CAPÍTULO I
Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história
Que somos? (III)
A psicologia racional ou metafísica preocupou-se apenas em
determinar a essência da alma, partindo de hipóteses que não estavam abonadas pelos factos, e uma vez estabelecida, hipoteticamente, a sua natureza espiritual, derivou dela os fenómenos psíquicos, sem preocupar-se em estudá-los experimentalmente e conhecer as leis a que estão sujeitos.
Esta falta de solidez em que se apoia o espiritualismo
filosófico clássico deu base à psicologia materialista, que, fundamentada em
observações incompletas e no preconceito dos seus sábios, formulou a hipótese
contrária, reduzindo os fenómenos psíquicos a fenómenos fisiológicos e fazendo
da alma uma complexa função do sistema nervoso central. Esse conceito monista
da alma foi expresso em diversas formas, mas sempre como resultante do
funcionamento do cérebro. Bem conhecido é o aforismo de Carls Vogt:
“O cérebro segrega o pensamento, como o fígado a bílis.”
e este outro, não menos grosseiro e materialista, atribuído
por alguns a Taine:
“Entre a inteligência e o cérebro há a mesma relação que
entre a bílis e o fígado ou a urina e os rins.”
Luís
Büchner, comentando seu émulo Vogt, opõe à sua concepção de alma outra,
ainda que não tão grosseira, não menos gratuita:
“O cérebro é o princípio e a fonte, ou melhor, a causa única
do espírito e da inteligência.”
Fundamentada nestas e outras afirmações análogas, não provadas, a psicologia
materialista se desenvolveu, chegou ao apogeu e logo à decadência, sem
satisfazer a curiosidade científica, arrastando na sua queda muitos espíritos
propensos ao materialismo, que acreditaram que o homem já se conhecia a
si mesmo, um pedaço de matéria organizada, sem princípio espiritual e sem outra
finalidade além dos seus apetites materiais, com a ilusão de uma falsa
individualidade psíquica, de uma identidade pessoal não menos falsa e de uma
espiritualidade tão ilusória como elas. Há que se convir que o
materialismo só pôde ser consequente com o seu postulado psicológico enquanto
desprovido de toda a espiritualidade e de toda a consideração moral e aceites
as consequências fatais da sua doutrina. Pois, para a filosofia socrática e
clássico-espiritualista, a psicologia era o fundamento da moral e da metafísica
e conhecer-se a si mesmo, como entidade psicológica, equivalia a regular a vida
de acordo com um princípio e uma finalidade superiores; não existindo
estes e anulada a alma na complexidade funcional do cérebro, o seu único fim
lógico é dar-se a toda a classe de satisfações sensuais, desprezando, por
alheia e oposta à sua natureza exclusivamente material, toda espiritualidade e
toda moralidade fundada em princípios universais.
Não obstante o seu presumido monismo, a psicologia materialista encontrou na
própria fisiologia a sua refutação. Pois, como sustentou o ilustre fisiólogo Claude Bernard, a
matéria organizada do cérebro não manifesta sensibilidade e inteligência, nem
tem mais consciência do pensamento e dos fenómenos que a matéria bruta de uma
máquina, de um relógio, por exemplo, tem dos seus movimentos e da hora que
indica, ou os caracteres de imprensa e o papel têm das ideias que veiculam. Diz
ele:
“Afirmar que o cérebro segrega o pensamento equivale a
sustentar que o relógio segrega a hora ou a ideia do tempo.”
Sustentar, com Büchner, que o cérebro é a fonte ou a causa
do espírito, ao lado de ser uma hipótese gratuita, seria assentar o
absurdo de que o efeito é superior à causa, que o insensível, o
inconsciente, o natural não-inteligente, pode engendrar a sensibilidade, a
consciência, a inteligência e a espiritualidade; seria assumir a priori um
postulado filosófico que a ciência está muito longe de provar.
A curiosidade científica não tem limites e a ciência não se
conforma com saber as coisas de modo superficial nem se estanca com uma
doutrina apriorística ou dogmática, qualquer que seja a tese que defenda.
Emparedada entre duas hipóteses contrárias, a psicologia
buscou o seu verdadeiro centro de gravidade no positivismo, escola mais
científica, mas não isenta de preconceitos e circunscrita por horizontes um
tanto restritos, limitados à materialidade das coisas, objecto de um
conhecimento exclusivamente empírico.
A psicologia positiva, mais propriamente a psicofisiologia,
como a chamou Wilhelm
Wundt, não pôde subtrair-se à influência do materialismo e, apesar dos seus
reiterados protestos contra Vogt e os seus seguidores, acabou por ser
manifestamente materialista. Começou por negar a priori ou
apoiando-se numa experiência imediata mas insuficiente, a realidade substancial
da alma; e dizemos a priori porque ela não teve como
objecto de estudo a entidade psicológica ou espiritual através dos seus
fenómenos; ao contrário, rechaçou-a antecipadamente por absurda,
rendendo-se à realidade funcional e sensível do mecanismo cerebral: não fez
mais do que estudar os fenómenos psicofisiológicos em si mesmos e as suas
relações de causas e efeitos, a exterioridade da alma, sem penetrar nem
descobrir nela a causa essencial, eficiente, dos fenómenos psíquicos,
considerando-a como a síntese de estados de consciência, confundindo-a com o
conjunto dos seus fenómenos experimentalmente conhecidos e rechaçando, por
sobrenaturais e impossíveis, outros, cuja supranormalidade ultrapassa o limite
dos seus conceitos, ou seja, todos aqueles fenómenos psíquicos que se realizam
sem intervenção de órgãos sensoriais ou fora do alcance do organismo somático e
que contrariam as leis ordinárias da psicofisiologia, tais como os fenómenos de
exteriorização da sensibilidade e da motilidade, os de telepatia,
clarividência, xenoglossia, premonição, etc., que acabam com o aforismo de
Locke e Condillac: nihil est in intellectu quod non plus fuerit in
sensu, (i) convertido em dogma por empíricos e
positivistas.
A chamada psicologia positiva ou empírica, ainda que pareça
paradoxal, não fez verdadeira psicologia, porquanto, negando a realidade
substancial da alma, reduziu os fenómenos psíquicos a meros fenómenos
fisiológicos, os quais, por muito subtis ou espirituais que os considere,
por mais que psicólogos empíricos protestem contra a escola materialista, sobre
a sua origem psíquica, a sua irredutibilidade e o seu paralelismo com os
fenómenos fisiológicos (impossíveis de conceberem-se se não emanam de fontes
substancialmente distintas), são sempre produzidos pelo organismo material e
caem, indefectivelmente, no conceito materialista expresso por Büchner, quando
considera que a alma tem por causa única o cérebro. Longe, pois, de ensinar ao
ser humano a conhecer-se a si mesmo, a psicologia empírica o desnatura: atribui
ao sistema eixo cérebro-espinhal as faculdades e atributos do espírito, o
poder dínamo-psíquico de suas funções e de suas determinações.
Não obstante, e fazendo justiça ao seu método experimental,
ainda que negando a alma, contribuiu sem querer e sem pensar para o seu maior
conhecimento, pois não é possível conhecer a alma senão através das suas
manifestações e dos seus fenómenos. Deste modo e com o auxílio de outras
ciências afins, estabeleceu a relação entre a alma e o organismo somático: a
fisiologia proporcionou-lhe conhecimentos mais ou menos exactos sobre o
funcionamento do sistema nervoso e dos órgãos sensoriais e com a histologia
conheceu a estrutura íntima do tecido fibroso e celular; a patologia
ilustrou-se acerca das perturbações nervosas e cerebrais e da sua influência
nas funções psíquicas.
Por meio das vivisseções ou dissecação dos animais vivos e
extirpação total ou parcial dos lóbulos cerebrais, chegou a determinar,
anatómica e aproximadamente, as localizações cerebrais; com a
psicofísica, estabeleceu as relações quantitativas entre as diversas sensações
e os seus antecedentes, isto é, determinou o tempo que transcorre entre a
impressão recebida e a sensação experimentada; estabeleceu, enfim, de modo
experimental, baseando-se na estrutura íntima do sistema nervoso, no seu
funcionamento e nos diversos estados psíquicos do indivíduo, as estreitas
relações da alma com o seu organismo, ainda que considerando aquela como o
conjunto de fenómenos psíquicos. Graças à psicofisiologia e às suas afins,
sabemos hoje como as impressões periféricas, produzidas nos órgãos sensoriais
por estímulos exteriores, chegam à alma, depois de percorrer as vias nervosas e
passar por seus respectivos centros sensoriais receptores e sofrer noutras as
necessárias transformações, até converter-se em recepção, e como uma
incitação motriz, originada numa célula ou centro motor cerebral, desce ao
músculo que deve colocar em movimento através da medula espinal, seguindo o
encadeamento dos neurónios que lhe serve de via nervosa descendente.
Mas todo este processo psicofisiológico, desde a excitação
até a percepção, reduz-se, em última análise, a movimentos nervosos, a
vibrações celulares e isto é tudo quanto, a rigor, nos pode ensinar a
psicologia empírica e, por muito que se esforce, não poderá jamais –
prescindindo da alma como entidade psicológica, distinta, superior aos seus
fenómenos – demonstrar como as excitações se traduzem em sensações, logo, em
percepções, em ideias, pensamentos, juízos, raciocínios, determinações,
etc., ainda que para isso apele aos centros de transformação e de associação,
pois os centros cerebrais, as células que os constituem, isoladas ou
associadas, são tão sensíveis à dor ou ao prazer, quando lhes falta o espírito
que as anima, como o aparelho radiofónico o é da emotividade ou o pensamento da
mensagem que recebe e têm tanta consciência e inteligência da função que
desempenham como, no caso citado por Claude Bernard, o relógio tem da hora que
marca.
Se falta a unidade psicológica, o eu sensível
e perceptor, não há sensação nem percepção possíveis e a chamada
consciência psicológica, “coordenação de estados”, ou de “certo número de
estados” que postula Ribot, é uma
palavra sem fundamento, um nome para expressar algo
impreciso, que não constitui unidade, senão multiplicidade ou, quando
muito, um conceito vago, que se anula num mar de fenómenos gerados pela
inconsciência cerebral. E dizemos que se anula num mar de fenómenos porque, num
conceito positivista, a individualidade psicológica não tem existência real, se
desvanece no conjunto dos fenómenos psíquicos constantemente renovados; o que,
em tal conceito, se chama consciência individual é um processo de
estados de consciência ou de consciências coordenadas e sucessivas que dão a
ilusão de um indivíduo: o eu é uma abstracção pura ou,
como diz J. Patrascoiu, um simples “nome”, sem entidade nem substância
espiritual, uma palavra, enfim, análoga às frases “espírito das massas”,
“consciência do povo” e outras que encerram conceitos abstractos, heterogéneos,
com as quais os políticos e sociólogos sintetizam a psicologia colectiva que,
por assim ser, carece de unidade psicológica verdadeira.
/…
(i) “Nada existe na inteligência que antes não tenha passado pelos
sentidos”. (N.T.)
Manuel
S. Porteiro, Espiritismo Dialéctico, CAPÍTULO I Fundamentos
científicos da concepção neo-espírita da vida e da história – Que somos? (III),
3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Personajes, Pintura
de Josefina Robirosa)
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