGÍVEL, 2 de 2, 2º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Sem título, pintura de Josefina Robirosa)
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