segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

O sono e a morte transportam-nos, alternadamente ~

É assim que muitas questões insolúveis para as outras escolas são resolvidas pela doutrina das vidas sucessivas. As fortíssimas objecções com que o cepticismo e o materialismo têm feito brechas no edifício teológico – o mal, a dor, a desigualdade dos méritos e das condições humanas, a injustiça aparente da sorte: todos esses tropeços se desvanecem perante a Doutrina dos Espíritos.

Entretanto, uma dificuldade subsiste, uma forte objecção ergue-se contra ela. Se já vivemos no espaço, dizem, se outras vidas precederam ao nascimento, por que de tal perdemos a recordação?

Esta objecção, de aparência irrespondível, é fácil de ser destruída.

A memória das coisas que viveram, dos actos que se cumpriram, não é condição necessária da existência.

Ninguém se lembra do tempo passado no ventre materno ou mesmo no berço. Poucos homens conservam a memória das impressões e dos actos da primeira infância. Entretanto, essas são partes integrantes da nossa existência actual. Pela manhã, ao acordarmos, perdemos a recordação da maior parte de nossos sonhos, embora, no momento, eles nos tenham parecido outras tantas realidades. Só nos restam sensações grosseiras e confusas, que o Espírito experimenta quando recai sob a influência material.

Os dias e as noites são como as nossas vidas terrestres e espirituais, e o sono parece tão inexplicável quanto a morte. O sono e a morte transportam-nos, alternadamente, para meios distintos e para condições diferenteso que não impede à nossa identidade de manter-se e persistir através desses estados variados.

No sono magnético, o Espírito, desprendido do corpo, recorda-se de coisas que esquecerá ao voltar à carne, cujo encadeamento, não obstante, ele tornará a apanhar, recobrando a lucidez. Esse estado de sono provocado desenvolve nos sonâmbulos aptidões especiais que, em vigília, desaparecem, abafadas, aniquiladas pelo invólucro corpóreo.

Nessas diversas condições, o ser físico parece possuir dois estados de consciência, duas fases alternadas de existências que se encadeiam e se envolvem uma na outra. O esquecimento, como espessa cortina, separa o sono do estado de vigília, assim como divide cada vida terrestre das existências anteriores e da vida dos céus.

Se as impressões que a alma sente durante o decurso da vida actual, no estado de desprendimento completo, seja pelo sono natural ou pelo sono provocado, não podem ser transmitidas ao cérebro, deve compreender-se que as recordações de uma vida anterior sê-lo-iam mais dificilmente ainda. O cérebro não pode receber e armazenar senão as impressões comunicadas pela alma em estado de cativeiro na matéria. A memória só saberia reproduzir o que ele tem registado.

Em cada renascimento, o organismo cerebral constitui para nós uma espécie de livro novo, sobre o qual se gravam as sensações e as imagens. Voltando à carne, a alma perde a memória de quanto viu e executou no estado de liberdade, e só tornará a lembrar-se de tudo quando abandonar de novo a sua prisão temporária.

O esquecimento do passado é a condição indispensável de toda prova e de todo progresso. O nosso passado guarda as suas manchas e nódoas. Percorrendo a série dos tempos, atravessando as idades de brutalidade, devemos ter acumulado bastantes faltas, bastantes iniquidades. Libertos apenas ontem da barbaria, o peso dessas recordações seria acabrunhador para nós. A vida terrestre é, algumas vezes, difícil de suportar; ainda mais o seria se, ao cortejo dos nossos males actuais, acrescesse a memória dos sofrimentos ou das vergonhas passadas.

A recordação de nossas vidas anteriores não estaria também ligada à do passado dos outros?

Subindo a cadeia de nossas existências, o entrecho de nossa própria história, encontraríamos o vestígio das acções de nossos semelhantes.

As inimizades perpetuar-se-iam; as rivalidades, os ódios e as discórdias agravar-se-iam de vida em vida, de século em século. Os nossos inimigos, as nossas vítimas de outrora, reconhecer-nos-iam e estariam a perseguir-nos com sua vingança.

Bom é que o véu do esquecimento nos oculte uns aos outros e que, apagando momentaneamente de nossa memória penosas recordações, nos livre de um remorso incessante. O conhecimento das nossas faltas e as suas consequências, erguendo-se diante de nós como ameaça medonha e perpétua, paralisaria os nossos esforços, tornaria estéril e insuportável a nossa vida.

Sem o esquecimento, os grandes culpados, os criminosos célebres estariam marcados a ferro em brasa por toda a eternidade. Vemos os condenados da justiça humana, depois de sofrida a pena, serem perseguidos pela desconfiança universal, repelidos com horror por uma sociedade que lhes recusa lugar no seu seio, e assim muitas vezes os atira ao exército do mal. Que seria se os crimes do passado longínquo se desenhassem aos olhos de todos?

Quase todos temos necessidade de perdão e de esquecimento. A sombra que oculta as nossas fraquezas e misérias conforta-nos o ser, tornando-nos menos penosa a reparação. Depois de termos bebido as águas do Letes, renascemos mais alegremente para uma vida nova e desvanecem-se os fantasmas do passado. Transportando-se para um meio diferente, despertamos para outras sensações, abrem-se-nos outras influências, abandonamos com mais facilidade os erros e os hábitos que outrora nos retardaram a marcha. Renascendo sob a forma de criança, a alma culpada encontra em torno de si o auxílio e a ternura necessários à sua elevação. Ninguém cuida em reconhecer nesse ser fraco e encantador o Espírito vicioso que vem resgatar um passado de faltas.

Entretanto, para certos homens esse passado não está absolutamente apagado. Um sentimento confuso do que foram jaz no fundo de sua consciência. É a origem das intuições, das ideias inatas, das recordações vagas e dos pressentimentos misteriosos, como eco enfraquecido dos tempos decorridos. Consultando essas impressões, estudando-se a si mesmos com atenção, não seria impossível reconstituir esse passado, se não nas suas minúcias, ao menos nos seus traços principais.

Porém, no termo de cada existência, essas recordações longínquas ressuscitam em tropel e saem da sombra. Avançamos passo a passo, tateando na vida; vem a morte e tudo se esclarece. O passado explica o presente e o futuro ilumina-se mais claramente. Cada alma, voltando à vida espiritual, recobra a plenitude das suas faculdades. Para ela começa, então, um período de exame, de repouso, de recolhimento, durante o qual se julga a si mesma e avalia o caminho percorrido. Recebe opiniões e conselhos de Espíritos mais adiantados. Guiada por eles, tomará resoluções viris e, na ocasião propícia, escolhendo um meio favorável, baixará a um novo corpo, a fim de se melhorar pelo trabalho e pelo sofrimento.

Voltando à carne, a alma perderá ainda a memória das suas vidas anteriores e bem assim a recordação da vida espiritual, a única verdadeiramente livre e completa, perto da qual a morada terrestre lhe pareceria medonha. Longa será a luta, penosos os esforços necessários para recuperar a consciência de si mesma e as suas potências ocultas; porém, conservará sempre a intuição, o sentimento vago das resoluções tomadas antes de renascer.

/…



LÉON DENIS, Depois da Morte, Parte Segunda Os Grandes Problemas – Objecções.
(imagem de ilustração: Retrato de uma criança_1941, pintura de Edgar Maxence)

Sem comentários:

Enviar um comentário