sexta-feira, 18 de julho de 2014

pensamento espírita argentino ~

CAPÍTULO I

Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história

Que somos? (III)

A psicologia racional ou metafísica preocupou-se apenas em determinar a essência da alma, partindo de hipóteses que não estavam abonadas pelos factos, e uma vez estabelecida, hipoteticamente, a sua natureza espiritual, derivou dela os fenómenos psíquicos, sem preocupar-se em estudá-los experimentalmente e conhecer as leis a que estão sujeitos.

Esta falta de solidez em que se apoia o espiritualismo filosófico clássico deu base à psicologia materialista, que, fundamentada em observações incompletas e no preconceito dos seus sábios, formulou a hipótese contrária, reduzindo os fenómenos psíquicos a fenómenos fisiológicos e fazendo da alma uma complexa função do sistema nervoso central. Esse conceito monista da alma foi expresso em diversas formas, mas sempre como resultante do funcionamento do cérebro. Bem conhecido é o aforismo de Carls Vogt:

“O cérebro segrega o pensamento, como o fígado a bílis.”

e este outro, não menos grosseiro e materialista, atribuído por alguns a Taine:

“Entre a inteligência e o cérebro há a mesma relação que entre a bílis e o fígado ou a urina e os rins.”

Luís Büchner, comentando seu émulo Vogt, opõe à sua concepção de alma outra, ainda que não tão grosseira, não menos gratuita:

“O cérebro é o princípio e a fonte, ou melhor, a causa única do espírito e da inteligência.”

Fundamentada nestas e outras afirmações análogas, não provadas, a psicologia materialista se desenvolveu, chegou ao apogeu e logo à decadência, sem satisfazer a curiosidade científica, arrastando na sua queda muitos espíritos propensos ao materialismo, que acreditaram que o homem já se conhecia a si mesmo, um pedaço de matéria organizada, sem princípio espiritual e sem outra finalidade além dos seus apetites materiais, com a ilusão de uma falsa individualidade psíquica, de uma identidade pessoal não menos falsa e de uma espiritualidade tão ilusória como elas. Há que se convir que o materialismo só pôde ser consequente com o seu postulado psicológico enquanto desprovido de toda a espiritualidade e de toda a consideração moral e aceites as consequências fatais da sua doutrina. Pois, para a filosofia socrática e clássico-espiritualista, a psicologia era o fundamento da moral e da metafísica e conhecer-se a si mesmo, como entidade psicológica, equivalia a regular a vida de acordo com um princípio e uma finalidade superiores; não existindo estes e anulada a alma na complexidade funcional do cérebro, o seu único fim lógico é dar-se a toda a classe de satisfações sensuais, desprezando, por alheia e oposta à sua natureza exclusivamente material, toda espiritualidade e toda moralidade fundada em princípios universais.

Não obstante o seu presumido monismo, a psicologia materialista encontrou na própria fisiologia a sua refutação. Pois, como sustentou o ilustre fisiólogo Claude Bernard, a matéria organizada do cérebro não manifesta sensibilidade e inteligência, nem tem mais consciência do pensamento e dos fenómenos que a matéria bruta de uma máquina, de um relógio, por exemplo, tem dos seus movimentos e da hora que indica, ou os caracteres de imprensa e o papel têm das ideias que veiculam. Diz ele:

“Afirmar que o cérebro segrega o pensamento equivale a sustentar que o relógio segrega a hora ou a ideia do tempo.”

Sustentar, com Büchner, que o cérebro é a fonte ou a causa do espírito, ao lado de ser uma hipótese gratuita, seria assentar o absurdo de que o efeito é superior à causa, que o insensível, o inconsciente, o natural não-inteligente, pode engendrar a sensibilidade, a consciência, a inteligência e a espiritualidade; seria assumir a priori um postulado filosófico que a ciência está muito longe de provar.

A curiosidade científica não tem limites e a ciência não se conforma com saber as coisas de modo superficial nem se estanca com uma doutrina apriorística ou dogmática, qualquer que seja a tese que defenda.

Emparedada entre duas hipóteses contrárias, a psicologia buscou o seu verdadeiro centro de gravidade no positivismo, escola mais científica, mas não isenta de preconceitos e circunscrita por horizontes um tanto restritos, limitados à materialidade das coisas, objecto de um conhecimento exclusivamente empírico.

A psicologia positiva, mais propriamente a psicofisiologia, como a chamou Wilhelm Wundt, não pôde subtrair-se à influência do materialismo e, apesar dos seus reiterados protestos contra Vogt e os seus seguidores, acabou por ser manifestamente materialista. Começou por negar a priori ou apoiando-se numa experiência imediata mas insuficiente, a realidade substancial da alma; e dizemos a priori porque ela não teve como objecto de estudo a entidade psicológica ou espiritual através dos seus fenómenos; ao contrário, rechaçou-a antecipadamente por absurda, rendendo-se à realidade funcional e sensível do mecanismo cerebral: não fez mais do que estudar os fenómenos psicofisiológicos em si mesmos e as suas relações de causas e efeitos, a exterioridade da alma, sem penetrar nem descobrir nela a causa essencial, eficiente, dos fenómenos psíquicos, considerando-a como a síntese de estados de consciência, confundindo-a com o conjunto dos seus fenómenos experimentalmente conhecidos e rechaçando, por sobrenaturais e impossíveis, outros, cuja supranormalidade ultrapassa o limite dos seus conceitos, ou seja, todos aqueles fenómenos psíquicos que se realizam sem intervenção de órgãos sensoriais ou fora do alcance do organismo somático e que contrariam as leis ordinárias da psicofisiologia, tais como os fenómenos de exteriorização da sensibilidade e da motilidade, os de telepatia, clarividência, xenoglossia, premonição, etc., que acabam com o aforismo de Locke e Condillac: nihil est in intellectu quod non plus fuerit in sensu(i) convertido em dogma por empíricos e positivistas.

A chamada psicologia positiva ou empírica, ainda que pareça paradoxal, não fez verdadeira psicologia, porquanto, negando a realidade substancial da alma, reduziu os fenómenos psíquicos a meros fenómenos fisiológicos, os quais, por muito subtis ou espirituais que os considere, por mais que psicólogos empíricos protestem contra a escola materialista, sobre a sua origem psíquica, a sua irredutibilidade e o seu paralelismo com os fenómenos fisiológicos (impossíveis de conceberem-se se não emanam de fontes substancialmente distintas), são sempre produzidos pelo organismo material e caem, indefectivelmente, no conceito materialista expresso por Büchner, quando considera que a alma tem por causa única o cérebro. Longe, pois, de ensinar ao ser humano a conhecer-se a si mesmo, a psicologia empírica o desnatura: atribui ao sistema eixo cérebro-espinhal as faculdades e atributos do espírito, o poder dínamo-psíquico de suas funções e de suas determinações.

Não obstante, e fazendo justiça ao seu método experimental, ainda que negando a alma, contribuiu sem querer e sem pensar para o seu maior conhecimento, pois não é possível conhecer a alma senão através das suas manifestações e dos seus fenómenos. Deste modo e com o auxílio de outras ciências afins, estabeleceu a relação entre a alma e o organismo somático: a fisiologia proporcionou-lhe conhecimentos mais ou menos exactos sobre o funcionamento do sistema nervoso e dos órgãos sensoriais e com a histologia conheceu a estrutura íntima do tecido fibroso e celular; a patologia ilustrou-se acerca das perturbações nervosas e cerebrais e da sua influência nas funções psíquicas.

Por meio das vivisseções ou dissecação dos animais vivos e extirpação total ou parcial dos lóbulos cerebrais, chegou a determinar, anatómica e aproximadamente, as localizações cerebrais; com a psicofísica, estabeleceu as relações quantitativas entre as diversas sensações e os seus antecedentes, isto é, determinou o tempo que transcorre entre a impressão recebida e a sensação experimentada; estabeleceu, enfim, de modo experimental, baseando-se na estrutura íntima do sistema nervoso, no seu funcionamento e nos diversos estados psíquicos do indivíduo, as estreitas relações da alma com o seu organismo, ainda que considerando aquela como o conjunto de fenómenos psíquicos. Graças à psicofisiologia e às suas afins, sabemos hoje como as impressões periféricas, produzidas nos órgãos sensoriais por estímulos exteriores, chegam à alma, depois de percorrer as vias nervosas e passar por seus respectivos centros sensoriais receptores e sofrer noutras as necessárias transformações, até converter-se em recepção, e como uma incitação motriz, originada numa célula ou centro motor cerebral, desce ao músculo que deve colocar em movimento através da medula espinal, seguindo o encadeamento dos neurónios que lhe serve de via nervosa descendente.

Mas todo este processo psicofisiológico, desde a excitação até a percepção, reduz-se, em última análise, a movimentos nervosos, a vibrações celulares e isto é tudo quanto, a rigor, nos pode ensinar a psicologia empírica e, por muito que se esforce, não poderá jamais – prescindindo da alma como entidade psicológica, distinta, superior aos seus fenómenos – demonstrar como as excitações se traduzem em sensações, logo, em percepções, em ideias, pensamentos, juízos, raciocínios, determinações, etc., ainda que para isso apele aos centros de transformação e de associação, pois os centros cerebrais, as células que os constituem, isoladas ou associadas, são tão sensíveis à dor ou ao prazer, quando lhes falta o espírito que as anima, como o aparelho radiofónico o é da emotividade ou o pensamento da mensagem que recebe e têm tanta consciência e inteligência da função que desempenham como, no caso citado por Claude Bernard, o relógio tem da hora que marca.

Se falta a unidade psicológica, o eu sensível e perceptor, não há sensação nem percepção possíveis e a chamada consciência psicológica, “coordenação de estados”, ou de “certo número de estados” que postula Ribot, é uma palavra sem fundamento, um nome para expressar algo impreciso, que não constitui unidade, senão multiplicidade ou, quando muito, um conceito vago, que se anula num mar de fenómenos gerados pela inconsciência cerebral. E dizemos que se anula num mar de fenómenos porque, num conceito positivista, a individualidade psicológica não tem existência real, se desvanece no conjunto dos fenómenos psíquicos constantemente renovados; o que, em tal conceito, se chama consciência individual é um processo de estados de consciência ou de consciências coordenadas e sucessivas que dão a ilusão de um indivíduo: o eu é uma abstracção pura ou, como diz J. Patrascoiu, um simples “nome”, sem entidade nem substância espiritual, uma palavra, enfim, análoga às frases “espírito das massas”, “consciência do povo” e outras que encerram conceitos abstractos, heterogéneos, com as quais os políticos e sociólogos sintetizam a psicologia colectiva que, por assim ser, carece de unidade psicológica verdadeira.

/…

(i) “Nada existe na inteligência que antes não tenha passado pelos sentidos”. (N.T.)



Manuel S. PorteiroEspiritismo Dialéctico, CAPÍTULO I Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história – Que somos? (III), 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Personajes, Pintura de Josefina Robirosa)

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