Os Vivos e os Mortos ~ |
Desconhecendo a complexidade do processo da vida, o homem
terreno sempre se apegou, principalmente nas civilizações ocidentais, ao
conceito negativo da morte como frustração total de todas as possibilidades
humanas. Não há nenhuma novidade na expressão sartreana que se
propagou por toda a cultura moderna: “O homem é uma paixão inútil.”
Foi sempre esse o conceito do homem na cultura ocidental, voltada
exclusivamente para o imediatismo. Sartre não revela
nenhuma perspicácia filosófica nesse simples endosso cultural de uma posição
comum do homo faber ante o inevitável da morte.
Mesmo nas civilizações orientais, impregnadas de misticismo,
os homens comuns nunca saíram desse plano inferior da consideração da morte
como destruição pura e simples.
A teoria das almas viajoras, de Plotino, que substituiu no
Neo-Platonismo a teoria da metempsicose egípcia, não chegou a popularizar-se.
As hipóstases espirituais que essas almas franquearam,
depois da morte, pareciam fantásticas, oriundas apenas da teoria platónica dos Mundos
das Ideias e do desejo instintivo de sobrevivência que domina o homem.
Mas as pesquisas científicas da natureza humana,
particularmente no campo dos fenómenos paranormais, chegaram a provas
incontestáveis da sobrevivência do homem após a morte.
Essa sobrevivência implica naturalmente a existência de
planos espirituais (as
hipóstases) em que a vida humana prossegue.
O desenvolvimento da Física nos nossos dias levou os
cientistas à descoberta da antimatéria, das dimensões múltiplas de um Universo
que considerávamos apenas tridimensional, à conquista dos antiátomos e
antipartículas atómicas que podem ser elaboradas em laboratórios, como têm sido
elaborados.
A existência das hipóstases já não é mais uma suposição, mas
uma verdade comprovada.
O corpo bioplásmico do homem, bem como o
dos vegetais e dos animais, foi tecnologicamente comprovado.
Os mortos não podem mais ser considerados mortos.
O que morreu foi apenas o corpo carnal dessas criaturas, que
Deus não criou como figuras de guinol para uma rápida passagem
pela Terra.
Seria estranho e até mesmo irónico que, num Universo em
que nada se perde, tudo se transforma, o homem fosse a única
excepção perecível, sujeito a desaparecer com os seus despojos.
A maior conquista da evolução na Terra é o homem, criado,
segundo o consenso geral, na tradição dos povos mais adiantados, feito à imagem
e semelhança de Deus.
Que estranha decisão teria levado o Criador a negar a esse
ser a imortalidade que conferiu a todas as coisas e a todos os seres, desde os
mais inferiores e aparentemente inúteis?
Há uma Economia na Natureza que seria
contrariada por essa medida de excepção.
Hoje, a verdade se define, cada vez mais comprovada e
inegável, aos nossos olhos mortais:
O homem é imortal.
Ao morrer na Terra, transfere-se para os planos de matéria
mais subtil e rarefeita, em que continua a viver com mais liberdade e
maiores possibilidades de realizações, certamente inconcebíveis aos que ficam
no plano terreno.
O espírito encarnado, que, lutando no fundo de um oceano de
ar pesado, consegue fazer tantas coisas, por que deixaria de agir com mais
interesse e visão elevada num plano em que tudo milita a seu favor?
Enganam-se os que pensam nos mortos como mortos.
Eles estão mais vivos do que nós, dispõem de visão mais
penetrante que a nossa, são criaturas mais definidas do que nós, e
podem ver-nos, visitar-nos e comunicar-se connosco com mais facilidade e
naturalidade.
É preciso que não nos esqueçamos deste ponto importante: os
homens são espíritos e os espíritos nada mais são do que homens
libertos das injunções da matéria.
Nós carregamos um fardo, eles já o alijaram das suas costas.
Temos de pensar neles como criaturas vivas e actuantes, como
realmente o são.
Eles não gostam das nossas tristezas, mas
sentem-se felizes com a nossa alegria.
Não querem que pensemos neles de maneira triste porque isso
os entristece.
Encontram-se num mundo em que as vibrações mentais são
facilmente perceptíveis e desejam que os ajudemos com pensamentos de
confiança e alegria.
Não temos o direito de perturbá-los com as nossas
inquietações terrenas, em geral nascidas do nosso egoísmo e do nosso apego.
Milhões de manifestações de entidades superiores, de
espíritos conhecidos ou não, mas sempre identificados, ocorrem no mundo
continuamente, provando a sobrevivência activa dos que passaram para o outro
mundo e lá não nos esqueceram.
Desde a época das cavernas, das construções lacustres,
passando pelas vinte e tantas grandes civilizações que se sucederam na
História, os mortos se comunicam com os vivos e estes, não raro, procuram
instruir-se com eles.
O intercâmbio é normal entre os dois mundos e uma vastíssima
biblioteca foi produzida pelos sábios antigos e modernos que estudaram o
problema e confirmaram a sobrevivência.
Mas, na proporção em que os métodos científicos se
desenvolveram, na batalha das Ciências contra as superstições do passado multimilenar,
a própria aceitação geral dessa verdade levantou maiores suspeitas no meio
científico.
As raízes amargas das religiões da morte, que viveram sempre
e vivem ainda hoje vampirizando o pavor da morte em todos os quadrantes do
planeta, criaram novos empecilhos para o esclarecimento do problema.
Ainda hoje, depois das provas exaustivas, milhões de
vezes confirmadas pelos mais respeitáveis investigadores, a nossa cultura
pretensiosamente rejeita a fragrante realidade e pesquisada fenomenologia de
todos os tempos, como se ela não passasse de suposições inverificáveis.
Qual a razão dessa atitude irracional em face de um problema
tão grave, da maior importância para a Teoria do Conhecimento e particularmente
para a adequação do pensamento à realidade, objectivo supremo da Filosofia?
A nossa cultura sofreu até agora de uma espécie de
esquizofrenia catatónica, ignorando problemas essenciais e entregando-se à
agitação das actividades pragmáticas.
Como diz o brocardo popular: “Gato escaldado tem medo de
água fria.” A tremenda e criminosa oposição da Igreja ao desenvolvimento livre
da Ciência, com o delírio pirovássico dos tempos inquisitoriais, com as suas
fogueiras assassinas, deixou as suas marcas de sangue e fogo no pêlo, no couro
e na carne viva do gato escaldado.
A cultura é um organismo conceptual vivo,
nascido das experiências humanas e dotado do mesmo instinto de conservação dos
organismos vivos.
Os pêlos do gato escaldado se eriçam à menor aproximação de
questões metafísicas.
Remy
Chauvin deu a esse fenómeno o nome apropriado de alergia ao
futuro.
Essa alergia, como demonstra, tem as suas origens históricas
no período inquisitorial.
Só há um responsável por essa doença cultural: a
Igreja, até hoje em actividade constante na luta contra o desenvolvimento
cultural para asfixiar os movimentos que possam atentar contra a sua
arcaica posição dogmática.
Por isso assistimos, ainda hoje, às vésperas da era cósmica,
ao doloroso espectáculo de padres irados, particularmente nos países
subdesenvolvidos, de cultura incipiente, desferindo os raios da sua indignação
insolente contra as conquistas parapsicológicas, mas, ao mesmo tempo, com a sagacidade
instintiva dos sacerdotes de todos os tempos e de todas as latitudes da Terra,
tirando as vantagens possíveis dessa actividade histriónica na
cobrança, a tanto por cabeça, dos cursos de parapsicologia dados ao povo com
o tempero dos sofismas e mentiras habituais.
Devemos a isso o nosso atraso brasileiro de quarenta anos no
campo das investigações e do estudo universitário do paranormal.
Em compensação, padres e frades entregam-se
livremente à exploração de clínicas parapsicológicas, servidos por médicos
iludidos ou bem integrados na luta contra o avanço da cultura na nossa
terra.
/…
Herculano Pires, José – Educação para a Morte,
Os Vivos e os Mortos, 1 de 2, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo,
pintura de William-Adolphe
Bouguereau)
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