Para uma filosofia poética ~
Victor Hugo foi um dos poetas que esboçou a possibilidade de
uma filosofia poética. No verso como na prosa, tratou sempre de temas
transcendentais relacionados com o homem e o mundo. Sendo certo que no
académico não se admite uma filosofia poética, seria bom recordar que Hegel,
apesar do seu tecnicismo complicado, expunha conceitos metafísicos que se
relacionavam intimamente com o poético.
George Santayana,
com o seu livro Três poetas, filosóficos: Lucrécio, Dante, Goethe,
contribuiu para sustentar esta tese referente a uma filosofia poética. Mas
é chegado o momento de considerar que se a filosofia há de cumprir um papel
especial entre os homens, só o conseguirá mediante valores ontológicos e
poéticos, pois o estilo obscuro e técnico de um Heidegger ou de
um Sartre, por
exemplo, em nada contribui para a compreensão das essências da filosofia. O
existencialismo como que-fazer filosófico é, poder-se-ia dizer,
como uma reacção contra o tecnicismo filosófico onde apenas se vislumbra o
"problema do Ser" pelas complicações filológicas
incompreensíveis ainda para os homens entregues ao estudo e à cultura.
O caso de Victor Hugo não foi considerado pela história da filosofia e o mesmo
se poderia dizer da obra de Miguel de Unamuno,
onde a poesia se une à filosofia.
Sem dúvida, a filosofia deverá ser poética e religiosa ou
não passará de uma acumulação de páginas técnicas que jamais chegarão a
projectar luz na alma do pensador. Caso o filósofo se contente apenas com a
linguagem técnica, o "conhece-te a ti mesmo" dos gregos
antigos jamais se produzirá na alma dos homens.
A filosofia esboçada pelo autor de As Contemplações estará
assente sempre sobre a beleza, posto que o Ser é uma entidade sensível que só
evolui por ela rumo ao bem e à verdade. Se não opta por voltar ao reino da
sabedoria; se prefere objectivar-se no temporal como uma
disciplina académica, o daimon da filosofia permanecerá mudo e
o espírito humano será abatido pelas trevas do niilismo.
Victor Hugo filosofou pela poesia porque desceu às profundidades do Ser,
reconhecendo que não será sistematizando o presente que a sabedoria se tornará
uma luz para os espíritos. Como já dissermos neste livro, Victor Hugo
percebeu que a beleza determina a verdadeira filosofia; mas considerou
também que o Ser não chegará à verdade através de uma única vida. O seu próprio
génio não cabia dentro de uma vida única porque a alma procede de
distâncias misteriosas para avançar rumo a horizontes desconhecidos. A filosofia
poética do nosso poeta se baseou nessa concepção espiritual do homem e foi por
isso que a beleza traduzida em amor lhe permitiu aceitar que as almas são,
realmente, viajantes do infinito.
Quando Victor Hugo disse:
"Quem diz poesia diz filosofia e saber" deixou assente as
possibilidades de um que-fazer filosófico expresso por uma
linguagem poética. A poesia na obra do poeta é, sempre, afirmação, esperança,
amor, passado e futuro. É o espírito poético que penetra nos domínios
ontológicos da existência e que não se limita exclusivamente à
literatura. O génio de Victor Hugo é caudaloso e transborda as dimensões do
formal para penetrar no filosófico e religioso. Daí devemos
considerá-lo um poeta-filósofo e um filósofo-poeta. Por isso, no seu
génio se sintetizam todas as manifestações da vida humana. Nele encontramos
o social, o religioso, o crítico, o político e o artístico em relação com o
Ser.
Quando a filosofia poética esboçada por Victor Hugo se
manifestar nos criadores contemporâneos; quando a beleza e a filosofia
demonstrarem que o homem não é "uma paixão inútil", como
deseja Sartre, a missão do conhecimento se cumprirá mediante uma reivindicação
moral e existencial de homens e de povos. Dar-se-á lugar a formas de vida
social assentes sobre a dignidade humana, alimentadas pela verdade e
beleza, porque o homem de Victor Hugo é um batalhador que luta por
encontrar Deus e o sentido da vida.
/…
Humberto
Mariotti, Victor Hugo Espírita, Para uma filosofia poética, 3º
fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Young Girl with a Doll,
pintura de Anne-Louis
GIRODET-TRIOSON)
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